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Quando o relógio toca meia-noite, as feras são liberadas.

Tique-taque.

Todos estavam arrumando as coisas. Ficamos por ali mais dois dias, onde Zahara me deu remédios estranhos, mas que tiravam minha dor numa velocidade anormal.

Meus amigos já esperavam do outro lado da cortina de lodo velha quando a garota de cabelos brancos, de braços cruzados, me observou com as sobrancelhas brancas franzidas.

Ergui as sobrancelhas, perguntando silenciosamente o que ela estava pensando.

Não a conhecia muito. Entretanto, Zahara conseguia fazer parecer que conhecia-nos há muito tempo. Mantinha a conversa leve e tranquila, porém sempre atenta a tudo. Parecia ser uma pessoa sozinha e disse que o povo dela passava por problemas, o que me levava a fazer duas teorias: por algum motivo, seu povo a odeia ou ela perdeu tudo o que significava para ela. Talvez as duas coisas.

Ela inclinou a cabeça.

— Você é a garota que saiu de Ayllier, não é?

Enrijeci a coluna. Levei a mão para próxima da minha cintura, sentindo-me decepcionada ao lembrar que minhas adagas e facas não estavam ali.

— Como sabe disso?

— Uxtan ama falar. Foram alguns anos até que os boatos começassem a se espalhar e chegaram na minha porta.

— Está aqui há muito tempo?

Ela negou.

— Doze anos são muitos para você?

Dei de ombros.

— Mais da metade da minha vida, então sim.

Ela riu com um sorriso quase discreto. Desencostou das prateleiras, apoiando a mão direita em uma grande faca curvada pendurada em sua cintura.

— Não chega a ser nem um terço da minha — disse.

— Se eu perguntar quantos anos você tem, será falta de respeito?

— A sua sorte é que não me importo com a idade. Mas acho que se você somar a idade de todos os seus amigos, consegue chegar na minha.

Arregalei os olhos.

— Cento e setenta!

Pude vê-la gargalhar.

— Certo, talvez eu tenha exagerado. Tenho cento e vinte e sete.

— Ainda é muito velha.

— Sempre serei muito velha. E não precisa dizer que não parece. Sei disso.

— Você não é humana, né?

Ela negou, repuxando um cordão da calça para amarrá-lo novamente.

— Sou uma Dyriug. Costumamos ter a força de gigantes, apesar do tamanho humano, para resumir. Para a sorte ou azar, vivemos em torno de 642 anos.

— Então você é bem nova.

— É. Por assim dizer.

Observei a gruta onde estávamos. Zahara deve ter demorado alguns anos para construir aquele lugar. Paciência era o que não lhe faltava.

Deslizei a língua entre os dentes. Mas se há tanto tempo estava viva...

— Você me viu sair de Ayllier, não viu?

Ela levantou uma sobrancelha.

— Impressionante. Você é esperta.

Ela blefou sobre demorar anos para chegar na porta dela. Quando fiquei em silêncio, ela retornou a dizer:

— Não a vi, mas estava em Uxtan quando aconteceu. Fui resolver assuntos com alguns mercadores e mercenários próximos à região oeste. Os terríveis sons que aquela prisão soou durante toda a noite em alarme porque alguém escapou... nunca ouvi algo tão apavorante. O boato se espalhou rápido.

— Sempre, né?

Seu olhar estava um pouco sombrio. Os olhos negros deslizaram sobre meu rosto, com um brilho distante.

— Sabe, garota, fazer Ayllier procurar por você foi um marco muito grande na história. Talvez nunca alguém faça o mesmo.

Sabia o que ela queria dizer. Aquela prisão era silenciosa. Não existe som, nem uma manifestação de vida; como se a criminalidade do reino não existisse. Como se a criminalidade não fosse a própria corte e quem a comanda.

— Nunca pensei em uma revolução — falei.

Zahara soltou um riso desanimado, trocando o peso de pés e lançou um olhar para o lado de fora antes de voltar-se para mim.

— Eu acho que quem começou com tudo isso também não. Mas ele não esperava essa proporção. — Antes que eu pudesse responder, ela pôs a mão no meu ombro e completou: — Vamos logo, Gaëlle. Arthora precisa de você.

Arthora | A Espada de VanellaOnde histórias criam vida. Descubra agora