Leah
Tive que fingir uma dor de cabeça para mamãe não inventar mais nenhum programa naquele dia, porque eu não queria sair de casa, e sabia que ela havia achado estranho o fato de eu ter pedido para voltarmos mais cedo, perguntando o que havia acontecido com Keana. Inventei uma desculpa, dizendo que ela precisava levar Sofi embora cedo, e torci para que não as encontrássemos novamente.
Então ela me perguntou se estava tudo bem, no caminho para casa, e precisei dizer aquilo - a coisa da dor de cabeça, o que não era em todo mentira. Eu tinha crises de enxaqueca às vezes.
Eu sabia que aquilo era horrível - eu deveria estar aproveitando o final de semana com eles, afinal, fazia algum tempo que não os via, mas como explicar que tudo naquela cidade me trazia lembranças ruins? Como dizer aos meus pais que, naquele momento, eu só queria me afastar - no sentido mais literal da palavra - de tudo e, talvez, até de mim mesma?
Esperei ouvir Rebeca ligando o chuveiro, e peguei uma garrafa de vinho na geladeira, tentando passar despercebida por minha mãe, que tinha uma centena de livros espalhados pelo sofá.
Subi as escadas rapidamente, enrolando a garrafa em minha blusa, e torci mentalmente para ela não se virar num súbito interesse em saber o que eu estava fazendo, ou me perguntar qualquer coisa.
Eu tinha certeza de que meus pais não aprovariam a coisa com as bebidas - eu nunca havia bebido na frente deles, com excessão de pequenos goles em jantares e festas de final de ano, em que parecia haver uma permissão especial para isso. Na verdade, eu não costumava gostar de beber - nunca havia visto graça quando meus amigos enchiam a cara em festas, e também nunca havia conseguido engolir mais do que um copo; com excessão das vezes em que eu abria o armário de bebidas escondido quando as coisas com Marcus fugiam do controle, numa tentativa de me desestressar. Então, uma noite, acabei exagerando, o que resultou em passar boa parte da madrugada vomitando, e todos se preocupando que eu tivesse pegado algum tipo de intoxicação alimentar.
Eu não gostava de beber, porque não gostava do depois. Eu odiava a eu de ressaca - quando todos os problemas e o desespero dormente pareciam emergir num sopro violento, me deixando sem ar. E não era divertido sozinha - era diferente do como quando Mick e eu enchíamos a cara e tudo parecia mais divertido e libertador, e eu podia ser eu. Beber sozinha era apenas solitário e dolorido - como aquele bolo preso na garganta. Mas a bebida ajudava a esquecer, por isso, dei pequenos goles, saboreando o vinho gelado num canto da minha cama, e me certifiquei de trancar a porta.
Dei mais alguns goles e puxei o cobertor, com frio, não me permitindo pensar em nada daquilo. Virei uma boa parte do conteúdo rapidamente, contendo a ânsia que subiu por minha garganta, e tentei me lembrar de como fazer aquilo ser divertido. Porque eu só conseguia me sentir perdida.
Apaguei a luz, cansada para voltar pra cama, e me sentei num canto escuro perto da janela. Nós já havíamos estado várias vezes naquele quarto - havíamos nos beijado ali. Naquela cama, perto da janela, e provavelmente em todos os outros lugares. Assistido Efeito borboleta quando eu estava gripada demais para ir à escola, e ele trouxera os meus doces favoritos.
Me enrolei em volta do cobertor, de repente querendo sair dali, e bebi mais um longo gole. Porque ele havia feito aquilo?
Eu costumava dizer a Keana que Marcus era complicado demais. Essa era a palavra que usávamos, antes daquela noite. Mas eu nunca havia dito a ela o quanto aquilo me machucava - e não apenas fisicamente. Como quando voltávamos do cinema, e ele me abraçava de um jeito carinhoso, quando de repente senti aquilo. Um bolo no meio do peito que parecia algo físico, e então me afastei, ansiosa, sem conseguir respirar. Como eu podia explicar que estava com medo do meu namorado? Que eu me perguntava o tempo todo se havia algo de errado comigo? Se eu estava exagerando, como ele dava a entender quando dizia que eu o desgastava? Porque ele não era assim. Ele era Marcus, o garoto que defendera a professora de outro aluno. Que ajudava as pessoas em física. Que dizia achar fofa a minha coisa com vegetarianismo. Que falava sobre a questão da ética nas aulas de ciências. Ele era Marcus, e não era uma pessoa ruim. Então eu era?
Virei o restante da garrafa, de repente fraca demais para me arrastar até a cama, e me encolhi numa bola, contando mentalmente até dez repetidas vezes, numa tentativa de tirar suas palavras de minha cabeça. Cada uma delas, até que eu parasse de me sentir como nada.
De repente desejei poder pegar mais bebidas, mesmo sabendo que eu não as aguentaria, e Rebeca não cairia na coisa da intoxicação alimentar caso eu passasse mal. Tentei me colocar de pé, cambaleante, e me sentei na cama, de repente enjoada demais.
Eu sabia que não conseguiria descer todas aquelas escadas sem fraquejar, e então me deitei. Talvez eu pudesse sair para comprar uma bebida, pensei, me lembrando das vezes em que Rebeca saía escondido no meio da noite, passando pela minha janela.
