Kyra
Figo suspira e toma um longo gole de seu vinho.
- Pode ser que seja seu direito – ele diz, pausadamente. – Mas é meu dever impedir que você vá junto comigo. Eu tenho ordens de seu pai.
Kyra bufa e morde os lábios. Ela mexe a cabeça para os lados, em sinal de reprovação.
- Aliás – Figo continua –, se eu bem me lembro do seu irmão, ele é mais cabeça-dura que você. A última coisa que eu quero é estar acompanhado de dois Tranos dentro do Ninho.
- Não tem graça, Figo.
- Escuta, eu só vou lá entregar uma mensagem, pegar o seu irmão, e trazê-lo de volta para o Forte, junto com os milhares de soldados que estão lá com ele e que não veem a hora de voltar para casa. A guerra acabou, Kyra. Pode não ter acabado do jeito que queríamos, mas acabou. Se os Lordes do Punho quiserem vingança pelo que aconteceu no Ninho, eles que levantem seus exércitos. Nós não temos nada a ver com isso. Aliás, nunca tivemos. Lorde Tranos só entrou no conflito por lealdade ao Imperador Jonas. Agora, Lucas é o Imperador.
- Dizem que o Príncipe João está vivo – Kyra diz, teimosamente.
- Fábulas – Figo diz. – Fábulas que os camponeses contam uns para os outros quando estão entediados.
Kyra bufa novamente, mas decide não insistir no assunto.
- Você e as meninas podem dormir na minha cama – diz Figo. – Eu durmo no chão com os rapazes.
Kyra pensa em recusar a oferta, mas pensa em Lilly e Setta. Depois do dia que elas tiveram, é justo que elas durmam em um lugar confortável.
O sono não vem para Kyra. Deitada na cama entre Lilly e Setta, que dormem profundamente, ela passa horas olhando para o teto. A julgar pelos roncos, Figo, Tito e os irmãos Meinhard já adormeceram. Com a mente acelerada, Kyra não consegue cair no sono. Ela pensa em seu irmão, e nos momentos que teve com ele. A última vez que ela o viu, ela era apenas uma menina de treze anos. Foi há três anos atrás, mas ela se lembra como se fosse ontem.
Julius estava montado em seu cavalo, com as vestes negras da Família Tranos. Era verão, então ele vestia um manto leve sobre as suas roupas de couro e sua armadura Sulista. Em sua cintura estavam suas duas espadas, que ele maneja com tanta destreza. É tradição entre os Cavaleiros Sulistas lutar com duas espadas, mas ninguém é tão bom nisso quanto Julius. Lorde Tranos costuma dizer que seu filho é ambidestro, e por isso consegue usar as duas espadas com naturalidade. Por causa dessa habilidade, Julius Tranos é capaz de lutar contra três ou quatro cavaleiros ao mesmo tempo, e às vezes até mais que isso. Não é à toa que o chamam de Cavaleiro do Terror. Os camponeses o tratam como uma espécie de deus, e dizem que ele é temido até pelos mais habilidosos cavaleiros do Punho e da Terra do Amanhã, ou mesmo pelos perigosos soldados que servem aos Lordes dos Mares.
Kyra lembra que, certa vez, quando ainda era uma criança, o Imperador Jonas visitou a Terra do Gelo. O Imperador viu Julius treinando no pátio, e mal podia acreditar no que via. Mesmo sendo bastante novo, Julius lutava de igual para igual com o lendário Dom Eduardo, encurralando-o com seus ataques com as duas espadas. Foi neste momento que Kyra resolveu que queria ser igual ao seu irmão.
A partir desse dia, ela não desgrudou mais de Julius. Ela passou a segui-lo para todos os lugares e acompanhá-lo em seus treinamentos.
Kyra era feliz nesta época. Ela sente um aperto em seu coração quando se dá conta de como as coisas mudaram desde então. O Imperador Jonas está morto, traído por seu irmão, assim como Dom Eduardo. Julius, por sua vez, está preso em algum lugar nos calabouços do Ninho. Para piorar, agora Kyra corre o risco de perder Figo, que substituiu Julius como seu professor desde que ele partiu para a guerra.
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Das Cinzas da Era Perdida
FantasyUma traição põe fim à Guerra dos Dois Irmãos e arrasta o Império para um novo conflito. Novas alianças se formam na luta pelo poder, enquanto outros lutam pela sobrevivência em meio ao caos.