Cap. 40: Em Reunião Com O Demônio

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Sentada na mesa de jantar, eu já me sentia totalmente sóbria e curada. Mesmo assim, o ambiente parecia psicodélico.

Luigi, as mãos tremendo de nervosismo, estava rodeado por uma nuvem de fumaça de tabaco interminável. Mal soprava, já tragava o cigarro outra vez, sem se importar com a presença de Carlos para perscrutar seus vícios.

- Sorte que conseguimos terminar todos os negócios pendentes que tínhamos a tratar, antes de sermos obrigados a voltar por causa de minha noiva. - o cabeça de fogo começou, a voz rouca e engasgada - O que tem a dizer sobre o imprevisto, minha querida e doce irmã?

Thereza, do outro lado da mesa, estava acuada como um cãozinho chutado. Seu pai e seu irmão mal saíram e ela já conseguira problemas na casa, ao que parecia. Não era uma boa impressão a se passar para os Fundadores, que desconheciam os planos de muito tempo da Polícia.

- Eu... eu e Morgie...

- Tiveram a capacidade de errar na dose de remédios enfiadas nos pratos das bambolas, e de deixar uma delas escapar!!! - gritou o ruivo, contorcendo-se de vontade de torcer o pescoço da garota.

- Luigi!!! Não fale assim com sua irmã!!! - bradou Carlos, nada intimidado, com uma expressão de tédio no rosto.

- Não fale comigo desta maneira você, velho imundo!!! - o Fondatore Maestro em treinamento rebateu, de imediato.

Carlos não se afetou com suas palavras, visivelmente. Mas a raiva rápida perpassou seus olhos, inflamando-os. Nenhum dos Mangini fazia mais questão de se conter, mesmo que pudessem ser ouvidos por eventuais bisbilhoteiros do lado de fora da sala de jantar. Seus ânimos alterados superavam qualquer "regra de etiqueta" ou sigilo.

O demônio ruivo riu do silêncio do mais velho, quase satisfeito. Afogando um sorriso maldoso em uma taça de vinho, voltou a dirigir-se aos presentes.

- E você, Lucca? Não foi capaz de oferecer nem uma mísera ajuda? - perguntou, depositando os olhos sobre o irmão.

Lucca somente deu de ombros, mantendo a cabeça baixa e a postura firme. Seu ser era como uma força neutra, nunca manifestando raiva ou tristeza, embora eu soubesse que as sentia.

- Ótimo. Belo discurso de resposta. Até me emocionei aqui. - Luigi girou a cabeça por toda a extensão da mesa, ocupada somente por sua família e respectivos "cônjuges" - Alguém tem mais algo a acrescentar à excelente explicação?

Morgana, ao lado de Thereza, manteve-se pálida e imóvel. De todos, ela era a mais assustada, inclusive mais abalada do que a própria Avril. A mãe dos garotos, com as mãos em tremedeira visível, não ousava mexer um músculo.

Por fim, havia somente eu e Ônix. O querubim de minhas alucinações, que em sanidade eu sabia ser meu artista, era como uma vela na metade da mesa. Sua pele e cabelo brancos, além de vestes claras, davam-lhe um ar de ser inábalável e alheio. Sua expressão de ângulos retos e delicados não demonstrava absolutamente nada. Se visto de longe, e não de alguns poucos centímetros que separavam nossas cadeiras, juraria que era uma estátua renascentista.

Suspirei, sem emitir qualquer som, e recusei-me a revelar o desconforto que o vestido elaborado que fora obrigada a usar me causava. Eu estava desempenhando perfeitamente o papel de vítima desinformada, e os alvos daquela noite eram os parentes do próprio cabeça de fogo. A imobilidade de uma boneca, de fato, vinha a calhar no momento.

- Muito bem. Adorei esta reunião, foi bastante produtiva. Mesmo que não tenhamos obtido motivos, podemos aplicar resoluções. - Luigi prosseguiu, tomando outro gole de vinho e colocando o cigarro nos lábios - Os ensaios para o casamento iniciarão esta semana. Não quero objeções ou falhas. Precisamos recuperar a moral que perdemos com os demais sócios, afinal.

Nenhuma reclamação ou argumento contrário foi ouvido. Com isso, Luigi se levantou em um floreio, acenou com a cabeça de maneira debochada e saiu. O alívio e a incredulidade foram enormes em meu peito: jamais poderia imaginar que seria tão fácil.

Aos poucos, Carlos se levantou, a careta emburrada e a barba mal feita. Ele encarou brevemente a esposa, antes de bufar e seguir para a saída, sem precisar ordenar que ela fosse atrás. Avril, timidamente, levantou-se e encarou-nos somente uma vez, despedindo-se.

Lucca seguiu os pais, mas eu sabia que ele iria para seu próprio quarto, próximo do de Thereza. As primas, com suas estaturas pequenas e expressões assustadas, uniram-se na metade do cômodo.

- Até logo, meu querido. Te vejo depois? - falou Thereza, dirigindo-se a Ônix como se houvesse qualquer afeto entre os dois.

Roboticamente, ele assentiu, novamente sem demonstrar afetação.

Ficamos apenas nós dois ali, mas era óbvio que precisávamos sair logo. Havia funcionários ao lado, esperando por eventuais deslizes para nos delatar.

Mesmo assim, hesitei em deixá-lo.

- Boa noite. - falei, como que por educação, e me levantei para sair.

Antes que pudesse me afastar muito, no entanto, sua mão suave tocou meu braço. Ouvi o arrastar de sua cadeira quando pôs-se de pé, parando à minha frente.

Encarar seu rosto impecável nunca foi tão profundo. A frieza de seus gestos continuava ali, fazendo meu corpo arrepiar ao tentar entrar em meu coração.

- Noite. - disse, apenas, com uma voz rouca e séria.

Os resquícios do querubim morto de preocupação tinham sumido. Agora só restava uma... estranha tensão, que eu podia sentir, mas não ver em seus olhos.

Quando me soltou e passou por mim, tive um vislumbre de suas reais emoções, no entanto. Hesitação, medo e... urgência. Muita urgência por algo.

Tive que resistir ao impulso de andar em sua direção, de descobrir o que escondia. Ônix D'Gasperi, apaixonado ou não, continuaria sendo perito em esconder emoções. A necessidade de desvendá-las depressa queimava em meu cérebro.

Mas eu não o segui. Não podia prejudicar tudo o que havíamos feito até então.

Por isso, deixando para trás a sala de jantar deserta, somente com o eco de sussurros de desconhecidos, andei em direção ao meu quarto.

Aquelas aventuras perigosas na Sociedade recentemente haviam começado. E eu precisava lidar com elas.



Obrigada à Rajaram_Castellan, pela ótima indicação de música na multimídia. ;)

Em breve teremos emoção, meus queridos bambolottos e bambolas.

Bjsss, aguardem-me!!!

Porcelana - A Promessa Escondida (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora