"Caminhe delicadamente:
Mãos ao lado do corpo, pés suaves
E sorriso macio
Quando passar por entre a gente.Não esqueça de acenar,
Mas somente para aqueles
Cujas posses se pode contar.Seja a perfeição,
Aquela que todos querem ver.
Por isso, tranque seu coração,
Sem se importar com o quanto venha a doer."Foi o que escrevi no diário com páginas vazias de Avril, antes de sair. Na verdade, antes que uma equipe de funcionárias invadisse meu quarto, sob os comandos de Lindsey, que no dia utilizava o falso uniforme bordô. Elas estavam prontas para me transformar, novamente, na bambola que os Frequentadores queriam ver. Esperavam ver. Precisavam ver.
Quando ainda estava sozinha, guardei minhas poesias tristonhas, a página que contava a história de minha mãe e um desenho que Ônix fizera na noite em que estivera ali (a sombra de meu perfil, enquanto estava distraída escrevendo) numa fenda que fizera no colchão. Fora um trabalho árduo criá-la somente com o pincel que utilizava para abrir a porta, remover seus vestígios e deixá-la praticamente invisível sob os lençóis. Mas eu necessitava de um lugar para guardar todas as coisas que não deveriam estar comigo, sem as quais os resquícios de cor de minha vida branca (e vazia) sumiriam. Cheguei a alisar o papel do desenho, buscando pelos traços mais fortes que demonstravam o percurso do artista na folha. Sentir sua presença, mesmo que não física, aqueceu meu coração o suficiente para me dar um pouco de calma.
Agora, no entanto, eu estava prestes a tomar um choque gelado: milhares de pares de olhos cruéis, me encarando impiedosamente. Senti-me como uma vê-la conforme caminhava para o lugar onde aconteceria a tão infame e aclamada Hora do Progresso. O amor pelo artista era a pequena chama que me mantinha orientada em meio a tanta escuridão. Era a única luz que podia me guiar por um caminho em que, talvez, pudesse voltar a encontrar as outras pessoas que amava.
Tantos nomes perdidos no vento... vento este, que batia com força nas paredes da sede. A tempestade do lado de fora retratava a noite selvagem e perigosa que estávamos prestes a enfrentar.
Meu pai, minha mãe, Bianca, Rubi, Meena... pensei em cada um daqueles que havia perdido. Algo na sonoridade de suas lembranças me confortava.
"Nós estaremos em todos os lugares, até nos em que eles menos esperam. Vamos cercá-los e quebrá-los por dentro." Fora exatamente o que Lindsey dissera. Ela me transmitira as palavras de sua chefe, apenas. Eu rezava com toda a força e crença que podia ter no presente, para que as expectativas se tornassem realidade.
Quando cheguei ao jardim de inverno, sozinha, cambaleante e com frio, tive vontade de retroceder imediatamente. Mas não o fiz, porque jamais o faria naquele instante.
Duas fileiras de bancos curtos haviam sido dispostas lado a lado. Todas estavam ocupadas por pessoas com roupas de gala que custavam muito, muito caro. Um tapete vermelho havia sido estendido no chão, na direção de, em vez de um altar, uma mesa de mogno. Um juíz de paz bastante sombrio, ao que parecia, aguardava de pé como se tivesse uma tábua nas costas. As portas do jardim mantinham-se abertas graças a bigornas com aparência diabólica, metálica e afiada.
Não existiam mais flores naquele jardim. A decoração do casamento eram velas de um roxo profundo, como hematomas entre as pessoas e a madeira lustrosa de seus assentos. Nenhuma vela ousava se apagar, sequer. Mas o fogo que nelas brilhava parecia turvo e obscuro.
Mais vermelho que tudo, no entanto, estava Luigi Mangini, me esperando malignamente em frente à mesa de negociações. Seu terno era de uma cor escarlate nada discreta, destacando a cor de labaredas que tinham seus cabelos. Seus olhos, dourados, pareciam o reflexo do ouro no sol. O reflexo de uma coisa pela qual muitos morriam e envenenavam suas vidas. Quem parecia realmente impressionada com a aparência dele, todavia, estava sentada junto da família Mangini: Morgana, em um vestido azul que era o oposto de seu primo.
Eu, em vez de prestar atenção no caminho, comecei a procurar Ônix por ali. Quando percebi sua ausência, o sangue passou a subir para minha cabeça. Ah, não. Ah, não, não, não.
Meu coração, que batia descompassado, pareceu congelar dentro do peito. Onde o artista estava? Era parte do plano? Ou haviam feito aquilo com ele? Assim que me dei por mim, estava girando a cabeça desesperadamente, vasculhando a multidão. E isso não passou batido.
A maneira como Luigi me encarou, seus olhos se acendendo no mesmo inferno do dia em que me perseguira, quase me fez estacar no meio da jornada tortuosa. Não apenas por medo, mas porque eu não queria, do fundo da minha alma, me aproximar ou me casar com aquele ser. Os sentimentos de desprezo eram tão fortes, que quase estavam vencendo a razão. A razão e a memória de que eu devia prosseguir com aquilo.
Mal me dei conta de que estava em frente ao altar, tamanha preocupação, assim que o alcancei. Como muitas vezes desde que entrara no mundo da Sociedade, eu estava mergulhada em uma bolha temporal. Bolha na qual eu estava entre a calmaria e a tempestade. Entre o castigo com o qual já havia me acostumado e a tortura intolerável.
- Meus amigos, irmãos e colegas, peço-lhes atenção! - começou a discursar o demônio ruivo imediatamente, abandonando meu rosto com um olhar de "depois lido com você" - Hoje, neste dia tão importante para a história de minha família e da nossa Sociedade, gostaria de agradecer-lhes por todo o apoio. O empenho, principalmente dos senhores e senhoras representantes da Ásia e da América, em conseguir novos terrenos e contratos para que posamos expandir nossos negócios mundialmente, é admirável!
Sorrisos surgiram nos rostos diabólicos e poderosos que nos examinavam com cautela.
- Logo após eu oficializar minha união com a cara Alessa Fragnello, bambola escolhida para prosseguir com a união entre comandantes e serviçais de Porcelana, assinaremos importantes documentos! Eles nos garantirão posses internacionais e sigilo em todos os países que nos abrigarão! - então, apontando para um grupo seleto e mais afastado de pessoas, riu como se estivesse oferecendo-lhes um brinde elegante - Sigilo e proteção estes que cito, garantidos pelos políticos dos próprios países!
Nas polícias, na política, nas cidades... eles tem um esquema de corrupção entranhado nas veias do mundo há muito tempo.
Pensei, perdida em minha bolha, que era impossível detê-los. Refleti e acreditei nisso por um único segundo.
Porque, logo depois, duas pessoas se levantaram entre as demais. Quase não tive tempo para identificar Lindsey e Tréville, graças a alguém escondido na multidão... que puxou um gatilho. E aí a confusão se instaurou.
O barulho do ataque foi violento, fazendo com que todos se curvassem em seus lugares. Mais e mais pessoas começaram a entrar no lugar, enquanto outras se levantavam e corriam, tentando escapar do tumulto evidente. Era impossível identificar os agentes e os Frequentadores no meio do alvoroço.
Eles conseguiram, invadiram a sede! Com aquele feliz pensamento, sem me dar conta do perigo real da situação, eu torci para que todos os outros lugares em que pessoas eram escravizadas estivessem sendo destruídos e cercados no mesmo instante. Ajoelhei-me e cobri os ouvidos, aproximando-me da mesa maciça.
Porém, em meio aos gritos, ao chão para o qual me atirei e à confusão de cores das roupas de gala à meia luz, foi que minha bolha estourou. Ela explodiu, na verdade, assim que fui arrancada com violência do lugar em que estava, e arrastada por um corredor lateral do jardim de inverno.
Corredor este, que só seria rapidamente encontrado por alguém que conhecia o lugar como a palma de sua mão.
- LUIGI! ME SOLTA!!! - gritei, com toda a força que tinha, enquanto era brutalmente puxada para longe.
Como eu disse, havia muitos gritos no local. Por isso ninguém escutou o meu.
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Porcelana - A Promessa Escondida (Completo)
Fantasy☆Sociedade Porcelana - Livro 2☆ "Seus sorrisos eram cínicos e debochados. Seus atos bondosos, uma mentira. Suas palavras generosas, um enfeite. Encará-los nos olhos era pavoroso, pois, a única coisa que demonstravam, eram uma maldade e um vazio tão...