Cap. 39: Uma Doce Família Feliz

2.8K 461 61
                                    

Eu achei que apenas Luigi pudesse queimar daquele jeito. Ou, no máximo, que Thereza era capaz de copiar tais aparências. Mas, ao que parecia, Lucca Mangini podia sentir tanta raiva quanto os irmãos.

Era uma família confusa e sombria, de fato.

- Lucca? - exclamei, minha garganta parecendo seca e áspera.

Como resposta, ele apenas balançou a cabeça e se afastou, dando de ombros. Tal gesto me trouxe um alívio maior do que deveria.

O garoto Mangini de menor estatura andou lentamente pelo quarto, os sapatos de um preto lustroso contrastando contra o carpete. Seus ombros, como de costume, estavam rígidos. Suas costas estavam tão retas, que achei que sua coluna poderia quebrar.

- Sim. Vim assim que pude. Foram longas 14 horas desde que se... acidentou, afinal. - murmurou, a voz suave com um tom sério que a deixava envelhecida - A repercussão foi muita, como deve imaginar. Chegou a Luigi.

Esforcei-me para sentar, empurrando minhas costas o mais para cima possível no travesseiro. A maneira fria como Lucca relatava os fatos fez meu peito pesar.

- Hã... - hesitei, sem saber o que fazer para despistar. Ele girou o corpo, encarando-me por inteiro, e piscou os olhos dourados.

- Ele está furioso, bastante furioso. Carlos e Luigi voltam hoje à noite. - como que lendo um texto decorado, prosseguiu, sem dar margem para desvios - Meu irmão disse que quer voltar antes que você morra de vez e prejudique o casamento.

Sua boca se contorceu em desgosto com as palavras, surpreendendo-me. Eu não sabia aonde queria chegar, mas parecia que aquela era uma rota que assustava o menino.

- Ah, disse? Não estou chocada. - respondi, sincera, em parte incentivando-o a continuar.

Então, girando outra vez e andando em direção à cadeira da penteadeira, foi que Lucca sentou-se pesadamente. O suspiro pesado que deixou escapar fez com que eu entendesse o que estava acontecendo, antes mesmo que explicasse.

- A equipe de Tréville pegou os livros em sua saia sem que terceiros vissem, não se preocupe. Aquele garoto, o D'Gasperi, os indicou. - falou, de uma vez, a voz medida e firme - A Chefe Tréville me mandou falar com você. Explicar logo de qual lado estou.

Sim, era aquilo. O irmão de Luigi estava ajudando a Polícia. Chocante, traíra e, ainda assim, óbvio. Nem alguém que nascera na Sociedade conseguia aguentá-la.

Mesmo que meu cérebro estivesse assimilando as informações facilmente, pois me identificava com o garoto, ainda era um fato intrigante. Em vez de me ater ao que realmente era de meu interesse, abri a boca para perguntar:

- Por quê?

Lucca, compreendendo o sentido da simples pergunta, encarou-me de maneira sôfrega. Seus ombros eretos despencaram para a frente, e ele apoiou o rosto nas mãos.

- Eu odeio esse lugar. Odeio o que ele faz com as pessoas. Odeio o que fez com a minha família. - desabafou, tudo de uma vez, o peito subindo e descendo depressa - Quero que desmorone logo. Quero poder salvar pelo menos minha mãe.

Assenti, mantendo-me neutra. Não tinha como julgá-lo, afinal, também era uma vítima da situação. Ele, no entanto, escolhera o lado certo a apoiar.

- Eu não sei quem sou, isso é fato. Mamãe é a única que enxerga ou se importa com isso. - prosseguiu, sem precisar de deixas - Mas, mesmo que eu a ame... não consigo perdoá-la por desistir dos meus irmãos.

Aquela parte da confissão, sim, foi impressionante. Minha boca se abriu levemente, em incredulidade.

- Porque podia ser eu, entende? Podia ser eu o filho desgraçado. E ela me deixaria também, para ser devorado pelos vermes. - os vermes, claramente, eram os Fundadores - Então minha intenção não é nobre. Eu quero salvar minha mãe e o amor que ela tem por mim. Quero me livrar antes de ser como eles.

Como eles. Como seus irmãos. Pensei no quão triste devia ser ter uma família daquela, que estava irremediavelmente quebrada. Seu pai era um monstro, seu irmão e sua irmã eram loucos, enquanto sua mãe era depressiva. Realmente difícil aguentar as pontas por muito tempo.

- Tudo bem, Lucca. - disse, simplesmente, como o melhor consolo que podia oferecer.

Ele ainda parecia insatisfeito. Sua boca estava fora de controle, e suas palavras jorravam como uma cachoeira.

- Meus irmãos eram legais. Quer dizer, pelo pouco que me lembro e pelo que outros me contaram. Antes que eles fossem contaminados, quando ainda éramos crianças, era mais fácil aguentar estando juntos. - suspirou, trêmulo, e começou a massagear as próprias têmporas - Mas então meu pai levou Luigi e o mudou. Mudou de um jeito terrível, em uma das reuniões de Fundadores. Ainda me lembro do sangue no andar de cima, do choro desesperado da minha mãe e... da cabeça praticamente retalhada em cortes do meu irmão.

Arquejei, cada vez mais perdida na história. Luigi Mangini fora espancado por Carlos e seus comparsas?! Não era difícil de imaginar a cena, no entanto.

- Depois de destruir o primogênito, Carlos partiu para a caçula. Quando Thereza nasceu, imediatamente transformou-a em sua princesinha. Ele a estragou de um jeito terrível e irreversível. - outra respiração trêmula - Tive sorte por ele mal ligar para mim, o filho do meio. Assim estou vivo e continuo sendo... alguma coisa confusa que chamo de eu.

Os vestidos, o armário que sempre visita. Lembrei, analisando seu comentário. Eu tinha quase certeza do resultado de sua confusão, mas, mesmo assim, não tinha o direito de opinar. Ninguém deveria julgar esse tipo de coisa nos outros, aliás.

- Você está fazendo o certo, Lucca. Pense nisso caso precise de uma âncora. - murmurei, buscando pelas melhores palavras - Suas intenções pessoais não importam. De todo jeito, você vai estar ajudando dezenas de pessoas que precisam. Pessoas tão inocentes e condenadas quanto você ou sua mãe.

- E quanto meus irmãos? - falou, debochado. Hesitei em responder, o que lhe deu mais amargor ainda e uma careta torta no rosto - Você não acha que eles mereçam piedade.

Eu não podia negar. Ter pena de Luigi e Thereza era um coisa impossível para mim, que sofrera diretamente em suas mãos. Mas Lucca, como irmão de ambos, tinha uma visão diferente.

- Talvez. Eu não sei. Não serei eu a decidir quando chegar a hora. - disse, com sinceridade, encarando-o nos olhos.

Suas íris douradas, raivosas e profundamente tristes, apenas desviaram-se para um ponto qualquer do quarto. Ele sentia vergonha pelo que estava fazendo.

- De todo jeito, agora é tarde para voltar atrás. - sussurrou, talvez tentando convencer a si mesmo - Temos que continuar.

Pela segunda vez, apenas assenti com a cabeça. Esperei sua visão focar em meu rosto novamente, para então prosseguir.

- Sim, Lucca. Nós temos.

Ele levantou-se, alongando os músculos castigados e, antes de cambalear em direção à porta, balbuciou:

- Nosso tempo acabou. Lembre-se de quem chega hoje à noite. Tenha cuidado e não provoque. - encarou-me, piscando - Ou pode ser muito, muito pior.

Porcelana - A Promessa Escondida (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora