Capítulo 24 - A Promessa

757 61 5
                                    

O palácio estava gelado. Do lado de fora a chuva caia com os raios estrondosos, o barulho causado por gotas tão pequenas incomodava a rainha naquele dia, a dor de cabeça a atingiu completamente. Levantar da cama era uma tarefa árdua, a cabeça pesava e os olhos doíam ao mínimo contado com a luz, embora se quer houvesse sol. Por isso Kaira passou o dia na cama envolta nos cobertores.

Com o céu nublado apenas a chuva o contornava, as nuvens escurecidas faziam de todo espaço uma sombra nova. A imensidão cinza acima do palácio parecia refletir com precisão seu humor, toda a dor acumulada nas temporãs era latejante, quase enlouquecedora. Se Kaira fosse um fenômeno da natureza seria a tempestade, ela era a própria tempestade com todo aquele mal humor.

A rainha impediu que seus olhos se enchessem d'água causada pela dor repentina que aparentemente não tinha nenhuma explicação, eles se enchiam com a mesma facilidade que a cabeça latejava como uma música incessante. Kaira encolheu seu corpo transformando-o em uma bola, joelhos que agora se acomodavam nos seios e mãos que seguravam a cabeça como se ela fosse cair.

Ordenou que não entrassem no seu quarto, não precisava de companhia e não a queria de forma alguma. Se Will entrasse tentando usar sua magia nela, Kaira sabia que o mataria. Não pensaria um ou duas vezes, apenas o mataria como fazia sua antiga personalidade. Ela precisava que a dor passasse e voltasse do inferno de onde tinha saído. Soraya era a única com autorização para entrar, a empregada sentia-se na obrigação de acabar com o desespero de sua rainha mas não podia.

- A senhorita nunca teve dores tão fortes como essa – disse Soraya – Quer que eu traga sua comida?

-Não, só quero que a dor pare.

Foi então que começou. As vozes invadiam sua cabeça, os gritos ininterruptos e as suplicas vinham como uma ligação entre Kaira e outras pessoas. Apertou as mãos geladas ao redor da cabeça e o grito gutural rasgou sua garganta saindo como um animal enjaulado. A neblina densa preencheu o quatro repentinamente, primeiro começou a sair das paredes como suor até que invadiram todo o quarto torando-o branco. Kaira pensou que não conseguiria respirar, seus pulmões pareciam estarem cheios de água.

Por dentre a neblina branca um vestido se agitava, dançava como se uma brisa o acompanhasse. A sala mexia-se como as chamas do fogo, por dentre danças e neblina Kaira pode ver um rosto se formando. Primeiro um sorriso, traços foram formando a silhueta de alguém magro e alto. Era uma mulher. Seus cabelos eram exageradamente grandes e dourados, a magreza do corpo era assustadora, havia curvas pequenas para olhos grandes esbugalhados. Podia ver os ossos das suas omoplatas expostos sob o tecido fino do vestido, ela estava definhando. Era apenas um saco de ossos e peles, Kaira teve a impressão de que ela poderia desmanchar-se na sua frente.

- Demorei para encontrar uma passagem até você – disse a mulher, Kaira reconheceu a voz com tanta rapidez que se assustou – Fiquei espantada que mesmo sem memória ainda mantenha a barreia aberta.

Dentre a forte dor de cabeça imagens de um pacto feito com sangue vermelho e azul vinham repetidamente na memória da rainha. O sorriso sombrio e o corpo sensual da mulher a sua frente eram imagens passadas, mesmo com a dor tudo o que ela pode fazer foi soltar uma longa e malévola gargalhada. Kaira sentiu alivio em reconhecer aquele rosto, aos poucos as coisas estavam se encaixando.

-Você está mesmo definhando Lilith – Kaira sorriu com escárnio, olhou de soslaio para Soraya e seus olhos estão arregalados e seu corpo petrificado no lugar, a rainha desejou que a empregada pudesse sair dali e que não sentisse medo – Pensei que fosse só uma metáfora quando disse que definharia de verdade.

A névoa ainda cobria Lilith como um manto sagrado, impedindo que seu corpo terrivelmente magro e deformado ficasse a mostra. Ela não sorriu, a mulher permaneceu séria emanando raiva por todo seu corpo como suor. Lilith visitara sua rainha favorita no seu sonho, mas não tinha sido o necessário para que a vadia real a escutasse. Kaira lembrava-se do acordo, sabia o que Lilith queria. Só a rainha poderia lhe dar essa liberdade.

