No vale dos sonhos, local para qual Kaira vai quando sonha com alguém, tinha um fuso horário diferente do mundo real. Por isso sua noite tinha sido uma droga, ela havia dormido pouco – apenas três ou quatro horas – e quando chegou a hora de encarar o mundo do lado de fora do seu quarto, sentiu-se exausta. Achou que o próprio corpo não suportaria terminar aquele dia até que fosse possível dormir novamente.
Quando foi a escola naquela manhã seu sorriso não era o dos mais verdadeiros, não se importou com o olhar curioso sobre ela durante todo o tempo. Toda vez que piscava Kaira tinha a impressão de que as sombras das pessoas dançavam a sua volta. Aquele sono todo não conseguiria ser controlado por muito tempo, o mundo dos sonhos exigia muito dela roubando-lhe o que considerava mais importante: sua noite de sono. A magia sempre vinha com um preço, ficar exausta era apenas uma das muitas consequências para os usuários da magia.
A mão firme de Enzo estava no seu pescoço, eles tinham aula de cálculo juntos e para evitar que ela deitasse no seu ombro e dormisse sua mão se mantinha ali sustentando-a como uma coluna de concreto. A aula se arrastou, pelo que parecia horas infinitas. Palavras e mais palavras ditas pelo professor, cada vez mais os números faziam menos sentido para Kaira.
A permitida lei de tortura chamada escola acabou depois de horas que pareciam estar além do que alguns chamariam de infinito. Kaira agradeceu mentalmente por não ter vindo andando naquela manhã, Enzo foi busca-la evitando que seu sono causasse algum acidente nas ruas. Se despediu de Will e Gwen com um breve aceno. Não demorou para que ela e Enzo chegassem na sua casa. Como sua mãe estava em plantão, eles não precisaram burlar nada e apenas subiram para o quarto.
A cama parecia bem receptiva, por isso Kaira se jogou nela como se fosse uma piscina. Enzo riu baixinho e logo seus braços a estavam envolvendo, ele disse alguma coisa mas assim que sentiu seus cabelos sendo afagados Kaira caiu em um profundo sono.
~ o ~
- Gwen me disse o que aconteceu. Não acha estranho essas coisas que vem acontecendo? – perguntou Enzo.
Quando Kaira acordou sentiu seu corpo mais leve e sua mente totalmente clara, virou-se para o lado e viu que Enzo ainda permanecia deitado ao lado dela comendo um pacote de bolacha doce. A conversa tinha permeado por vários assuntos até que chegou no assunto que estava tirando o sono dela. Kaira não gostava muito quando Enzo citava aqueles assuntos, mas ela respondia porque sabia que acalmava a curiosidade dele.
- É estranho, eu acho muito estranho – respondeu Kaira, pegando uma das bolachas –Mas desde que tenho 16 anos posso fazer o que faço, porque então de repente as coisas saíram completamente do meu controle?
Enzo baixou os olhos, como se ler as informações nutricionais da bolacha fosse algo realmente divertido. Às vezes Kaira achava que todo aquele medo que a mãe dele tinha dela, se projetava no namorado. Ela não o culpava, se fosse tão humano quanto ele talvez sentisse medo de toda aquela magia. Kaira não entendia porque ele perguntava, talvez Enzo só quisesse confirmar o que a mãe dele dizia para se sentir melhor com si mesmo.
-E se alguém quer entrar em contado com você – disse abruptamente.
-Contado comigo? Não tenho nenhum morto que queira falar comigo, nem mesmo minha avó.
-E se for alguém vivo? Não um morto, sabe? Sei lá Kaira, é só uma suposição. Às vezes você é racional demais, pense com base nos dons que sãos seus.
Kaira suspirou. Ele tinha razão, ela era racional demais para alguém que tinha magia viva correndo nas veias. Talvez ser racional interferisse no seu modo de ver o mundo, de ver a magia escondida em cada pedaço das coisas que aparentemente são ordinárias. A verdade era que Kaira não sabia se cutucar a magia com vara curta era a melhor das opções, a boa escolha poderia envolver deixar tudo aquilo bem quieto e esquecer que aquelas coisas estavam acontecendo.
- Alguém vivo? Talvez você só esteja lendo Stephen King demais, e entendo porque o cara é fantástico mas não acho que seja o meu caso.
-Não sei – afirmou – Mas pense bem. Eu tive, o que quer que aquilo seja, no meu corpo e queria falar com você. Depois você acorda no meio da noite fala uma língua que ninguém entende e disse que também ouviu algo como eles estão vindo – Enzo não fazia uma pausa enquanto falava – E se tem alguém que quer falar com você?
-Vamos supor que essa pessoa exista, tem alguém querendo falar comigo, como eu respondo?
-Não sei – murmurou baixinho – Vamos descobrir.
Ficaram ambos quietos, todo o barulho no quarto era bolacha se quebrando em suas bocas. Havia algo de especial em Enzo, seus olhos eram como se Kaira o conhecesse a mais tempo do que o mundo permitia, a mais tempo do que qualquer um soubesse. Era apenas uma impressão, ela queria se deixar se apaixonar por isso. Seria mais fácil assim.
-Você cresceu dentro de uma igreja, Enzo. Como acredita em mim? Não tem medo? – perguntou olhando pela janela – Às vezes eu tenho medo da magia, de saber o que ela pode fazer comigo.
Ele suspirou e abriu um pequeno sorriso lateral.
- Existe um paraíso, Kaira. Se acredito que existe isso, acredito no inferno. Não sei a qual das extremidades você pertence, mas continuo a acreditar em Deus. Meu amor por você não está relacionado a isso – disse ele – Acreditar em Deus me faz acreditar no demônio.
-Acha que pertenço a....ele não é?
Kaira nunca tinha ido a igreja. Não era batizada. Seus pais sempre acharam isso completamente desnecessário, ela queria acreditar em seres superiores, deuses gregos, qualquer coisa como Enzo acreditava. Seu coração se recusa acreditar em algo que fosse feito para ter medo, se existia um Deus talvez Kaira o temesse por saber que ele jamais criaria alguém como ela.
-A verdade?
-Somente a verdade.
-Sim eu acho que você pertença ao inferno. Mas isso não diz a respeito do que eu sinto. Você não escolheu ser o que, você simplesmente adquiriu.
Kaira sorriu e sussurrou.
-Obrigado.
-Pelo que?
-Por amar alguém como eu.
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Coroa de Vidro - Livro 1 (COMPLETA)
FantasyAprender a temê-la antes de amá-la é a primeira regra. Kaira Lancaster é a tirana rainha de Hidryan. Em uma noite da qual não se lembra enviou-se ao globo dos humanos deixando a magia e suas lembranças para trás. Tudo o que lhe restou são lembrança...