Cap. 47: Cobertos de Porcelana

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Eu gritei novamente quando Luigi sumiu pela escuridão da passarela, mas não porque queria ajuda. Na verdade, eu queria desesperadamente que ninguém se aproximasse.

Com ninguém, eu queria dizer Ônix.

- Alessa!!! - exclamou, em pânico, assim que chegou ao topo e me viu caída no chão.

Mesmo que eu não o desejasse ali, a visão de seu rosto me trouxe um alívio que chegou a ser nauseante. Ele estava bem, sem nenhum arranhão sequer. Minhas preces foram atendidas, ao menos uma vez.

- O que fizeram com você?! - exclamou, atirando-se de joelhos ao meu lado. Removeu a mordaça de minha boca e desenrolou minhas pernas - Eu estava com Tréville!!! Ela me impediu de ir ao casamento hoje, e como Thereza não estava, ninguém notou minha ausência!!! Isso deu tempo ao ataque e ao seu sumiço!!!

Assim que me soltou, o artista puxou-me imediatamente para seu colo, acariciando meus cabelos. Tentei falar e percebi que havia mordido a língua com força, ao ponto de deixar a marca dos dentes em sua metade.

- Sai daqui, Ônix!!! - foi o que consegui gritar, não sendo nada gentil. Mobilizei-me ao avistar um movimento nas sombras, às suas costas.

- Não, Alessa!!! Eu não vou a lugar algum!!! Eu disse que a procuraria, e Tréville sabe que não estou longe!!! - ele afastou os cabelos grudados em meu rosto pelo suor e pelos resquícios nojentos de maquiagem, os olhos coloridos brilhando como grandes pedras preciosas. O negro mergulhado neles jamais havia estado tão profundo - Não vou deixá-la para procurar ajuda. Nós vamos juntos, musa.

Não tive tempo de responder, outra vez. Luigi Mangini, da escuridão dos fundos da passarela, surgiu com uma bigorna em mãos. As coisas que ele obrigava a manterem segurando portas, na verdade, eram suas armas a curto alcance.

- Ônix!!! Sai daqui!!! Ele está vindo!!! - gritei, notando o ruivo ganhar velocidade.

Tentei empurrá-lo, mas o artista não moveu um músculo, como se fosse uma estátua esculpida na mais firme rocha. Seu rosto se aproximou ainda mais do meu, e senti sua respiração morna em minhas bochechas, enquanto meu coração disparava e meu corpo se tornava febril:

- Ho visto la sua ombra, musa. Ma io sono meglio di te. - sussurrou, com seu sotaque magnífico, e beijou minha testa.

Durante o resto de minha vida, eu jamais recebi um beijo tão cheio de amor, cuidado e carinho quanto aquele. O estalo suave de seus lábios em minha pele eternizou a sensação na memória.

Quase não pareceu verdade o momento em que Luigi se assomou sobre nós, mil vezes maior e mais terrível do que realmente era. A arma pesada que carregava em mãos tinha um odor metálico que, na hora, mais me pareceu cheiro de morte. Eu não podia deixá-lo matar meu amor, jamais.

Por isso, empurrei o artista com toda a força que meus músculos cansados ainda possuíam. Meu choque de adrenalina livrou sua cabeça, que estava na mira da arma de Luigi, fazendo-o cair de costas. A infelicidade foi que não livrou seu joelho do golpe.

O estalo seco, oco e diabólico de osso e cartilgem sendo esmagados não foi alto. Mas me fez pensar que ficaria surda, por ter escutado algo tão monstruoso. O grito que veio a seguir terminou de rachar meu coração já partido.

- Maldição!!! Errei!!! - Luigi exclamou, tentando erguer o objeto pesado outra vez - Já chega Thereza ter sido burra em não ver a traição!!! Eu não vou ser idiota ao ponto de não matá-lo!!!

Enquanto Ônix se contorcia no chão, lágrimas rolando pelos olhos e a calça cinzenta se ensopando de sangue (uma careta de teimosia fixada no meio da dor), outra voz se elevou acima de nossos barulhos:

- LUIGI, O QUE PENSA QUE ESTÁ FAZENDO?! - vociferou Carlos, obrigando-o a parar antes de cometer um assassinato.

Avril também estava ali, firmemente presa entre as mãos do marido. Imitando o gesto do filho mais cedo, o homem praticamente arremessou-a no chão, para junto de mim e Ônix.

