Cap. 46: Brutal

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Fui arrastada por um corredor estreito e escuro, sem piedade nenhuma nas mãos de quem me puxava. Mas não houve um segundo em que tenha deixado de resistir: tudo o que eu havia guardado dentro de mim durante um ano, me sujeitando a ser submissa e facilmente controlada, somente para evitar dor, transbordou. Gritei e me sacudi, chegando a bater e me arranhar nas paredes, ter a circulação dos pulsos quase interrompida pelo aperto de Luigi e as unhas dos pés quase arrancadas pela sapatilha (duas foram, aliás).

- Cala a boca!!! - ele bradou, desferindo-me um tapa ardido no rosto.

Cambaleei para o lado com a força do impacto, sendo puxada de volta ao equilíbrio por ele próprio.

Seus olhos estavam loucos. Completa e irrevogavelmente loucos, como no dia em que correra atrás de mim, ou no outro em que me agredira. Sua falsa calma e serenidade ruíram, revelando o garotinho-monstro que se escondia por trás da máscara de poder... garotinho este com o corpo e a força de um homem, usados para a maldade pura. 

O corredor desembocou na fábrica de porcelana que ficava ao lado da casa. Soube disso por causa da passarela metálica para a qual o cabeça de fogo me arrastou. Enquanto subíamos as escadas inclinadas, tentei aproveitar a oportunidade e chutei-o nas canelas, praticamente me jogando por cima de seu corpo para alcançar a liberdade. Eu parecia uma presa desesperada, prestes a ser abatida.

Mas ele também parecia um predador que não desistiria jamais. Pelo menos, não até ter estraçalhado minha carne. Por isso, recuperando-se rapidamente do golpe surpresa, enfiou as unhas curtas em minha perna e meu braço, forçando-me a voltar para a sua frente e continuar o caminho. Quando chegamos ao topo, me deu um empurrão tão violento que, assim que caí no chão, a passarela tremeu. Minha sorte era que a dor mantinha-se em segundo plano, graças à adrenalina e ao terror crescentes.

- MALDITA!!! O QUE VOCÊ FEZ?! - berrou, partindo para cima e me chutando nas costelas.

Me encolhi sobre mim mesma, a dor permeando ossos, músculos e órgãos. Pensei que fosse vomitar meu estômago ali mesmo.

- A CULPA NÃO É MINHA, SEU DESGRAÇADO!!! NÃO FIZ NADA ALÉM DE AJUDAR A JUSTIÇA!!! QUEM FOI BURRO O SUFICIENTE DE NÃO PERCEBER QUE ESTAVA EM QUEDA FOI VOCÊ!!! - respondi, ódio e medo misturados em um combustível perfeito. Eu nunca mais me calaria diante de um Frequentador. Aliás, nunca mais me calaria diante de ninguém.

Por isso, antes que tivesse a chance de me chutar de novo, rolei para longe e acertei-lhe com uma joelhada. O golpe o fez perder o equilíbrio por tempo o suficiente para que eu me pusesse de pé.

- VADIA!!! Aposto que fez tudo pelo seu amante miserável!!! - cuspiu, agarrando meus braços e me sacudindo.

Tomei forças para empurrá-lo para longe outra vez, sem conseguir evitar arregalar os olhos em choque.

Quando se deparou com minha expressão, Luigi gargalhou como um maníaco.

- Achava mesmo que eu não sabia sobre seu caso?! Eu soube desde que te desencavei daquela sede podre e imunda, quando não conseguia parar de olhá-lo no dia em que partiu comigo!!! Eu só não dava a mínima para o fato de encontrá-lo, pois você nunca foi importante. - ele encerrou suas falas com um sorriso que revelou que, na queda anterior, havia cortado os lábios. O sangue se espalhava por seus dentes brancos.

- Se eu nunca importei, por que ME escolheu?! - berrei, desta vez sendo eu a partir para cima e acertar-lhe um tapa na cara - E O QUE VOCÊ FEZ COM O ÔNIX?!

Embora tenha sido necessária muita coragem para eu atacá-lo no alto, sobre caldeirões borbulhantes de porcelana líquida, o contra ataque foi muito mais brutal do que eu esperava. Com uma raiva que avermelhou e incendiou suas feições, levando o fogo dos olhos para os músculos do rosto, ele esticou a perna e me derrubou com uma rasteira, outra vez fazendo a plataforma tremer. Se jogou por cima de mim, impedindo-me de fugir, e prendeu minhas mãos, rasgando um pedaço do tecido do vestido que eu usava para enfiar em minha boca.

- Como você fica melhor calada!!! - ele riu, seu hálito e saliva fétidos sendo despejados em meu rosto - Na posição em que está, até me faz lembrar de Morgana!!!

