– Com sabe que isso está envenenado?
Asher tinha perguntado aquilo para Kaira um milhão de vezes e em todas elas ela deu a mesma resposta. Sentados na sacada em duas cadeiras de madeira eles observavam o bolo de chocolate na mesa que os separava, o presente tinha chegado para Kaira da cozinha e ao que indicava ela tinha outro inimigo, esse dentro do castelo.
A neve começou a cair gradativamente do lado de fora o que fizera Kaira vestir calça comprida e um casaco vermelho pesado. O cachecol enrolava em volta do seu pescoço como uma cobra, com os cabelos presos em um coque e botas até a altura dos joelhos quase conseguia ser imune ao frio.
– É uma planta rara, me mataria se eu tivesse comido um pedaço de bolo com mais vontade – explicou ela novamente – Devem ter sido os rebeldes, eles nunca gostaram muito de mim mesmo. Os fracos e oprimidos querem.... bem, nunca entendi o que eles queriam. Alguém na cozinha não gosta muito de mim.
A quem Kaira reclamaria sobre aquilo? Ninguém a levaria a sério, tampouco achou que Asher acreditaria quando os sinais básicos de envenenamento começaram a aparecer, ela soube reconhecê– los. Não tomou nada que os rebatesse, porque era uma quantidade muito pequena e que apenas causaria uma dor de barriga mais tarde.
– Como você não pode ver a desigualdade gritante na sua cara. Você já andou além dos bairros nobres? Foi nos vilarejos pobres? A magia deles não funciona porque a fome é maior que isso.
–
Mas a pobreza está em tantos lugares, porque eles se levantariam? É um grande risco, ainda mais por envenenamento que se não for bem executado deixa rastros e o culpado seria morto, a menos que eles procurassem um mártir.A história contava que existiam rebeldes por todos os lugares, levantes já foram controlados mas nunca um dos castelos foram atacados. Essas foram as informações que por anos chegavam aos ouvidos de Kaira, ela nunca achou que os rebeldes fossem relevantes. Que poderiam causar algum mal verdadeiro.
– Você não faz ideia de onde vem sua magia, não é mesmo?
Ela ficou quieta para que Asher continuasse a falar, talvez Kaira estivesse lutando pelo povo errado ou melhor pelos motivos errados.
– A magia está controlada nos castelos e nas mansões nas suas redondezas. Você leu os livros, sabe que ela precisa de uma fonte. As pessoas ao sul de Hidryan, por exemplo são escravizadas e mantidas sob condições inumanas para que elas forneçam magia a realeza, são campos de trabalho escravo.
Mesmo que a magia precisasse de uma fonte o que Asher disse tinha sentido, se as pessoas fosse submetidas a trabalho escravo e o sangue delas fosse derramado na terra por muitos e muitos anos aquilo continuasse aquele lugar se tornaria em um posso de magia. O sangue banharia a terra por milênios e então ela se tornaria mágica.
– Se eles param de se sacrificar, se o sacrifício acaba a magia também vai embora.
Adelina não queria que Kaira fizesse a magia sumir, queria que ela a sugasse e depois a transferisse para objetos e então só a realeza teria acesso a algo que os deuses deram a todos. A magia que eles jogaram sob os transformou no pó da terra em algo que tivesse muito além de vida.
— Se o sangue deles deixar de existir, se houvesse igualdade a magia não existia porque cada um teria que ter um objeto do qual puxar – complementou Asher.
– Fiquei tempo demais sem sabe essas coisas, eu sempre tive professores e tudo que eu sabia sobre magia era o básico e agora...
Kaira se sentiu uma verdadeira idiota, ensinaram– na lições que não serviam para que ajudasse o povo. O poder nunca faz alguém sábio, ele os torna tolos com coroas na cabeça que julgam saber o que é certo para uma nação inteira.– A maioria dos reis e rainhas não sabem sobre isso, tem que se viver nas ruas para entender o que se passa com o povo – disse Asher, fora como se os pensamentos de Kaira fossem de total conhecimento, por um momento ela desejei que fosse, que Asher pudesse a ouvir.
– Há quanto tempo existem esses rebeldes? – perguntou – Eu sei que há bastante tempo mas...
