51

56 20 6
                                    

Como...

Alguém estava falando. Eu me concentrei nisso quando uma dor de cabeça enorme me atingiu e eu evitei abrir os olhos.

— Acho... consciente. Se ela o achou, deve ter... lugar.

— ... animal. Não dá para dizer...

— Pode ter sido... Mas-

Uma das vozes me parecia familiar.

Senti uma mão quente repousar sobre minha testa. Ficou alguns segundos e depois, retirou-se.

— Não — uma voz feminina disse, mais próxima de mim.

— Certo. Isso é bom.

Minha cabeça girava. O mundo rodava.

Eu não sentia meu corpo, só uma dor latejante na cabeça e um grande incômodo no estômago.

Assim, apaguei, voltando a ter consciência apenas algumas horas depois.

Estava escuro. Eu ouvia a chuva bater contra o telhado e o clima deixava meus pés frios e mãos geladas. Havia um silêncio estranho na sala, como se alguém estivesse morto.

Com cuidado, eu abri os olhos, observando o teto abobadado do sobrado, que entrou e saiu de foco algumas vezes até eu entender que havia mais alguma coisa errada.

O ar estava rarefeito. Havia um vidro entre eu e o mundo.

Então me vi em uma grande caixa de madeira polida e envernizada. Era macio o fundo, mas estranho. E, do outro lado do vidro, enxerguei Zylia.

Com pesar, ela cobria o rosto, já úmido pelo choro. As mechas estavam totalmente apagadas, deixando apenas fios de cabelos pretos em contraste com sua pele escura. Ali de dentro, percebi Aaden se aproximar dela, abraçando-a. Parecia chorar também.

— Eu sinto muito, Zylia — sussurrou, com as mãos trêmulas enquanto acariciava o cabelo dela.

Eu estava em um caixão. Prestes a ser enterrada.

A última coisa que vi foram os olhos de Renoward antes de abrir os olhos pela falta de ar.

Eu levantei o corpo em um reflexo, querendo implorar para que me tirassem de lá de dentro. Puxei o ar como se fosse o único existente e levei a mão ao peito, esfregando-o. Eu me debati, procurando as paredes de madeira que não existiam mais.

Uma mão pousou em nas minhas costas e outra foi para meu braço não machucado, tentando mostrar que não era realidade.

— Calma, pequena. Acho que não está na hora de levantar ainda.

Aaden.

Sua voz foi tão real quanto a dor que me atingiu momentos depois.

Eu me deitei, sentindo meu braço latejar, junto com a cabeça.

Desta vez, haviam vozes. Baixinhas, mas haviam. Uma luz amarelada estava ligada, mantendo-nos cientes das coisas ao redor. Não chovia mais, mas o clima ameno fazia com que as pontas dos meus dedos ficassem geladas.

Estava com os olhos pesados e um pouco grogue, mas não tinha certeza se voltaria a dormir de novo tão cedo.

Observei Portos se abaixar do meu lado. Estava com olheiras mais pesadas, mais intensas, apesar de ter ainda um sorriso suave no rosto.

Ele me observou.

— Como você se sente?

Eu engoli.

— Estou com dor — relatei, com a voz baixa, como se ele tivesse a melhor audição do mundo.

Ele assentiu.

— Acabamos de te dar remédio para dor. Vai ajudar. — Com a cabeça, Aaden indicou o líquido incolor que descia pelo tubinho transparente. Não havia reparado na existência dele.

Eu concordei, sentindo os olhos pesados.

— Por que não dorme um pouco?

Neguei.

— Não quero dormir. Acho que tive um pesadelo.

Ele anuiu novamente.

— Tudo bem.

Abriu um sorriso maroto, coberto de informações que ele não queria dar.

Alguém atrás de mim levantou a voz em uma discussão e eu ouvi um leve soluçar de peitos falhos. Observei o soldado enquanto linhas de expressão apareciam entre minhas sobrancelhas ruivas. Portos já havia desviado a atenção para o que se passava.

— O que está acontecendo?

Ele voltou a me observar, dessa vez com o olhar mais pesado, possuído por dores que ele não queria revelar. Abaixou a cabeça, como em uma breve prece ou procurando algum motivo idôneo.

Depois, levantou os olhos castanhos, que estavam tão escuros quanto o breu. Era difícil ver Aaden assim. Ele era o mais otimista de todos ali, e me preocupava vê-lo com os olhos escurecidos, como se algo o mataria se ele abrisse a boca de novo.

— Está tudo bem — afirmou, como se quisesse aceitar isso mais do que tivesse que me convencer.

— Aaden... — fiz menção de levantar, e toda ou qualquer suavidade que estivesse em seu rosto se esvaiu em um instante.

Ele tocou meu braço de leve, como um pedido para que eu voltasse a me deitar.

— Gaëlle, é sério. Está tudo bem, nós estamos bem. Mas eu preciso que fique aqui.

— Mas-

Ele negou.

— Não.

— É o Renoward?

Como se doesse demais qualquer movimento, Portos apenas balançou a cabeça.

— Renoward está bem, Gaëlle. Conseguimos cuidar dele. Todo mundo está bem, mas eu realmente preciso que fique aqui. E que de preferência descanse.

Meu coração apertou. O que estava acontecendo?

— Aaden, alguém morreu?

Ele me observou.

— Não, Gaëlle. Estamos bem. — Por alguns momentos, só consegui ouvir as conversar, baixinho, sem de fato entendê-las.

Então ele estendeu a mão, em um ato convidativo.

— Confia em mim, não confia?

Sentindo o corpo mole pela hesitação, arrastei minha mão até a dele. Estava com uma agulha intravenosa presa por fitas brancas, e senti a medicação entrar pela minha veia.

Aaden segurou minha mão ao mesmo tempo em que eu assenti.

— Ótimo — disse.

Então se levantou, apoiando minha mão de volta no sofá e me fazendo observar que sua outra mão estava revestida de couro.

— Então, aconteça o que acontecer, não saia daqui. Em ocasião nenhuma, até que veja qualquer pessoa da Corte de novo.

Eu não respondi. Ele me pareceu levemente impaciente.

— Por favor, Gaëlle...

Eu engoli em seco, sentindo um caroço na garganta.

— Tudo bem.

Aaden não respondeu. Saiu, com passos pesados, muito mais audíveis do que os de Renoward.

As vozes baixas continuaram, sem muita diferença de efeito.

E eu, mesmo tomada de curiosidade, fechei os olhos pesados, com o coração batendo forte.

Arthora | A Espada de VanellaOnde histórias criam vida. Descubra agora