O eco de passos apressados no corredor eram um lembrete de que, como de muitas outras vezes, ela era a última a ir para casa. Só que hoje eles soavam em seus ouvidos com um ritmo diferente, menos seguro, mais descompasado.
Cruzou o saguão sem recepcionista que já refletia os devaneios e esperanças da nova estação. O último a passar por ali mais cedo estava pensando em lareiras crepitantes, xícaras de alguma bebida doce e espumosa e músicas típicas. Quando abriu a porta, o vento que soprava do norte anunciava que a primeira neve chegaria a qualquer momento agora. A segunda diferença.
A terceira era que no lugar de tomar o costumeiro caminho ladeando o prédio para a esquerda e então até o fim da alameda arborizada, ela seguiu em frente, contra o vento, levantando a cabeça ligeiramente ao passar pelo palácio, pensando que uma oração não seria uma má idéia, e adentrou a Biblioteca que dormia um sono cheio de novas idéias e grandes projetos que de manhã haveriam se materializado em novos volumes.
Fez uma nota mental para se lembrar de discutir o projeto de expansão com os arquitetos na próxima reunião do comitê enquanto se certificava de que seu uniforme não deixaria vazar nenhum som que pudesse despertar o prédio dormente.
Quando pôs os pés no jardim central, seus muros se afastaram com um gesto de sua mão, facilitando o acesso à árvore pequena e torta que se retorceu abrindo passagem para o túnel. Com um suspiro profundo desceu as escadas mas dentro da caverna deu apenas alguns passos antes de se infiltrar por uma fissura estreita que passaria despercebida a olhos não treinados, agradecendo por não ter que ouvir a fúria monótona dos ventos e trovões na praia.
Aquele ano já lhe havia trazido mais tempestades do que ela necessitava pelo resto da vida. Quando entrou no pequeno barco de popa alta do outro lado e o lampião em sua ponta se acendeu, porém, o caminho iluminado de águas tranquilas de um lago coberto por uma camada fina de neblina lhe lembrou que as tempestades estavam longe de terminar.
Quando a viagem que ninguém saberia dizer se foi longa ou curta terminou com um solavanco do barco ao atracar na outra margem, seus pés hábeis a guiaram rapidamente a seu destino sem que tropeçassem em nenhuma das inúmeras pedras talhadas espalhadas pelo chão.
- De todos os lugares, você foi escolher justo este? - Foi logo dizendo ao homem que de capuz abaixado olhava para a árvore em tamanho original, da qual a primeira era apenas uma réplica cuja perfeição não podia deixar de ser admirada.
- Boa noite para você também, professora - ele disse sem se virar - eu precisava te mostrar algo. Mas primeiro me diga em que pé estamos.
- O garoto parte amanhã ao pôr-do-sol - ela resmungou.
- Vejo que não conseguiu apressar as coisas - ele provocou.
- Poupe-me disto! - ela levantou a voz - já não basta expulsá-lo faltando apenas seis semanas para terminar o ano letivo, você ainda queria que eu o fizesse no Yadarem, sem que ele sequer pudesse se despedir dos amigos?
- Não tem necessidade de ser trágica. O garoto ficará bem.
- Não fale como se você se preocupasse com ele - ele não podia perceber o olhar cortante da mulher mas sua voz traduzia tudo - afinal eu vi muito bem como você fez de tudo para convencer o conselho de que ele era uma ameaça à segurança mundial.
Ela virou-se para tentar ler sua expressão mas a luz minguada que emanava da árvore era suficiente apenas para delinear a silhueta de seu nariz alongado e cabelo empastado. Felizmente conseguiu ao menos perceber que não sorria.
- Eu sei que ele ficará bem porque todos os que passaram por isso também ficaram - ele disse monotonamente.
- Sim, claro. Com um veredicto bem menos drástico... - provocou a professora - queria eu poder voltar atrás e mudar meu voto, só para ver qual seria o resultado.
- Você questiona a decisão dos Grandes? - ele perguntou desafiador.
- Não estamos aqui para discutirmos opiniões pessoais sobre a operação - Ela o dispensou com uma risada sarcástica, só agora percebendo a pedra um pouco adiante de seu pé, iluminada pela luz oscilante da árvore. Ao que tudo indicava, recém talhada, já que não tinha limo ou grama crescendo ao redor e nem tinha nome. Ainda.
- Preciso de uma posição em relação ao outro - ela perguntou.
- Sem paradeiro por enquanto. Mas o desnaturado já está cuidando disto também.
- Já disse que não gosto que o chame assim...
- Desculpe, força do hábito.
Ela aceitou.
- Vocês fizeram tudo como o combinado?
- Se ao combinado você se refere ao sumiço do diário e a devolução do coração, já foi feito no momento em que a torre sumiu. Não se preocupe, ele não vai chegar em Vernom acreditando que tudo o que aconteceu este ano está associado à lenda. Por mais que eu e você saibamos da verdade. Afinal não queremos nos precipitar, não é? - ele finalmente olhou para ela e sorriu um sorriso claro e largo de genialidade - e antes que me pergunte, os outros ainda estão frios. Apesar de saberem alguns detalhes perigosos não chegam nem aos pés das informações que nesta altura do jogo já tínhamos em nossa época.
- Espero que você esteja certo, Lince. - Ela tentou encará-lo no escuro.
- Eu sempre estou, Vitória - ele respondeu piscando seus grandes olhos dotados de luz própria para enxergarem onde quisesse - agora que tal subirmos para você ver onde viemos parar?
- Nem em mil anos! - ela disse contrariada.
- Eu sei... eu sei... - ele riu uma risada nervosa olhando mais uma vez para o que ele a havia chamado para ver e que ele olhava desde muito antes dela chegar: um único botão de flor que em um dos galhos daquela árvore pequena e torta começava a desabrochar. O primeiro desde muito, mas muito tempo - ...é só que desta vez tudo indica que o fim finalmente chegou.
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BIBLION
FantasyQuando se tem 15 anos em Allakelion, nada pode dar errado. Quando se é adolescente em Vernom, o melhor sempre está por vir... ...a não ser que você seja Haizeck e comemore o momento mais importante de sua vida na noite em que as sete luas se alinh...