- Punindo estes dois malditos!!! - respondeu o cabeça de fogo, ainda que insistente, dando um passo atrás.

Com um andar tão duro que fez o chão pouco estável sob nós tremer, Carlos avançou para perto do filho e agarrou-o pela gola, arrastando-o para a beira da passarela e sacudindo-o com violência.

Seu gesto fez Luigi largar a bigorna. Porém, cruelmente, em vez de simplesmente deixá-la cair, ele a jogou sobre a perna já ferida do artista. 

- ÔNIX!!! - berrei, sem conseguir evitar sucumbir ainda mais ao pânico.

Sem sequer conseguir formar palavras coerentes para xingar, o artista agarrou a própria coxa, curvando-se para trás e forçando as costas contra o chão frio. Sua expressão era de agonia e dor puras, o cabelo branco e longo se grudando ao rosto molhado pelo sal das lágrimas. Minha língua ferida não foi motivo suficiente para me impedir de gritar em seu lugar. Depressa, fiquei de joelhos e praticamente me joguei para o seu lado, como fizera comigo anteriormente.

- VOCÊ DEIXOU ISTO ACONTECER E SUA MAIOR PREOCUPAÇÃO É PUNIR DOIS ESCRAVOS SEM IMPORTÂNCIA?! VOCÊ É RIDÍCULO, LUIGI!!! - Carlos voltou a sacudir o filho, aproximando-se perigosamente da borda sem corrimão da passarela - NÓS PERDEMOS TUDO!!! 

O demônio ruivo mantinha feições desfiguradas por uma raiva colérica. Porém, ainda assim, não tinha força suficiente para se soltar do pai enfurecido.

Assim que o homem deu mais um passo à frente, mantendo o filho firme pelo colarinho, ninguém que estava presente teve dúvidas quanto à tragédia iminente. Menos Avril que, de repente, parou de tremer e ergueu-se.

- CARLOS!!! - gritou, impondo a voz como jamais fizera ao longo do meio ano em que eu estivera ali.

O Mangini pai se virou imediatamente, o choque dominando seu rosto e fazendo-o arregalar os olhos. Não conseguia acreditar que a esposa, depois de tantos anos ignorando-o, havia finalmente chamado seu nome.

- O que foi? - perguntou, como se pensasse estar próximo do perdão. Chegou a até mesmo afrouxar as mãos com as quais segurava Luigi, tamanha comoção.

Infelizmente para sua alma, já era tarde demais. Avril, aquela que fora figurante durante toda a vida, sem que ninguém jamais notasse sua presença, correu na direção de Carlos e jogou a força de seu corpo contra o dele.

Inesperadamente, ele não fez nada. Não tentou revidar nem acertá-la. Somente caiu, em um silêncio profundo e aterrador, até que o barulho de seu corpo em choque com a porcelana fervente ecoou pelo lugar. Seus gritos foram a coisa mais terrível que já ouvi na vida, sem dúvida alguma.

Avril teria sofrido o mesmo destino se não fosse por algo ainda mais surpreendente: outra vez firme em seus pés, conscientemente ou por reflexo (foi impossível descobrir, e para sempre será), o demônio ruivo segurou a mãe e impediu-a de cair, salvando sua vida.

Ele ainda podia tê-la empurrado se quisesse. Ambos estavam muito próximos da beirada, e ela nem cogitaria a hipótese de matar o próprio filho. Mas, junto com Carlos Mangini, o que quer que restasse da mente fragmentada de Luigi Mangini ruiu.

Ele caiu de joelhos, como um soldado ferido durante a guerra, e não levantou mais dali. Suas mãos envolveram o cabelo vermelho e puxaram com força, como se realmente pudessem tirar sangue dali. Seu choro, metade gritado e metade grunhido, foi uma tortura para os ouvidos de nós três que também estávamos ali.

No fim, até mesmo a família mais poderosa dos Fundadores acabou sendo coberta pela massa fervente, sem cor ou vida. 

Por isso, talvez eles fossem os verdadeiros bonecos de porcelana. Talvez fôssemos apenas uma maneira de se sentirem melhor.







Fim.









Ho visto la sua ombra, musa. Ma io sono meglio di te. = Eu já vi a sombra dele, musa. Mas antes eu do que você.

Porcelana - A Promessa Escondida (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora