Um espaço em branco. Era essa minha mente. Um borrão sem vida e sentidos, pelo menos enquanto os flashes não vinham.
De repente, do meio do nada, surgiu um brilho fraco de vela. A chama tremeluzia, nas mãos de alguém pálido e ajoelhado. O branco de minha mente se tornou breu, como se fosse noite.
- É difícil, ela não acorda! - falou uma voz distante, que feria meus ouvidos sensíveis.
Talvez eu tenha piscado, pois uma sombra se postou diante de meus olhos e voltei para o espaço em branco da mente.
Depois de algum tempo, o nada foi modificando-se até se tornar um cenário: ainda branco, ainda cintilante, mas agora feito de areia. Percebi que eu estava no chão, em posição fetal, com as mãos muito próximas do rosto.
Meus dedos também estavam diferentes, suas pontas com uma coloração estranha. Quase como um hematoma crescente, os tons de roxo e verde passaram a se espalhar milímetro por milímetro, querendo tomar o resto de minhas mãos. Levantei-me com dificuldade, desejando escapar da tormenta, e vi a areia do local escorrer lentamente, revelando um solo e paredes lisos como mármore polido.
Experimentei dar um passo, quase escorregando, mas nenhum barulho ecoou pelo deserto cintilante. Parecia que nenhum som ecoava por ali, além de uma baixa vibração que permeava o ar: sussurros.
Pisquei outra vez e de repente estava de volta ao breu. A variação de lugares me fazia sentir que meu cérebro ia se estraçalhar a qualquer momento. Virei a cabeça para o lado, deparando-me com a mesma figura ajoelhada de antes.
- Traga aquela bacia! - ordenou o vulto pálido, largando sua vela ao meu lado e inclinando-se em minha direção - Alessa.
Ouvir meu nome de sua boca fez com que algo se contorcesse em minhas entranhas. Era um formigamento quente, que deslizou por todo o meu corpo e parou em meu rosto, na forma de rubor. Não conseguia entender onde estava, mas aquela voz... parecia a de um querubim.
Virei a cabeça para cima, surpreendendo quem quer que fosse. Obviamente, não esperava reações minhas, o que o pôs em alerta.
- Ela acordou! - exclamou, no ato - Pelo menos o suficiente para...
Pisquei, um flash do lugar branco surgindo sob minhas pálpebras. Eu sabia que estava sendo sugada de volta para lá, suas paredes me chamando... mas a pessoa ao meu lado sacudiu meus ombros, impedindo-me de ir.
- Hum... - grunhi, incomodada, querendo simplesmente fechar os olhos e descansar.
- Olhe para mim, Alessa. Só mais um pouco. Concentre-se no meu rosto. - ele falou, as mãos frias tocando a pele febril logo abaixo de meus olhos.
Embora seu toque machucasse pela temperatura, me esforcei para ver seu rosto. Só conseguia enxergar um borrão, distante e ao mesmo tempo próximo.
- Não... vejo... - sussurrei, minha língua enrolada e pesada.
Talvez entendendo o que eu disse ou talvez tentando fazê-lo, ele se aproximou mais, o rosto parando exatamente na faixa de luz da vela.
- Olhe para mim, Alessa. Fique firme. - falou, os dedos deslizando de minhas bochechas para meu queixo.
Quando vi seu rosto, pensei ainda mais que era um querubim. Com cabelos brancos que tentavam cachear nas pontas, a testa igualmente pálida brilhante de suor e olhos feitos de auréolas coloridas, só podia ser um anjo ou coisa parecida. Ou, talvez, fosse parte da ilusão branca em minha mente...
- Olhe para mim. - falou pausadamente, firme.
De repente, tomei consciência de mais vultos ao nosso redor. Aqueles eram obscuros como sombras, movendo-se depressa demais para que eu acompanhasse.
- Musa... por favor. - implorou, vendo minha propensão a fechar os olhos outra vez.
Aquela palavra despertou outro nome. Um nome que parecia gravado em pedra dentro de mim: Ônix. As camadas negras em seus olhos deram-me mais certeza ainda de que era seu nome.
Com o coração batendo de forma aquecida, lembrei do importante fato de que havia coisas na saia de meu vestido. Coisas muito valiosas para alguém.
Tomando fôlego e força, ergui meu braço enformigado e gélido, segurando a gola da camisa do querubim e puxando-o para perto. Ele pareceu incerto, mas não me impediu.
- Na saia do... do meu vestido... - parecia que minha língua ia cair da boca a qualquer instante. Por isso, falei o mínimo possível - Coisas importantes... segredo...
Minha boca tocou suavemente o lóbulo de seu ouvido. Eu sussurrara as dicas para ele, e esperava que tivesse entendido. Antes que se afastasse para me observar, não sei porque, depositei um pequeno beijo em sua pele sensível. Pude vê-lo estremecer e seus olhos se abrirem ainda mais, como folhas novas em uma árvore esplendorosa.
- Musa... - sussurrou outra vez, as mãos rapidamente buscando o indicado em minha roupa - o que é?
Eu tentei falar, tentei mesmo. Mas não lembrava o que era nem controlava mais minha boca. Eu só sentia... sono. Muito sono, que dava ferroadas insistentes em minha cabeça.
- Achei. - murmurou, sem retirar os objetos de minha saia. Deviam haver vultos naquele lugar que não os pudessem ver, pensei.
Quis sorrir com aquela palavra, também não sabendo o motivo. Eu só sabia que o que quer que estivesse no bolso de minha roupa, que fosse importante, estaria seguro com aquela pessoa. Com Ônix.
Um barulho mais alto ressoou, então. Foi um grito ou uma ordem, vindo do breu que nos cercava. Trinquei os dentes e apertei os punhos quase sem vida, os ouvidos ardendo junto com a mente.
- Ela está bem, caramba! O máximo possível! - respondeu o garoto, nervoso.
O sono gigantesco bateu com força em mim, como ondas acertando rochas pouco firmadas no solo. Deslizei, cada vez mais, como se realmente estivesse afundando.
- Ela... Alessa!!! - gritou o querubim, me sacudindo outra vez.
Mas a onda de sono, infelizmente, foi forte demais. O repuxo me levou mar adentro, não mais para o branco.
Agora, tudo era escuro e frio.
×××
Não sei se sonhei ou se realmente abri os olhos, mas senti que minhas pálpebras se moveram. Eu não estava mais no chão, sobre uma superfície sólida. Estava em um colchão macio, o qual parecia me puxar para si.
Cobertas pesadas foram postas sobre mim, também. Suas cores escuras e neutras pareciam um casúlo sufocante e claustrofóbico.
Virei a cabeça para a esquerda, querendo observar mais do novo cenário, mas me deparei com outro dos tão recentes vultos.
Aquele, no entanto, não era como o querubim. Seus cabelos intensamente vermelhos e seus olhos de ouro derretido o faziam parecer uma chama ambulante, e minha visão fraca auxiliava em sua aura trêmula.
Não reconheci quem era ou o que expressava, pois suas feições estavam borradas. Mas algo reparei claramente, o que me fez ficar com mais frio ainda: suas íris queimavam, com uma raiva profunda e nauseante.
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Porcelana - A Promessa Escondida (Completo)
Fantasy☆Sociedade Porcelana - Livro 2☆ "Seus sorrisos eram cínicos e debochados. Seus atos bondosos, uma mentira. Suas palavras generosas, um enfeite. Encará-los nos olhos era pavoroso, pois, a única coisa que demonstravam, eram uma maldade e um vazio tão...