Pensei em tomar um banho antes, porque eu já estava ficando tonta, e aquilo não acabaria bem. E eu tinha certeza de que meu equilíbrio naquele momento não seria o suficiente para eu conseguir chegar ao gramado em pé, mas eu precisava sair dali.
Então, antes que eu percebesse, estava caminhando na direção da casa de Keana, porque na verdade era o único lugar que eu conseguia pensar - o único que não me trazia lembranças ruins.
Bati na sua porta, torcendo para que não fosse algum de seus pais quem atendesse, ou Sofi, porque eu tinha certeza de que não estava com uma aparência muito boa e possivelmente estava cheirando à bebida.
Depois de alguns instantes, ela atendeu, vestindo um macacão sujo de tinta, o que me fez deduzir que estava pintando - Keana adorava desenhar.
- O que está fazendo aqui? - ela perguntou, parecendo surpresa.
- Você tem alguma bebida aí? Acho que acabei com isso - estendi a garrafa de vinho, e ela pareceu não saber o que dizer por alguns instantes, depois me deu um sorriso incrédulo.
- Então você andou bebendo? - ela perguntou, depois de puxar a garrafa de minha mão e se certificar de que havia realmente acabado - E nem guardou um pouco pra mim. Entre. Acho que ainda tem um pouco daquele uísque velho no meu guarda roupa.
Keana costumava esconder bebidas entre suas roupas, nas gavetas, porque sabia que sua mãe não tentaria mexer naquela bagunça. Na verdade, muitas vezes nem eu me atrevia.
Pensei em um modo de tentar esconder aquela garrafa de Sofi, mas ela me disse que a irmã estava na casa da avó, há algumas quadras dali, porque ela planejava sair mais tarde. Não perguntei sobre aquilo, porque sabia que provavelmente não estava inclusa em seus plano, e eu não poderia culpá-la. Nós não nos falávamos há um tempo enorme. Mas eu não queria pensar naquilo - só queria esquecer, por alguns instantes, tudo o que havia acontecido, e fingir que era só mais uma das noites em que eu fazia algo interessante com minha melhor amiga - porra, nós costumávamos nos divertir bastante.
- Você sabe o caminho - ela gesticulou em direção às escadas, e percebi que nada havia mudado. Seu quarto ainda era uma bagunça indescritível, e ela ainda pendurava todos os seus vestidos numa espécie de cabide enorme para bolsas que ficava perto da porta. Depois de fuçar por alguns instantes no guarda-roupas, ela tirou uma garrafa de uísque escondida em um monte de panos, e me estendeu.
- Está quente como o inferno, mas é a única coisa que temos. A não ser que você queira ir no Bigode - aquele era o nome de um bar perto da nossa antiga escola, onde todo mundo costumava encher a cara - Mas eu garanto que deve estar cheio daqueles burguesinhos hippies.
Ela fez uma careta, e me lembrei de como ela costumava apelidar os garotos ricos de nossa escola - que substituíram as camisas pólos por um visual alternativo, mas continuavam respirando dinheiro. Lembrei a ela de que não éramos tão diferentes deles - tirando a parte do dinheiro - afinal, mas ela fez uma careta, me dizendo para deixar pra lá.
Nós deitamos em seu tapete peludo depois de ela ligar a televisão num clipe da Katy Perry e pegar um pacote de batatas chip amassadas.
- Então, quando vamos falar sobre aquilo? - ela perguntou, olhando fixamente para o teto, depois de dar longos goles na garrafa.
- Nós temos? - ela balançou a cabeça negativamente, e enfiei um punhado de salgadinho na boca, porque eu sabia que passaria mal em alguns instantes se não comesse algo.
Então em algum momento percebemos que aquela bebida estava nojenta pra caramba, e talvez tenha sido aquela música idiota, mas de repente ela se virou para mim, dizendo que sentia muito, e nós estávamos abraçadas. Num momento, eu procurava pelos últimos farelos do salgadinho com gosto de isopor, e no outro, soluçava encostada em seu ombro, ambas em silêncio, porque não sabíamos o que dizer. Ou talvez não houvesse nada pra ser dito. Não - havia tantas coisas. Eu não queria tocar nelas, mas Keana era a única pessoa - a única que sabia de tudo aquilo, e com quem eu me sentia a vontade para conversar, mesmo que depois de todo aquele tempo.
Eu me lembrava de quando estávamos no ensino fundamental, seu pai havia perdido o emprego, e ele e a mãe não paravam de brigar - eu não sabia sobre isso, mas eles gritavam um com o outro o tempo todo, e até cogitavam se divorciar. Keana só foi falar comigo sobre aquilo alguns meses depois, quando as coisas já tinham se acalmado, e eu entendi. Eu sabia que ela precisava de espaço até conseguir conversar. E talvez eu tivesse me sentido da mesma forma.
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Perto do limite
RomanceEu passei muito tempo tentando entender o que essa história representa - para os leitores e para mim, mas acho que, no fim, é uma história sobre se apaixonar. Sobre como o amor pode trazer de volta cores para uma parte da sua vida que estava em somb...