Capítulo Sessenta - O passado em meu presente

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Heloyse

Eu estava atravessando o corredor quando ouvi um choro baixinho. Fiz cara feia ao sentir o odor que impregnava o quarto.
— Michael, pegue uma fralda, por favor.
Michael foi até a bolsa e retirou uma fralda, depois, entregou a mim.
Após ser trocada, peguei Julie e dei sua mamadeira. Enquanto ela mamava no meu colo, eu observava seus traços. Eram tão lindos quanto os de Michael
— Você parece o papai.
Ela retirou a mamadeira da boca e bocejou. Os cachinhos grossos e escuros pareciam uma peruca de tão cheios que eram.
— Por isso é tão linda — disse Michael.
Eu ri e levantei-me para levar Julie até seu bercinho. Minutos depois, ela havia dormido, então, me retirei do quarto.
— Precisa de ajuda? — eu perguntei.
— Me ajude pendurando as bexigas na parede — disse Margot, me entregando uma bexiga cheia.
Ashley estava demorando com as toalhas. Michael entrou para pegar um martelo. A mesa de fora estava com uma perna quebrada e ele iria consertar.
— Alguém viu meu martelo?
— Se você que mora aqui, não sabe, imagina eu, Michael — Margot disse, revirando os olhos.
Nós dois rimos e então apontei para o martelo em cima de um banquinho.
Depois de pendurarmos as bexigas lá fora, eu entrei para conferir se Julie ainda dormia e me deparei com ela sentadinha no berço. Com certeza o barulho das marteladas e mesas sendo arrastadas, acordou-a.
— Oh, minha menina, você acordou. Vem cá, vem.
Ela estendeu os bracinhos para que eu a pegasse. Eu a peguei e lhe dei um beijo em suas bochechas gordinhas.
A campainha tocou e todos estavam no quintal, ocupados em suas coisas, então fui abrir a porta.
O carro preto estacionado era grande e luxuoso. Havia um homem de costas com as mãos nos bolsos.  Usava uma calça jeans preta e uma jaqueta da mesma cor.
Foi preciso toda força dos meus pulmões para conseguir fôlego.
Tinha os cabelos loiros na altura dos ombros, tão brilhosos e aparentavam estar tão macios, como sempre foram. Ele estava bonito. Bem mais bonito do que me recordava.
— Will?
Foi a única coisa que consegui dizer quando ele andou, até parar perto de mim.
Os olhos incrivelmente claros, ainda me fascinavam. Lembrei-me de quando o comparei a um predador, da primeira vez que nos vimos. Aquele olhar felino, ainda estava lá.
O rosto não tinha um pelo sequer e os lábios ainda eram convidativos. Eu pude notar que ele havia emagrecido, ainda assim, pelos braços, notei que ele ainda tinha os músculos definidos. Continuava extremamente, exageradamente, bonito. Aquilo deveria ser um crime.
Tantas coisas vieram a minha cabeça.
Sentia falta daqueles lábios, do cheiro amadeirado que ele tinha, das suas mãos me tocando quando tínhamos nossos corpos unidos... Ainda estava tudo ali. Tudo nítido.
Vê-lo, foi como atear uma faísca na pólvora que estava guardada em algum lugar, esperando para ser queimada.
— Como vai? — ele perguntou.
Antes que eu respondesse, a porta se abriu.
— Algum problema, Lisy? — Michael franziu o cenho quando viu Will parado a minha frente. — É amigo seu?
— Sim — eu disse, lhe entregando Julie. — Vai com o papai.
Julie chorou um pouco, estendendo os bracinhos para que eu a pegasse novamente. Eu beijei sua mão gordinha, prometendo que logo voltaria para ela.
— Você vai ficar bem? — perguntou.
— Sim, eu vou.
Michael olhou mais uma vez para Will. O encarou por alguns segundos, com cara de poucos amigos e entrou.
Will e eu ficamos parados, olhando um para o outro. Havia certa tensão no ar. O tempo estava frio. O céu daquele fim de tarde era um grande cobertor cinza e não sei se a causa do meu arrepio era o clima frio, ou ele era a causa.
Não, eu nunca seria capaz de esquecer aquele rosto, aqueles cabelos, aqueles lábios... Eu precisava me concentrar.
— Como sabia que eu estava aqui?
— Johnson me deu o seu endereço. Fui até onde você morava e uma moça disse que você estaria aqui.
— Johnson? Por que ele faria isso?
— Disse que era uma maneira de consertar as coisas.
— Entendo — eu disse, cruzando os meus braços.
Minha voz era calma, mas, dentro de mim havia uma gritaria ensurdecedora.
— Esse era o Michael?
Balancei minha cabeça, confirmando.
Ele passou o polegar sobre os lábios e depois colocou as mãos nos bolsos.
— Como você consegue estar com uma pessoa que dispensou você para ficar com outra?
— Você também me dispensou.
— Eu libertei você. Pensei estar fazendo o certo, te mantendo longe de mim, ainda assim, nunca a troquei por outra.
— Bom, a vida segue e eu o perdoei — ele desviou o olhar. — Por que você veio?
Antes de responder, me olhou por um tempo com aqueles olhos verdes tão intensos, fazendo meu coração acelerar.
— Eu achei que seria o certo.
— O certo? — eu perguntei com um sorriso amargo. — Depois de dois anos, você soube o que era certo?
— Não depois de dois anos... Mas, durante esses dois anos, eu sabia o que era certo fazer. E eu fiz, só não pude procura-la.
— E o que impediu você?
— Eu precisei fazer algo, por mim. Depois, pensei na sua reação. Sei que magoei seus sentimentos. Também sei que você me acha um covarde. Eu estraguei a oportunidade que tive de ser feliz com você. Johnson disse que você tem uma grande mágoa de mim. Não queria que você se sentisse dessa forma.
— Um pouco tarde para pensar nisso, não acha?
— Sim, eu sei. E... eu não vim aqui para tentar reatar algo que já não existe mais. Eu só quero fechar esse círculo aberto entre nós. Queria viver sem carregar esse remorso. Não quero passar o resto da vida, sabendo que você sente essa mágoa por mim. Foi doloroso para nós dois. E durante esses anos, ainda dói saber que fui covarde. Eu queria o seu perdão, Heloyse. Sei que não o mereço, mas, preciso. É o que a minha alma precisa para ficar em paz.
Eu sentei no degrau próximo à porta e coloquei meu rosto sobre minhas mãos. Esse foi o mesmo degrau que um dia, Michael sentou para contar o motivo de ter se afastado de mim. E lá estava eu novamente, sendo sufocada por sentimentos.
Eu estava indo tão bem. Eu sabia que um dia iria superar tudo isso. Agora, eu não tinha certeza.
— Eu perdoei Patsy, quando ela pediu perdão. Perdoei o Johnson, mesmo tendo motivos para não fazer isso. Perdoei o Michael, mesmo depois do que ele fez. Mas, você...? O que você fez? Você só terminou o que tínhamos. Ninguém é obrigado a ficar com quem não quer. Porém, eu não consigo evitar essa mágoa. Talvez seja como você disse. Eu acho que você foi um covarde, que desistiu de nós. Ficou preso no seu maldito passado e não se deu a oportunidade de ser feliz. Então, olhando por esse lado, eu devo perdoá-lo por ser um covarde, não acha? Perdoá-lo por me deixar voltar para Boston, com o coração quebrado, novamente, só porque você não consegue se livrar de lembranças ruins e viver as novas que poderíamos ter construído? Eu tenho mágoa sim, Will. Eu poderia ter feito você feliz, se você tivesse deixado. Mas, você destruiu isso. Será que devo te perdoar?
— Talvez não. De qualquer forma, eu precisava pedir.
Ele deu os primeiros passos, indo para o carro. Me levantei e o segui.
— Vai desistir do meu perdão, Will?
— Talvez  devêssemos conversar em outro momento. Não quero atrapalhar você. Além do mais, não posso pegar algo que você não quer me dar.
— Foi assim que eu me senti quando você terminou tudo.
Ele balançou a cabeça e abriu a porta do carro.
— Você está voltando para Clearwater?
— Não. Eu estou hospedado aqui.
— Gostaria de conversar em outro local? Não podemos deixar isso para depois.
— Michael não se importará se você for comigo?
— Não — eu disse, franzindo o cenho.