Em seu estado de loucura, tudo era engraçado. Tentei mover as pernas, mas a saia longa e esfarrapada havia enrolado nelas, como os tentáculos de um polvo gigante.

- Fique quieta, maldita!!! - exclamou, acertando outro tapa em meu rosto, que me deixou desorientada e zonza. Depois disso, agarrou meu queixo, encravando as unhas ali, e obrigou-me a encará-lo - Te escolhi porque você tem o legado de sua mãe, perfeição, assim como eu tenho o de meu pai!!!

Parei de me mexer. Não por estar curiosa ou interessada, mas porque percebi que, no estado em que estava, Luigi me mataria sem hesitar caso fizesse besteira. E eu havia lutado tanto para chegar até ali...

- Eu sou o que me criaram para ser. Você também, minha cara. Seu papaizinho já te prendia em casa pra te salvar da gente. Agora sua prisão só mudou de endereço. - murmurou, baixando o tom de voz enquanto me engasgava com o pano na boca - Você tem que arcar com as consequências da fama de sua mãe. Eu entendo essa dor.

Seus olhos, por pouco tempo, desviaram-se para longe de meu rosto. Ele parecia estar em uma discussão mental sobre contar ou não contar o que recordava. Seu olhar retornou a mim, e eu imediatamente soube a resposta.

- Sabe, Alessa, eu gosto de contar histórias. Então vou contar mais uma. - seu rosto embrutecido se aproximou levemente do meu. Tentei puxar um de meus pulsos de suas garras, mas ele manteve o aperto firme - Um dia, um menininho, ainda muito novo, foi chamado ao escritório de seu pai. Ele não estava acostumado a receber atenção do homem, por isso, correu com muita alegria para juntar-se a ele. Até o momento, o garoto sequer imaginava que o mundo podia ser mau.

Estremeci, o frio da passarela e o barulho da chuva, batendo no telhado próximo, esfriando ainda mais meu corpo. Eu estava sufocando e meu sangue já não circulava direito. Senti-me como no dia em que tive a primeira overdose: completamente perdida e com um fim bem próximo.

- Então, o doce papai, com muita gentileza, pegou o menininho no colo e subiu as escadas da casa deles. O garoto nunca havia estado no andar superior, pois lhe era proibido até então, e se surpreendeu ao encontrar pessoas lá. Eram muitas pessoas, de fato. - ele exalou profundamente, suas narinas se dilatando - Mas seus sorrisos eram cínicos e debochados. Seus atos bondosos, uma mentira. Suas palavras generosas, um enfeite. Encará-los nos olhos era pavoroso, pois, a única coisa que demonstravam, eram uma maldade e um vazio tão intensos, que chegavam a queimar a pele. Sua aparência enganava a todos. Por isso, pensando que eram monstros, o garoto começou a chorar desesperadamente.

Tentei outra vez me soltar, a história pavorosa permeando meus ouvidos e entranhas. Luigi forçou seu corpo contra o meu, fazendo meus braços baterem de volta no chão com um baque.

- Por ser tão covarde e envergonhar seu pai na frente daquelas pessoas, o menininho apanhou. Ele foi espancado e humilhado por todos, seus gritos satisfazendo a vontade deles de rir, como uma piada cruel. Não foi só uma vez que este show foi armado, mas sim, várias. Até que o garoto parou de chorar. Na verdade, ele parou de sentir. - um sorriso maníaco, torto e completamente sem sentido diante da situação surgiu em seu rosto - Depois que cresceu, o menino interditou o andar de cima e arrancou de lá qualquer vestígio de habitação ou sala de reuniões que pudesse existir. Mas isso não apagou suas memórias, nem devolveu-lhe a alma.

De repente, o barulho de passos ecoou no lugar deserto e gigante. Pensei ter ficado louca também, ou então estar confundindo o ruído das máquinas com uma presença humana além de nós.

- Eu nunca mais tive minha alma de volta, perfeição... - Luigi sussurrou em meu ouvido, sua voz podre envenenando minha cabeça - por isso estou tão determinado a arrancar as dos outros. Ser o Fondatore Maestro é a posição que mais me oferece oportunidades para isso.

- ALESSA!!! - uma voz gritou, e a bile subiu de vez por minha garganta.

Eu não conseguia acreditar que a entonação era de quem eu estava pensando. Eu não queria acreditar, na verdade. Não queria sequer cogitar a hipótese de que Ônix pudesse estar ali também.

Seus passos foram se aproximando, como se estivesse andando até a passarela. A careta no rosto do Mangini que me prendia foi algo que nunca consegui esquecer:

- E parece que outra oportunidade surgiu no horizonte... - sussurrou, logo antes de acertar minhas pernas e sair de cima de mim.

Porcelana - A Promessa Escondida (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora