Capítulo 2 - Abe - Parte 3

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Abe

Abe e Okko carregam a caça até o acampamento, cada um puxando por uma pata. Carregar o animal até lá mostra-se mais difícil do que o esperado. O corpo é pesado e Abe quase não tem mais forças.

A sua chegada é recebida por gritos e aplausos pelos aprendizes. Alguns celebram o fato de terem comida mais que suficiente para aplacar a sua fome. Outros celebram o grande feito de Abe e Okko. Abe, no entanto, não fica para a celebração. Ele deixa o animal do chão e, exausto, caminha em direção à sua barraca.

Ao entrar na barraca, ele se despe rapidamente e deita em sua cama. O sono vem rápido. Assim que fecha os olhos, Abe adormece.

O seu sonho é sempre o mesmo; todas as noites, ele sonha com a mesma coisa. A sua mãe, que ele nunca conheceu, chama o seu nome. Ela não tem rosto. A imagem que Abe vê é de uma mulher sem olhos, nariz ou boca. A sua voz, que também não lhe é familiar, repete sempre as mesmas palavras.

- Venha, Abe – ela diz. – Venha para cá, para perto de mim. Você vai se sentir melhor, eu prometo.

Abe tenta caminhar em direção à sua mãe, mas o resultado é sempre o mesmo. A cada passo que ele dá, ela parece se distanciar. Depois de algumas tentativas, ele se contenta em se sentar no chão e apenas observar a figura estranha que lhe chama.

Ele acorda no meio da noite com a barriga roncando. Todos já estão dormindo e o acampamento está silencioso. Abe se levanta e caminha para fora da barraca, sem ao menos se importar em se vestir. O ar da noite é quente e úmido, mas uma suave brisa sopra, amenizando o calor. Abe vai em direção ao caldeirão, torcendo para que alguma comida tenha sobrado. Para sua sorte, ainda há carne presa à carcaça da pantera pendurada sobre as cinzas de uma fogueira. Ele acha uma faca jogada no chão ali perto e corta alguns pedaços de carne para si.

Em algum lugar do acampamento, alguém chora. É um choro contido, mas Abe conhece o som muito bem. O som dos soluços reprimidos é inconfundível. É o choro de alguém que provavelmente não aguentará até o fim dos testes. Para onde será que o levarão depois que ele desistir?

Depois de comer, Abe volta à sua cabana. Ele não quer arriscar ter mesmo o sonho de novo, mas ele precisa dormir. Ele precisa descansar. Amanhã os testes de admissão à Guarda dos Mares continuarão, e ele não quer descobrir por si mesmo o que acontece com aqueles que não são aprovados.

De volta à sua cama, desta vez Abe demora a pegar no sono. Ele gasta horas revirando-se de um lado para o outro. Sua mente está acelerada com várias dúvidas. Elas são sempre as mesmas. Por que ele não tem outra escolha senão se tornar um soldado da Guarda dos Mares? Por que ele não conhece a sua mãe? Quem ela é? Ela está viva? Por que ele sonha com ela todas as noites?

Ele não se lembra de ter adormecido. A luz do sol da manhã que invade a cabana o acorda. Do lado de fora, várias vozes se sobrepõem e se atropelam de forma confusa.

- O que está acontecendo? – Abe pergunta para ninguém especificamente. Ele se senta na cama e esfrega os olhos.

- Sei lá – Niro, que ocupa a cama à direita de Abe, responde com uma voz cansada. – Esse pessoal não tem mais o que fazer? Dormir, por exemplo?

Ainda zonzo de sono, Abe coloca roupas leves de linho e sai da cabana, seguindo o som das vozes. Ele encontra uma aglomeração perto das cinzas da fogueira. Ele se aproxima, espremendo-se entre seus colegas. Quando chega perto o suficiente, ele vê uma cena que já viu algumas dezenas de vezes antes.

Das Cinzas da Era PerdidaOnde histórias criam vida. Descubra agora