Capítulo Cinquenta e Nove - A compreensão

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William

— Quando você se lembra de algo relacionado ao seu pai, desde gestos, palavras ou certas situações, quando se instala aquela sensação de medo ou estresse, o seu sistema nervoso envia um sinal, fazendo com que o seu corpo esteja mais atento para reagir a qualquer situação perigosa. Sua corrente sanguínea envia uma grande quantidade de hormônios estimulantes, como a adrenalina, e isso provoca reações, como tremor nas mãos ou em todo o corpo, suor, pupilas dilatadas, aumento dos batimentos cardíacos e aumento da pressão arterial.
Eu olhei para as minhas mãos e pensei em todas as vezes que isso ocorreu.
— Eu percebi que estão diminuindo. Quando você me chama de Davies, ou quando falamos sobre o meu pai, por exemplo, não tremem tanto como antes.
— Você está em um ótimo avanço. Quero que continue com os ansiolíticos, mas, dê importância aos exercícios de respiração profunda. Não quero que se torne dependente de remédios. Agora, quero que me diga o que sentia quando seu pai batia em sua mãe.
Eu respirei fundo e demorei em falar. Um nó se instalou na minha garganta e pensei que as palavras não viriam. Ainda estava sendo difícil.
— No seu tempo, Davies.
Malerman sempre me deixou ficar à vontade. Eu levantei e fui até a janela. Puxei um pouco a cortina e olhei o movimento lá fora. Era mais fácil falar, quando eu não olhava em um rosto. Era como se eu estivesse apenas falando comigo mesmo.
— Eu só tinha oito anos, então, na época eu não sabia o que eram aquelas sensações. Aquele desejo de mata-lo, mesmo quando eu sentia que o amava. Chega a ser profano causar esses tipos de sentimentos a uma criança. Ele causava isso em mim.
— Então está reconhecendo que não era sua culpa sentir aquilo?
— Sim.
— Isto é verdadeiramente bom. Muito bom, Davies. Prossiga!
— Hoje eu sei o nome que se dá àquelas sensações. Eu tinha ódio, raiva, rancor...
— Anos mais tarde, você teve a oportunidade de se vingar. O que o fez mudar de ideia?
— Não sei ao certo — eu olhei para ele e depois voltei a olhar lá fora. — Talvez eu tenha sentindo piedade. Em algum momento, no meu subconsciente, eu certamente senti piedade. E foi por um instante, apenas.
— Por que se sentiu assim em relação a ele?
— Ele começou a me bater depois que ele caiu do telhado. Antes disso, ele era bom comigo, com a minha mãe. Depois que ele foi pedir dinheiro para o pai dele, ele voltou diferente. Começou a beber e ter aquele comportamento. A vida inteira ele apanhou. Uma vez ele chegou bêbado em casa e começou a desabafar. Ele dizia que apanhava apenas por olhar para o pai dele. Que muitas vezes, ele sujou as calças depois de uma surra. Wilson apontou para o antebraço e mostrou a marca de queimadura que o pai dele havia feito com uma vela, apenas porque ele citou o nome da mãe. Mas, nada disso justificava o que ele fez. Ele poderia ter feito diferente.
— Está dizendo que não é por que o pai e o avô dele eram assim, que ele também deveria ser? Quer dizer que ele poderia ter se tornando alguém melhor?
— Sim.
— Então você acredita que...
— Que eu posso ser diferente. Que eu sou diferente.  Que coisas ruins acontecem a todo o momento, mesmo quando não queremos. Mas, eu jamais vou causa-las de forma intencional.
Ele balançou sua cabeça e deu um singelo sorriso. Arrumou os óculos no rosto e cruzou os dedos na altura do seu peito.
— Continue sobre o dia em que quis matá-lo.
— Ele poderia ter sido diferente, mas, escolheu ser como eles. Ele não teve amor por parte do avô, do pai, da mãe que o abandonou. Não sei se minha mãe ainda o amava e ele sabia que tinha perdido o meu amor por ele. Perdeu a dignidade, o respeito das pessoas e perdeu até a vontade de viver. Matá-lo seria algo vantajoso para alguém que já não queria viver. Então, eu tive pena dele, por um instante.
— Por um instante? Depois já não era mais isso?
— Depois eu pensei que seria melhor deixá-lo se afogar na própria desgraça. Ele merecia aquilo.
— E quando você ouviu o tiro, o que pensou, Davies?
— Eu... — soltei uma grande quantidade de ar — eu me lembrei de que em algum momento, eu já o amei. Que em algum momento, ele já foi o meu herói. Em algum momento antes dos meus oito anos de idade.
Eu olhei para as minhas mãos frias, começando a tremer.
— Respire fundo, Davies. Já passou. É apenas uma lembrança.
Eu apertei-as forte e deixei uma lágrima cair no chão, então virei meu rosto, para que ele não me visse naquele estado.
— As lágrimas são uma reação causada durante emoções como alegria, tristeza, risos ou até bocejos. Elas são responsáveis por lubrificar os olhos quando há necessidade. Por exemplo, quando há um cisco. Essa lubrificação é necessária para expelir este pequeno incomodo. Mas, há casos como o seu, em que ela lubrifica seus sentimentos, expelindo para fora, algumas dores. Chorar, também é um grande espetáculo.
Eu enxuguei meus olhos e permaneci calado, olhando pela janela.
— Como acha que estou? — eu disse por fim.
— Penso que já esteja pronto. Se não estiver, meu sofá sempre terá um lugar para você.
Ele sorriu e retirou a carteira de cigarros do bolso.

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