— Deixei meu celular no hotel e estou aguardando a ligação de um cliente. Se quiser, podemos ir até lá.
Eu concordei e dei a volta, entrando no seu carro. Era a primeira vez que eu via Will dirigindo algo que não fosse sua enorme caminhonete.
Will conduzia o volante apenas com uma mão, enquanto o outro braço estava apoiado à porta do carro. Em alguns momentos, ele me olhava, depois olhava para qualquer outra coisa. E assim, seguimos calados até o hotel.
Entramos no elevador e nenhuma palavra era dita. Foram os segundos mais sufocantes da minha vida. O clima entre nós era tenso, como nuvens carregadas.
Ele abriu a porta e esperou que eu entrasse, depois, jogou a chave sobre a mesa de centro e indicou o sofá para que eu me sentasse.
Eu me sentei enquanto ele colocava gelo em um copo.
— Há algumas bebidas aqui. O quer beber?
— Qualquer coisa.
Ele abriu a garrafa de Jack Daniel's, colocou o liquido em dois copos com gelo e me serviu.
Depois que Will sentou-se no sofá à frente, ele deu uma golada em sua bebida e ficou olhando para o copo, até que depois de um silêncio constrangedor, ele resolveu falar.
— Você cortou o cabelo e mudou a cor.
Eu passei a mão timidamente sobre meus cabelos que já não eram tão longos. Já fazia um tempo que eu os tinha cortado abaixo do ombro. Meu cabelo, agora era claro e um pouco volumoso, devido às camadas feitas pelo corte.
— E está mais bonita. Você sempre foi, só que agora, está exageradamente bonita.
Eu estava com um vestido azul, de mangas compridas. Meus joelhos cobertos por uma meia calça estavam de fora e puxei a barra do vestido me sentindo desconfortável.
— Você não se incomodava quando eu te elogiava.
— As coisas mudaram.
— Sim, eu vi.
Havia deboche em sua voz, mas, eu ignorei.
Ele deu um gole em sua bebida até não sobrar nada no copo.
Will estava diferente. Devia estar em seus trinta e três anos, ainda assim, tão jovem. Era um homem que chamava a atenção aonde quer que fosse, independente da idade.
— Eu queria ter vindo antes. Perguntei para Cielo sobre o seu endereço e ela disse que não sabia.
— Ela não mentiu. Mantemos contato por telefone e eu nunca disse meu endereço. Tinha intenção de informa-la, quando ela me visitasse. Ela virá no final do ano — eu dei um gole na bebida. — Por que estava me procurando?
— Porque eu te amava e queria vê-la para dizer isso.
  Uma vez, Johnson disse que Will me amava, usando a palavra no passado e isso, me incomodou. Ouvindo Will usar a mesma palavra, era como se a ponta de uma faca me furasse lentamente.
— Acabei desistindo de procura-la. Eu precisei.
— Não entendo.
— Eu estava fazendo terapia. 
— Isso é maravilhoso — eu disse com surpresa na voz. — Fico feliz por você.
— Obrigado. Foi a melhor coisa que eu fiz. Ajudou-me a separar o passado do presente. Me fez enxergar que os anos estão passando e eu preciso aproveitar os que restam. Não posso envelhecer carregando esse peso nas costas. Também não quero envelhecer sozinho. O passado já não me assusta tanto, porque eu resolvi enterrá-lo em algum lugar — ficou um tempo em silêncio, depois continuou —: No dia em que você partiu, eu quis beber até esquecer que você existia. Bebi tudo o que eu via na minha frente e destruí tudo o que podia. Liguei para você e seu celular estava desligado. Subi na caminhonete e decidi ir atrás de você, mesmo sem saber onde te encontrar. E justamente por saber que eu não te acharia, eu bebi tudo que tinha na garrafa, enquanto dirigia. Não me importei com nada. Ah, Heloyse, eu estava tão cansado da minha vida — ele passou a mão no rosto e olhou para o chão, com o olhar distraído —, que pensei que talvez, seria melhor que eu morresse. Então, soltei o volante, acelerei e deixei o carro ir, enquanto eu bebia tudo o que tinha na garrafa. Não vi mais nada.
Eu precisava tomar ar. Eu senti a umidade presente nos meus olhos.
