Capítulo 28 - Lírio das Fadas

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Kaira passou todos os dias treinando e todas as noites na cama do Cameron, ela sentia que poderia lidar com toda a pressão desde que estivesse com ele. Naquela noite ela não foi vê-lo, Soraya – que era a única que sabia sobre as visitas ao rei feérico – recomendou que eles se dessem um dia de folga. Devia passar da meia noite enquanto ela ainda não tinha sono, as sombras dançavam uma valsa sinuosa conforme Kaira andava pelos corredores. Descalça, ela não emitia qualquer barulho. Era uma caminhada silenciosa e assustadora a certo ponto, mas precisava fazê-la para que suas perguntas a deixassem dormir.

Ela desceu até as celas, dois lances de escada a separavam do único lugar em que seus pés ainda não tinham pisado. A escada em forma de caracol era claustrofóbica, feita de pedras e cheias de lascas, quando mais se descia mais faltava o ar. O chão era de cimento, não tinha carpete como o restante do castelo. As celas ficavam na direita e esquerda feitas de ferro enferrujado, fazia o lugar ser ainda menor do que realmente era. Haviam oito de cada lado, fedia a bolor e urina, o cheiro saia por pequenas janelas nas celas fora isso era completamente fechado. Dentro das  tudo era oco, vazio e escuro. Ficar ali era um passo para se morrer mais rápido.

O guarda na porta usava o uniforme preto, como os empregados, ele mantinha as mãos para trás e encarou-a. Seus cabelos eram loiros e os olhos negros, notoriamente muito mais alto do que a rainha, forçou um sorriso quando viu que ela ficaria ali.

-Boa noite, Majestade – disse ele – Sou Philipe, em que posso ajudar?

-Boa noite – respondeu Kaira ainda com os olhos nas celas – Só estou... olhando.

Enquanto seus passos silenciosos andavam pelo corredor sujando a sola dos pés que ficariam pretos, sentia o olhar penetrando de Philipe atrás de si. Não teve dificuldade em ignorá-lo, embora não soubesse o que fazia ali. Kaira simplesmente fora chamada para as celas abaixo dos seus pés, ela queria estar naquele lugar escuro e sujo porque achou que talvez encontrasse respostas ali.

Se ela tocasse naquelas selas quase podia sentir as pessoas que estiveram presas, pessoas que ela prendeu. A maldade nela mesma era assustadora, as sombras que perseguiam todo e qualquer passo que Kaira dava e não havia nada que pudesse fazer. Por um lado, o remorso passageiro logo sumiu, Kaira perguntou porque estava tão vazio.

- A senhorita não deveria estar aqui, durante a noite é.... barulhento.

Kaira o olhou curiosa. Tudo o que podia ouvir naquele eram as respirações e vozes nada além disso. Ela não queria prestar atenção a que tipo de barulho ele falava, no fundo Kaira fazia ideia do que o soldado falava.

-Do que você está falando?

- Das vozes – murmurou.

-Que vozes?

-Das almas. Elas gritam durante a noite.

Gritam por rendição, porque ela quem as prendeu naquele lugar até o dia da sua morte. Ela as fez sofrer até que a morte fosse o mais doce que poderia dar. A lembrança veio em formato de rostos retorcidos e gritos estridentes. Nunca ouve penitencia para ela, nunca ouve arrependimento, porque Kaira achava que tinha feito o que era certo e principalmente o que queria.

- Algumas pedem ajuda e outras simplesmente puxam a gente quando passamos – disse Philipe – Vossa Majestade as vezes é chamada, outros a amaldiçoam.

-Tranque isso aqui Philipe, até precisarmos usar. Não precisa ficar aqui em baixo, pode ficar na porta e não deixem que entre aqui. Entendeu?

-Sim, Majestade.

Ninguém mais as escuraria, as almas poderiam dizer coisas que ninguém sabia sobre a rainha e aí sim ela teria um problema para adicionar a sua lista interminável de problemas. O que ela tinha feito aos corpos que já jaziam ali um dia não era do interesse de nenhum humano ou sobrenatural.

~ o ~

Will estava no quarto quando Kaira voltou, sem fome ela apenas aceitou a bebida que o capitão lhe trouxera. Ela não conseguia deixar de pensar em todas as almas que morrerem sob suas mãos, sobre os que morreram porque a arrogância e petulância da rainha de Hidryan era maior do que tudo.

O líquido alaranjado que Will lhe trouxera tinha um gosto agridoce, era um pouco azedo mas de todo modo quando chegava ao fundo da língua quase descendo pela garganta o gosto ficava amargo de verdade. Por isso toda vez que chegava naquele ponto Kaira acabava fazendo uma careta horrível.

-Do que isso é feito? – perguntou ela sem desmanchar a careta.

- É uma mistura de chá de lírio com mel das fadas – respondeu Will olhando, certificando-se de que a rainha estava tomando toda a bebida – É uma delícia não é?

-Tem um nome?

-Não, só chamamos de uma boa maneira de ficar relaxado.

Kaira deu uma risada baixa e bebeu mais um pouco. A noite estava fria, o vento não bagunçava seus cabelos presos em tranças laterais, a capa longa e marrom protegia o corpo dos ventos mais bruscos. Conforme ela bebida, Will a olhava garantindo que  amiga tinha bebido tudo, aquela era a última alternativa que ele podia usar, haviam se esgotadas todas as outras. As menos invasivas.

A mente dela fora desligando cada vez que piscava os olhos, os músculos relaxaram e se tornara muito fácil dar uma risada por nenhum motivo especifico. Cada vez que o ponteiro do relógio se movia a noite dela ficava banhada em esquecimento, todas as palavras ditas acabavam desaparecendo e ela não sabia onde estava se metendo. Kaira acabou bebendo mais copos do que realmente gostaria de tomar, aquela magia da compulsão estava em Will e em todo ambiente novamente.

- Isso é algum tipo de droga disfarçada? – perguntei a Will.

- Não, você só está mais relaxada – Will se levantou e andou até onde ela estava sentada na cama, as mãos dele se acomodaram na curvatura da cintura dela, elas estavam geladas o que fez Kaira estremecer e soltar uma risadinha baixa de puro desespero.

Seus beijos começaram no pescoço dela e desceram para o busto, embora estivesse sentindo cada um dos seus toques Kaira estava semiconsciente. Seus pensamentos giravam e a risada era presente enquanto seus beijos deveriam se tornar excitantes. Com olhos confusos olhou ao redor vendo os móveis ficando distorcidos, a janela parecendo distante e derretida, ela forçou os olhos procurando algum tipo de foco mas não funcionou.

- Will não – murmurou.

A voz de Will chegava aos ouvidos dela como se estivesse debaixo d'água. Ele sorria todavia Kaira não entendia nenhuma palavra dita. Ela manteve o sorriso no rosto, embora por dentro um desconforto crescesse. O pânico a atingiu quando o corpo dele deitou na cama. Os membros inferiores e superiores da Kaira não mexiam, o corpo presente na cama demonstrava-se sem reações, quais quer beijos ou toques dados por Will não eram sentidos, ela estava lucida mas incapaz de recusá-los ou fazer qualquer outra coisa.

Ele não a escutava. Em algum momento Kaira teve a impressão de que tinha sido presa em uma redoma de vidro que refletia coisas diferentes. Will não a escutava, ele parecia se deliciar com aquele momento incerto de tortura. Na cama com ele estava outra versão dela, enquanto seu verdadeiro eu gritava por dentro trancada naquela redoma do qual não podia quebrar o vidro.

Will se afastou, Kaira o escutou falando com alguém mas não conseguiu virar o rosto para ver quem era. O desespero cresceu em proporções que ela não podia descrever, tudo transformou-se em imagens distorcidas. Seu corpo estava na cama estirado mas por dentro Kaira gritava desesperada para que quebrassem o vidro de onde fora presa.

Então a escuridão veio. 

O vidro estourou e ela não soube mais discernir o que era real e irreal.

Coroa de Vidro - Livro 1 (COMPLETA)Onde histórias criam vida. Descubra agora