Capítulo Vinte Um - O maldito dezenove

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Davies

Depois que Wilson bateu em minha mãe, ele sumiu. Estava sendo procurado pela polícia. Eu apaguei após a surra e acordei um dia depois no hospital. Tinha hematomas por todo o corpo e tudo em mim, doía. Até respirar, era doloroso. Mas, meu coração parou de bater quando o médico disse "eu sinto muito".
Minha mãe... Oh, Deus!
Tantos dias apanhando, sendo estrangulada, levando socos... Ela estava tão fraca.
Me viu sendo carregado no colo do Senhor Mitchell e achou que meu pai tinha me matado.
O senhor Mitchell disse que ela ouviu o vizinho gritar "o menino está morto", "chamem a polícia, ele matou o menino". E quando a esposa do senhor Mitchell tentou tirá-la de casa, ela pegou uma faca na pia da cozinha e...
Ela tinha furado a minha casa. Ela tinha furado com uma faca, onde ela disse que eu morava... No seu coração.
Quando aconteceu, eu só tinha oito anos, mas, me lembro que no ano que se sucedeu, Charlie, um garoto da escola, disse que todo mundo sabia que ela não morreu rápido.
Ele ria.
Eu contava os segundos para estourar o rosto dele.
Também lembro que no dia em que recebei a notícia no hospital, não derramei uma lágrima sequer. Eu não podia. Se eu fizesse isso, eu estaria aceitando que ela se foi. E mesmo que eu quisesse, elas não vinham. Eu tinha aquela sensação, mas, elas não vinham.
No hospital, eu pedi que deixassem ver minha mãe. O médico se negou porque eu era uma criança e quando eu disse que eu não tive tempo de me despedir, vi toda piedade em seu rosto. Ainda assim, ele não permitiu.
O hospital era pequeno e eu sabia que ela estava por perto.
Vi o senhor Mitchell dormindo na poltrona e em ponta de pé, saí do quarto. Era errado, porém, eu precisava fazer aquilo.
Não tínhamos necrotério na cidade. O hospital não tinha estrutura para um, pois ainda estava em construção. Todos que morriam ficavam em um quarto, até levarem o corpo para o hospital da cidade vizinha.
Quando o senhor Peterson morreu, nosso vizinho, lembro-me da sua esposa dizendo a minha mãe: "Ele está naquele quarto amaldiçoado. O maldito dezenove! É pra lá que todos vão, e agora, foi a vez do meu Pit. Odeio esse número."
"O maldito dezenove!"
Era para lá, que eu iria.
O silêncio do corredor era extremamente perturbador.
"Mortos não fazem barulho, Davies. É só sua mente barulhenta. Medroso! Por isso mamãe não deixava você assistir filmes de terror."
Respiração, passos. Passos, respiração.
"O maldito dezenove!"
Eu coloquei a mão sobre a maçaneta e parei. A respiração difícil, o suor escorrendo do meu rosto, o medo... Tudo de uma vez.
Eu tomei fôlego e abri a porta. Havia uma maca no canto da parede e havia alguém em cima dela. Era minha mãe, coberta por um lençol. Eu vi o perfil do seu rosto e a boca, assustadoramente aberta.
Jesus Cristo!
Parecia que eu iria a qualquer momento, morrer engasgado com aquela sensação ruim.
Me afastei e um enfermeiro dentro do quarto, me viu. Eu não me importei e andei de costas, sentando perto da parede. Fiz uma bola em torno de mim.
"Volta pra mim, mamãe", eu disse. "Acorda, por favor... Por favor, não me deixa".
Eu senti uma mão em meu ombro. Foi tão rápido. O enfermeiro me levantou e eu me debati. Quando ele passou as mãos em volta da minha cintura, eu gritei o mais alto que podia. Gritei até perder a voz. Nem assim, eu chorei. Eu batia nele. Eu me batia.
Já estavam em dois enfermeiros me segurando e o médico tentava me acalmar.
Arrastaram-me até o quarto e quando me dei conta, o médico havia aplicado algo em mim. Eu só sei que a minha mente se perdeu em um infinito vazio, bem longe do maldito dezenove.
No enterro da minha mãe, eu sabia que todos tinham medo que eu surtasse, só que minha mente estava muito longe dali. Minha mente estava em casa, vendo minha mãe cozinhar.
Com o tempo, o banco colocou nossa casa à venda. Foi como se a realidade estivesse tentando bater no meu rosto.
Ainda estava difícil me comunicar com alguém. Eu não tinha ânimo. No quarto, à noite, eu perguntava para Deus se ela estava bem. Um desespero me invadia e quando eu sentia que o sono estava vindo, eu achava que era Deus me consolando. Minha mãe dizia que era dessa forma. Que onde havia paz, havia Deus e então, quando eu me acalmava, eu achava que era Deus e assim, eu dormia. No outro dia, eu pedia para Deus dizer "olá" para ela. Eu tinha fé que Ele mandaria o recado.
Minha mãe sempre me ensinou a ter fé. Era estranho como uma pessoa como ela, que só chorava, tivesse fé. Eu era criança, mas, entendia quando ela me explicava sobre isso. Eu só não sabia por quanto tempo eu teria essa fé em mim, porque aos poucos, ela estava indo.
Estava difícil sem ela por perto. A morte não é só cruel para quem vai, é cruel para quem ficava também. Porque você passa por dias em que parece que está morrendo aos poucos. A falta que o outro faz, vai corroendo seu peito e a sensação de que vai superar, parece estar tão longe.
Eu não aguentava mais. Eu ainda tinha a mesma sensação. A sensação de reviver tudo nitidamente, todos os dias. E mesmo que o senhor Mitchell me tratasse bem em sua casa, me afastei dele e da sua esposa. Nenhum deles era a minha mãe.
Eu prometi pra mim mesmo, que eu jamais seria como meu pai. Mas, eu era um Lewis e nós machucávamos as pessoas.
"Coitadas das mulheres. Você é mais um Lewis que nasceu para machucá-las." Foi o que a mãe da Kimberley me disse há alguns anos. E percebi que ela estava certa... Eu era um infeliz, como ela havia dito.
Oh, meu Deus... E eu só tenho doze anos.
E com dozes anos, eu tinha mágoa da minha mãe. Mágoa por ela nunca ter tido forças para ir embora comigo e de repente, teve todas as forças para ir embora sozinha. E eu tinha raiva de mim mesmo, por ter sido fraco e ter desmaiado. Ela achou que eu tinha morrido, porque eu era fraco.
Eu tinha uma mágoa do tamanho do amor que eu sentia por ela. E isso pesava mais de mil toneladas em meu corpo.

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