Cap. 23: Amargura

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Apenas fiquei observando a fábrica, imóvel, posicionada no alto da fantasmagórica plataforma. Nenhum dos bambolottos e bambolas que estava ali ousou aparecer, mostrar o rosto. Deveriam estar tão assustados, que sequer conseguiam se afastar da escuridão.

- Eu juro que... - ouvi um murmúrio, seguido de um barulho no metal e um grunhido - Aquele velho maldito ainda me paga. Vive se esquecendo de que não pode mais falar comigo dessa forma.

Meus olhos seguiram, lentamente, até onde Luigi estava fazendo seu escândalo. Haviam pessoas sendo constantemente torturadas bem ali, na sua frente, e ele sequer se lembrava de sua existência. Sequer se dava conta de que eram humanas, distraído demais com a própria mente nebulosa.

- Sinto muito por este pequeno showzinho, perfeição. - o ruivo trincou os dentes com força extrema, e a fúria que vira em seus olhos no dia em que me perseguira retornou - Espero que tenha apreciado a vista. O que meu pai idiota falou era exatamente o que queria lhe passar.

Não abri a boca, pois as palavras jorravam de seu interior com uma inexpressividade assustadora. Era cruel e asqueroso o que dizia, mas ele nem se dava conta disso. Pensei com horror que, para Luigi, talvez o mundo se resumisse àquilo mesmo.

- Vamos voltar. Não há muito mais o que apreciar por aqui, e perdi a vontade de passear... - suas mãos subiram às têmporas, como que em uma tentativa furada de manter a calma.

Eu nunca vira uma raiva tão bruta e palpável quanto a estampada no rosto do ruivo. Raiva do próprio pai, até ódio. De certa forma, parecia que era algo maior do que eu poderia compreender, algo gravado em seu ser como gravuras em uma louça: um sentimento mais profundo e transformador que qualquer outro. A raiva de Ônix por Martino não passava de um grão de areia perdido no deserto desolador que aquilo era.

O que faz alguém odiar o pai tanto assim? Pensei, sem ter certeza de que queria descobrir a resposta.

×××

Luigi quase chutou as bigornas que apoiavam as portas dentro da mansão, quando retornamos. Mantive-me calada, alguns passos atrás, perdida em pensamentos e com toda a coragem reduzida a cinzas. Quem era eu para me achar melhor que aquelas pobres almas condenadas? Quem era eu para voltar à mansão e deixá-las para trás, sem mais nem menos? Suspirei silenciosamente, antes de adentrarmos a movimentada sala de estar.

- Lu! - foi a primeira coisa que ouvi, vinda da boca de Morgana Mangini - Me disseram que você saiu!

Naquele dia, ela estava com um vestido lilás, os cabelos trançados e um batom rosa claro. As pequenas sapatilhas que usava fizeram barulho no assoalho, assim que correu na direção do ruivo, como se fosse abraçá-lo.

- Agora não, Morgana! - exclamou Luigi, pondo os dedos nas têmporas e impedindo a garota de se aproximar - Eu tenho que fum... ficar calmo agora.

Ele fez um gesto de dispensa com as mãos, que significava que tanto eu quanto os funcionários estávamos liberados, e adentrou a cozinha, desaparecendo por ela. Morgana seguiu-o com o olhar, por fim virando o rosto em minha direção. A expressão que me dirigiu antes de correr atrás do cabeça de fogo não foi amigável, e realmente não foi algo facilmente esquecível.

Sem ter muito o que fazer além de voltar para o quarto ou ficar alguns minutos ali, encarei a platéia silenciosa que observava o show.

- Nossa, isso foi tenso. - disse Thereza, que estava sentada em uma poltrona com os pés sobre o apoio esquerdo.

Ela estava segurando uma revista de moda, as unhas verdes destacadas entre as páginas e o cabelo vermelho amarrado em um coque alto.

- Pois é. - disse Lucca, que estava sentado com as pernas cruzadas em um sofá lateral, analisando as próprias unhas.

Porcelana - A Promessa Escondida (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora