Capítulo 50

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Leah

Eu levantei cedo no dia seguinte, embora quisesse ficar o dia todo na cama - na verdade, eu sentia como se pudesse. Minha cabeça doía por não ter dormido direito, e precisei me certificar, no banheiro, de que meus olhos não estavam inchados antes de sair.
Relutei para tirar meu pijama, porque isso significaria que eu teria de realmente levantar, mas eu sabia que minha mãe planejava algo para o dia - talvez ir ao cinema ou ao seu museu favorito. Na verdade, eu apostava em passar a tarde no shopping, mas eu teria de convencê-la do contrário, porque eu não estava exatamente animada para fazer compras - mesmo que isso significasse passar na que costumava ser minha lanchonete favorita depois, que ficava no caminho (eles costumavam fazer batatas ótimas).
Depois de enrolar na cama pelo o que pareceu tempo demais, resolvi vestir um jeans, e meu colete velho - uma das roupas que eu havia deixado na casa - e me parecia quente o suficiente para aquele dia frio. Talvez se chovesse nós pudéssemos ficar em casa, pensei, mas logo me arrependi, porque mamãe parecia animada pra caramba por estarmos ali, e eu não iria estragar aquilo.
Não me preocupei em pentear meu cabelo - ele ainda estava curto o bastante para não ser necessário, e depois de escovar os dentes e passar uma quantidade absurda de corretivo, numa tentativa de esconder minhas olheiras, desci as escadas. Meu pai já havia saído pra trabalhar, e notei que todos já haviam tomado café. Rebeca mexia em seu computador, esparramada no sofá, e minha mãe lia um livro no outro.
Então me lembrei de que talvez eu não tivesse acordado tão cedo assim - em casa, todos tinham o costume de levantar antes das seis, por algum motivo que eu não conseguia entender, e eles pareciam já ter feito uma série de coisas enquanto eu dormia. A casa já estava arrumada, havia sacolas de supermercado espalhadas pelo chão e a julgar por sua roupa, Rebeca parecia ter ido correr.
- Bom dia - sorri, pegando um copo de suco da geladeira, e minha mãe disse que havia sobrado bolo da noite anterior, então cortei uma fatia grande. Eu sentia falta de seus bolos - céus, eu ainda não entendia porque ela não os vendia. Eram ótimos.
Então Rebeca me disse que mamãe tinha ingressos pra uma exposição sobre pintoras europeias, e que começaria às onze, então era melhor eu me apressar, porque ela tinha certeza de que haveria uma fila enorme.
Fiquei feliz por não irmos às compras, e ainda pensando em sugerir que assistíssemos a algum filme pela NETFLIX, ao invés de sair de casa quando tudo sugeria que poderia chover, mas então vi que minha mãe parecia animada - ela adorava essas exposições, e me lembrei de que eu também gostava. Ou costumava gostar, porque tudo naquela cidade me lembrava coisas que eu queria esquecer.