– Antes de você nascer, eu até mesmo eu nascer. Quando eles se levantarem, não vai sobrar nada, não existirá piedade.
Porque haveria piedade? Viveram oprimidos por séculos. Não haveria piedade e todos que ficassem em seu caminho seria massacrado.
Ela suspirou e seu bafo quente formou uma fumaça esbranquiçada saindo da boca, havia algo de sedutor naquela neve toda. Devia se ao fato de que ela era mortal e fria, dava a sua vítima um morte lenta e dolorosa, congelamento era uma morte que poderia levar horas.
– Há tanta coisa para saber – murmurou ele.
Sob seus olhos havia uma bruma brilhante, dizendo tudo que Asher não podia dizer em voz alta porque estávamos cercados de guardas, de ouvidos sob a paredes, de pessoas que não precisariam de uma ordem para executar nós dois.
– Você é um deles, não é?
– Sim, Lady Kaira, eu pedirei que tragam mais livros ao seu aposento – Asher disse mais alto do que precisaria.
A princípio ele parecia ter perdido o juízo, mas quando a porta abriu escarando– se e um guarda entrou o chamando tudo fez sentido. Asher até podia conter pouca mágica dentro de si porque no fundo era dono de imensuráveis dons que ele mesmo criou, dons esses que vieram com o treinamento que recebeu. Estavam escutando nossa conversa.
– Capitão, temos um chamado urgente.
Asher sorriu e fez uma revência antes de desaparecer.
Kaira saiu da janela e foi para a cama, deitou ainda usando as botas e se encolheu entre os milhares de travesseiros. O corpo pesado de tantas informações agradeceu ao deitar– se em uma cama tão macia, suspirou imersa nas palavras que havia acabado de escutar. Adelina se julgava tão esperta e tinha um dos rebeldes sob seu nariz. Foi com aquele pensamento que Kaira deu risada e o sono apareceu e naquela noite, ela sonhou com a mãe.
Foi um sonho lúcido, os olhos de Kaira se abriram e ela pode vê– la com toda as graça sentada ao pé da cama. Um sorriso corajoso nos lábios e o rosto delicado que a rainha Stela conquistou toda uma corte. A jovem desejava ser mais parecida com mãe, não fisicamente mas todo o resto.
– Isso é resultado do pouco de veneno que ingeri? – indagou sentando, recostando na cama e a olhando.
Kaira gostava de olhá– la, era como se aquela garota que o Dex amava estivesse de volta. Sua mãe sorria, um pequeno sorriso parecia transmitir todo o amor que Kaira precisaria para o resto da vida.
– Não, você tem uma ajudinha da coroa para falar com quem está do outro lado. Você precisa ir embora, Kai.
– Eu não tenho para onde ir, mãe.
– Se continuar escolhendo o caminho mais fácil acabará escrava dos próprios caprichos.
As mesmas palavras ditas pelas visionárias legionárias fora proferida pelo fantasma da sua mãe, elas tinham razão mas ainda era difícil engolir aquilo, sair daquela nova prisão em que vivia era mais confortável para Kaira do que ir de fato resolver os problemas.
– Para onde eu vou?
A rainha sorriu piedosa fazendo Kaira se lembrar todas as qualidades que não tinha. Sua mãe não precisou ser clara para dizer o que queria dizer, até mesmo porque o que ela tinha para falar era o que Kaira suspeitava que seria sua escolha. Apenas não podia deixar tudo para trás mais uma vez, embora soubesse que jamais encontraria o que tinha ido procurar naquele castelo. Sua salvação de fato não estava ali. Nunca estivera.
– Eles ficaram bem aqui, seguros. Essa luta é sua, Kai. Não deles.
A luta era dela. Sua mãe tinha razão. Os quadros tinham razão. Kaira só precisava obedecer.
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Coroa de Vidro - Livro 1 (COMPLETA)
FantasyAprender a temê-la antes de amá-la é a primeira regra. Kaira Lancaster é a tirana rainha de Hidryan. Em uma noite da qual não se lembra enviou-se ao globo dos humanos deixando a magia e suas lembranças para trás. Tudo o que lhe restou são lembrança...