- Você disse que voltaria, Kaira – gralhou a mulher-esqueleto – Mas ao invés disso se escondeu nos humanos e tirou a própria memória. Preciso da sua ajuda, mas temo em dizer que não temos mais um acordo.

Kaira contorceu o corpo como se fosse de borracha mesmo com a dor de cabeça irradiando para todo ele, o levantou como um animal para encarar Lilith. Ela parecia indefesa naquele momento, a rainha tinha a lembrança dela bonita e saudável. Todas as visionárias a temiam, menos Kaira. Ela sabia que poderia derrotar sua criadora porque Kaira era diferente das outras visionárias, ninguém sabia o que a fazia diferente mas ela era.

O acordo, era o que protegia Kaira, embora ela não se lembrasse ao que essa segurança a protegia temeu pelo fim daquele acordo. A raiva que nasceu das entranhas da rainha a fez sentir que poderia quebrar o pescoço da sua criadora com uma facilidade incrível.

- Tive que trazê-la de volta, só tenho que dizer que a raiva da sua irmãzinha por você está ainda maior do que quando você a matou.

Kaira sabia que tinha uma irmã, suas lembranças diziam que seu nome era Eyra, como Cameron disse, mas suas feições eram um verdadeiro mistério. Ela tentou puxá-la na memória, porém via apenas um borrão loiro como ela mesma. A rainha não a via porque não queria ver. Desejou que seu rosto fosse um mistério porque assim não a temeria.

- Porque a trouxe de volta? – perguntou em um grito agudo – Eu a matei por um motivo.

Fora a vez dela de rir, as unhas de Kaira afundaram no rosto de Lilith com um tapa.  Pedaços de pele pútrida ficaram na ponta das unhas, passou-as no vestido limpando um pouco de sangue que havia ficado ali. Em seu rosto fundo, de bochechas protuberantes por causa dos ossos as unhas ficaram marcadas com pequenos pontos de sangue.

-Você prometeu que me tiraria da prisão, como não cumpriu tive que procurar outra pessoa que pudesse.

-Eu vou fazer.

-Como posso acreditar?

-Dou a minha palavra. Eu já havia dado uma vez. Apenas preciso de tempo.

Lilith não disse nada, a promessa que fizeram naquela noite veio átona e  Kaira sabia tinha que cumprir. A noite em que fez aquela idiotice ainda era cheia de névoa negra, queria lembrar qual exatamente era a promessa. Ela não tiraria vantagem sobre isso como estava pensando, as lembranças mortas e distantes não lhe daria vantagem em conseguir o que queria.

-Não de sua palavra caso não tenha a intenção de cumprir – urrou Lilith – Sua vadia real não faz nada que cumpre, sempre foi assim. Você é um monstro, vossa majestade.

-Você vai definhar sem minha ajuda, vai ter que me dar o benefício da dúvida.

-Sua irmã vai me ajudar.

-Ela não vai – Kaira riu sarcasticamente – Não se iluda. Eyra não tem metade do meu poder. Ela não pode fazer nada por você.

Ela deu um passo na direção da rainha, apontou seu dedo magro e  Kaira quase teve o impulso de quebrá-lo. Ela quis quebrá-la e estripá-la. A raiva dentro dela era grande demais para ser contida.

-Eu te fiz assim, posso desfazer – gritou nervosa – Você retornará ao pó, foi feita dele a ele retornará.

-Está na hora de ir embora – Kaira apontou para a névoa – Suas ameaças são inúteis quando está se decompondo e cheirando a carniça, espero que os deuses não tenham piedade da sua alma.

Lilith se desfarelou na névoa e desapareceu por completo, Soraya ainda estática olhava para Kaira com olhos carregados de dúvidas e dores. A dor de cabeça ainda estava presente e persistente, agora ela latejava pelos motivos que lhe foram acarretados. Os olhares delas se encontraram por um longo tempo, nos olhos estreitos dela Kaira podia ver a lembrança de um outro encontro envolvendo Lilith.

Kaira queria poder sugar aquele medo que estava gritante nos olhos dela. Queria lembrá-la que poderia cuidar de Soraya. Mas no fundo, talvez bem no fundo, Soraya não acreditava tanto na mudança da sua rainha. Soraya podia ver o mal nos olhos dela. Era exatamente o que Cameron e Lilith viam, a maldade escorrendo por todo seu corpo e derretendo a pele de bondade que ela mesma inventou.

-Não pode dizer nada a ninguém sobre o que viu aqui, Soraya – disse a ela.

- Não direi, senhorita. Tem minha promessa.

E ela sabia que tinha.

Coroa de Vidro - Livro 1 (COMPLETA)Onde histórias criam vida. Descubra agora