***
A fila não estava tão grande, afinal, e demoramos apenas alguns minutos para entrar, e assim que o fizemos, tentei não pensar nos acontecimentos da noite anterior, ou em nada que pudesse estragar aquilo, e pareceu dar certo. A exposição tinha quadros incríveis, e no final, precisei lembrar a mim mesma de fotografar um que havia gostado.
Saímos de lá cerca de duas horas depois, e concordamos em ir comer alguma coisa. Embora ainda houvesse comida o suficiente em casa para mais algumas refeições - minha mãe realmente havia exagerado um pouco - não queríamos voltar pra casa, por isso fomos até o shopping mais próximo dali (na verdade, o único da cidade).
- Você ainda gosta disso? - Rebeca perguntou quando me viu voltar de minha lanchonete favorita com uma porção enorme daquelas batatas com manteiga e molho especial, e lhe ofereci uma.
- Sempre vou gostar - enfiei algumas na boca, sentindo o queijo derreter, e percebi que estava com fome.
Minha mãe e Rebeca pediram pratos do restaurante japonês, e ela engoliu sua comida em alguns minutos, dizendo que precisava voltar pra casa - ela tinha algo pra enviar, para seu trabalho, até o fim daquela noite.
- Aproveitem o restante do almoço - Rebeca abraçou mamãe, e soprou um beijo em minha direção, roubando algumas batatas.
Então mamãe me pediu para acompanhá-la até uma das lojas de maquiagem que ela gostava, pois estavam fazendo uma promoção de sombras. Enquanto ela conversava com uma das vendedoras, experimentando uma série de tons em sua pele, fiquei observando alguns batons que prometiam secar rápido, e mamãe acabou me convencendo a comprar um.
- Vão ficar ótimos em você - ela disse, me estendendo depois uma sacola com todas as coisas que havia me comprado, e eu provavelmente não usaria. Tudo bem, aqueles batons eram muito bonitos.
Estávamos saindo de uma livraria, onde comprei um livro de contos que a vendedora me indicou, quando as vi. Na verdade, mamãe as viu primeiro, e acenou, então olhei naquela direção, e vi Keana puxar sua irmã mais nova, Sofia - que eu tinha certeza ter crescido alguns centímetros desde a última vez que eu a havia visto e se lambuzava com um sorvete azul.
- Olha quem está ali - minha mãe acenou de novo, caminhando até sua direção, e eu podia ver que Keana parecia relutante. Fazia quanto tempo desde a última vez que havíamos nos falado? Eu sabia que deveria tê-la procurado na última vez que eu havia vindo para a cidade - aquele dia desastroso, em que acabei em um bar com Mick - mas desde aquela noite, eu não conseguia mais olhar pra ela. Que dirá passar horas no telefone conversando sobre algum filme que estrearia no cinema, garotos, escola ou qualquer uma de nossas preocupações.
Ela estava com raiva, eu percebi. É claro. Mas ainda assim veio em nossa direção, e lançou um sorriso para minha mãe. Eu sabia que ela estava me encarando fixamente, e queria dizer para ela parar, mas então Sofi veio me abraçar, me oferecendo um pouco de seu sorvete, e a atmosfera estranha se dissipou por alguns instantes.
- Leah - ela deu um pequeno aceno pra mim, e voltou a dar um gole em seu milkshake. Olhei para suas botas, provavelmente algo que eu usaria, e me lembrei de como costumávamos emprestar coisas uma pra outra, com nossos gostos parecidos. Também notei que ela havia feito uma tatuagem, que cobria quase todo o seu ombro.
Então minha mãe cortou o silêncio, perguntando o que elas estavam fazendo ali, e Keana disse, ainda sem olhar pra mim, que seus pais haviam saído, e ela estava cuidando de Sofi.
Elas continuaram conversando por alguns instantes, e peguei apenas trechos da conversa, porque eu ainda estava pensando em como tudo aquilo era estranho, quando percebi que elas estavam esperando que eu dissesse algo. Então, alguém havia me perguntado alguma coisa.
- Desculpe, não entendi - olhei para minha mãe, e ela disse que iria dar uma volta em algumas lojas, então poderíamos nos encontrar em algumas horas na praça de alimentação.
Tentei pensar em alguma desculpa plausível para não ficar ali, mas então percebi o quanto aquilo era horrível. Ela era minha melhor amiga - ou havia sido. Eu não devia ter que evitá-la daquele jeito.
- Tudo bem - concordei, então ela nos deixou sozinha, e vi que Keana estava gostando daquilo tanto quanto eu.
- Podemos comprar mais sorvete? - Sofi perguntou, depois de terminar sua casquinha, e Keana sorriu.
- É claro. Então... Você quer ir com a gente? - Keana perguntou, parecendo me desafiar a dizer sim, e eu concordei.
Pedi um milkshake apenas para evitar todo aquele silêncio, e nos sentamos numa das mesas da sorveteria, de frente para a televisão em que passava algum desenho infantil que não reconheci.
- Então...de volta à cidade? - Keana pegou uma colherada do sorvete de Sofi, e dessa vez ela me encarou, e me lembrei de quando costumávamos ir àquela mesma sorveteria, depois da aula. Às vezes ela levava a irmã, quando seus pais estavam trabalhando, e deixávamos que escolhesse todas as porcarias cobertas de açúcar que quisesse, enquanto conversávamos. Lembro de ter sido naquele lugar que ela me contou sobre Xavier, e como achava que realmente gostava dele.
- Só durante o final de semana - respondi, e ela me lançou um daqueles seus olhares. Então ela estava brava, e por alguns instantes, me permiti ficar também, porque achei que ela, mais do que ninguém, entenderia. Ela não tinha direito de ficar chateada porque eu havia ido embora. Ela sabia.
- Você está bem? - ela me perguntou, no tom de voz que usava para falar com Sofi às vezes, e então toda minha raiva de dissipou, porque ela parecia preocupada. Ela realmente parecia. Então assenti, e ela disse à Sofi para ir comprar alguns chocolates, pegando algumas moedas em sua bolsa. - Eu não tive notícias suas desde...nenhuma mensagem.
Ignorei o tom de acusação em sua voz, porque aquilo não era verdade. Nós havíamos conversado, no início. Mas não sobre aquilo - eu não podia. E como nós poderíamos conversar sobre roupas, música ou garotos depois daquela noite? Eu ainda me lembrava de como ela havia começado a chorar no carro - Keana, que nunca chorava na frente de ninguém; enquanto tentava me acalmar e dizia que estava tudo bem.
Então as conversas foram se tornando mais estranhas - nós estávamos agindo como duas estranhas, e de repente parei de atender suas ligações, porque eu não conseguia entender como eu me sentia tão desconfortável perto de minha melhor amiga.
- Eu estou bem - eu disse, e ela não pareceu acreditar. Ela me conseguia bem demais.
- Você não precisava ter ido embora - ela tocou em minha mão, mas não parecia ter certeza do que dizia.
- Podemos não falar sobre isso aqui?! - perguntei, notando que Sofi já voltava para a mesa.
- Então onde? Porque eu te procurei, Leah. Eu te mandei milhões de mensagens, e liguei. Eu estava preocupada pra cacete - então ela tampou a boca, percebendo que sua irmã havia se sentado ao seu lado - Eu não consigo não pensar naquilo, e você sabe, eu o vejo quase todo dia...
Sua pele estava vermelha, e eu sabia que ela começaria a chorar. Mas não pude deixar de ficar irritada. Porque ela precisava lembrar daquilo?
- Você não consegue não pensar naquilo? Você sabe como eu me sinto?
Tentei controlar meu tom de raiva, porque eu sabia que não podia desmoronar ali. Minha mãe estava por perto, e poderia voltar a qualquer momento. E céus, a irmã mais nova de Keana estava ali. Ela realmente queria falar sobre aquilo naquele momento?
- Não, eu não sei. - ela deu de ombros, derrotada, e peguei minha bolsa, lutando contra as lágrimas que começavam a escorrer. Me levantei, a tempo de ouvir Sofi lhe perguntar porque eu estava chorando, e corri para o banheiro.

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