— Dizem que, o que é ruim, não quebra. Foi a primeira coisa que pensei, quando acordei no hospital. Depois, pensei que por causa da bebida, talvez eu não tivesse pisado o suficiente no acelerador. O máximo que consegui, foram hematomas na boca, nos olhos e um braço quebrado. A batida não teria sido o motivo da minha morte, mas, a bebida, sim. Eu poderia ter morrido devido a um coma alcoólico e eu não me importei. Não estava me importando com minha vida. Johnson foi me visitar e eu queria muito matá-lo, mas, eu não conseguia sair daquela cama, eu não conseguia falar ou fazer qualquer coisa, sabe por quê? — eu neguei com a cabeça. — Me faltava vida naquele momento. Eu só queria morrer. Minha vida me cansava. Sentia-me cansado, desde a minha infância. Então, Calvin enviou um psicólogo até lá e eu não ouvia nada do que ele falava. Voltei para a fazenda, no piloto automático. Tranquilizei o Calvin e a Eva, dizendo que eu não faria nada estúpido, de novo. Eu não sabia por quanto tempo eu manteria aquela promessa. Os meses foram passando e, em uma das visitas da Megan e da Cielo, eu resolvi perguntar seu endereço. Cielo disse que não sabia e me perguntou do que adiantaria. Disse que antes de procurar você, eu tinha que procurar por mim mesmo, porque aquele Will que eu era não poderia jamais, fazer você feliz. Foi aí que resolvi fazer a terapia... Por isso não te procurei.
Depois de ouvi-lo, eu enxuguei a lágrima que caía no meu rosto e me levantei. Fui até o local onde estava a garrafa e me servi.
Ele também se levantou e ficou parado atrás de mim, como uma grande sombra, observando o que eu fazia.
Sua aproximação fez com que eu conseguisse inalar seu perfume. Sua respiração estava próxima e se eu quisesse tocá-lo...
— Eu fico imensamente feliz por você. E desejo que você, um dia, encontre a felicidade.
— Obrigado — ele disse com a voz baixa.
Eu me virei e ficamos um olhando para o outro. Will abaixou sua cabeça, apoiou as mãos no aparador de bebidas, me cercando, mas, sem me tocar. Nossos rostos estavam a poucos centímetros de distância.
Havia algo na minha garganta e eu precisava me libertar.
— Eu deitava e não conseguia dormir. As noites eram o meu maior tormento. Eu não tinha nada para distrair minha cabeça e isso era um perigo, já que minha mente sempre me levava a você, Will. Durante esses anos, me perguntei se você não sentia a minha falta, nem por um minuto. E quer saber? Eu me mantive forte. Não sou fraca por ainda amar você. Sim, porque eu amo. Também não sou fraca por ser sincera. Não sou fraca por sofrer sentindo sua falta. Porque eu consegui seguir em frente sem correr atrás de você. O sentimento ainda está aqui e não podemos mandar no que sentimos, mas, eu não corri atrás. Eu estava disposta a superar.
— Estou orgulhoso de você. Você merece superar qualquer coisa que tenha te machucado. Não merece passar o resto da vida sofrendo. Não pensei que ainda me amasse. Achei que haveria rancor, ressentimento, menos amor.
— Eu tentei não amar você. Quando eu saía, sempre tinha alguém que me fazia lembrar você, mas, quando eu observava atentamente, não havia nada de você, neles. Podia ser uma palavra, uma música, um maldito som de caminhonete... Tudo me lembrava você. E agora você voltou. Por que você voltou, Will? Quer levar meu perdão, mas, com ele vai levar meu coração, porque eu ainda amo você. Muito mais do que antes. Oh, meu Deus... Dói demais continuar te amando.
Ele continuou me olhando. Colocou uma mecha do meu cabelo atrás da orelha e respirou fundo. Esperei que ele dissesse que ainda me amava, no entanto, isso não aconteceu. O empurrei e corri até a porta.
— Aonde vai? — ele perguntou, se aproximando e puxando meu braço.
— Vou embora.
— Eu quero fique.
— Então me diz... Você ainda gosta de mim?
Os segundos se passaram e tudo a minha volta parou quando sua resposta veio.
— Não!

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