Ezequiel
O caminho até o cais do Porto não é longo. Ezequiel atraca seu navio sempre no mesmo lugar, bem na ponta da península de Agadir. Os demais capitães evitam atracar seus navios ali, pois as águas são agitadas. Porém, a ponta da península é o lugar perfeito para o caso de uma fuga apressada ser necessária, além de ser supervisionada por meia dúzia de fiscais corruptos, que conhecem bem os corsários das Ilhas do Esquecer. Algumas Serpentes Douradas são capazes de garantir que eles façam vista grossa.
O galeão de Ezequiel é discreto, mas não deixa de ser impressionante. Não há ornamentos talhados em madeira ou uma grande e luxuosa cabine, como o navio de alguns Lordes, mas há tudo que um galeão precisa: um casco espaçoso e resistente, quatro mastros e velas gigantescas. Por causa de sua simplicidade, Ezequiel batizou seu navio de Morte Modesta.
Conforme se aproxima do navio, Ezequiel vê Gil carregando suprimentos de um lado para o outro no convés. Ele é um dos membros mais antigos de sua tripulação. Magro, alto e de postura curvada, ele tem rosto fino e de traços fortes, com uma grande testa e um queixo bem delineado. Seus cabelos são loiros e ralos, denunciando a sua calvície. Ele é um dos únicos tripulantes que veio do continente Imperial, de um pequeno vilarejo da Terra do Gelo. Ezequiel o recrutou há quase dez anos, quando roubou um carregamento de tecidos que navegava em direção ao Castelo da Escuridão. Foi a primeira e última vez que ele atacou um comboio Sulista. Para o seu pesar, ele descobriu naquela viagem por que os Cavaleiros da Terra do Gelo são tão temidos.
- Bem-vindo de volta, Capitão! – Gil grita do convés ao avistar Ezequiel e Hugo.
Os dois atravessam a prancha que liga o cais ao convés do Morte Modesta.
- Não esperava que vocês fossem chegar tão cedo – Gil diz, aproximando-se da dupla. – O que houve?
- Nosso chefe está ficando velho – Hugo diz.
No topo do mastro mais alto, uma bandeira verde voa contra o vento, exibindo a enxada e a lança da inofensiva Família Arbor. Ezequiel mantém várias bandeiras dentro do Morte Modesta, e usa cada uma de acordo com a situação. Se ele estiver nos mares da Terra do Gelo, usa a bandeira de alguma família Sulista. Se estiver próximo ao Punho, hasteia a bandeira de uma família da região ou mesmo da Terra do Ferro. Se estiver no litoral da Terra do Verde ou nos mares da Terra do Comércio, a bandeira da Família Arbor é perfeita. Porém, aqui no porto, uma bandeira falsa não é necessária.
- Você já pode baixar a bandeira, Gil – Ezequiel diz. – Ninguém vai nos incomodar aqui. – Ele olha em volta e conta apenas meia dúzia de tripulantes. – Onde estão todos?
- Não faço ideia – Gil diz. – Perdidos pela cidade, eu acho. Você sabe como eles são.
- Ache eles. Nós partiremos hoje de madrugada.
- Já? – Hugo diz – Por que a pressa?
- Há muitos navios da Guarda dos Mares por aqui – Ezequiel diz. – Algo está errado. Vamos tratar de sair desse lugar. Quem não estiver aqui de madrugada será deixado para trás.
Hugo resmunga algumas reclamações, mas Ezequiel não lhe dá atenção. Ele já tomou sua decisão.
- Se me dão licença, eu vou descansar agora.
Os aposentos de Ezequiel não têm nada demais. Sua pequena cabine é iluminada apenas por uma janela. Além de sua cama, ele tem uma mesa e um espelho velho, assim como alguns livros e mapas. O teto é baixo, obrigando-o a se curvar para não bater com a cabeça.
Ele tira a sua jaqueta e encara seu reflexo no espelho pendurado na parede. O seu aspecto está pior do que ele pensava. A sua imensa barba está uma bagunça, parecendo um ninho de pássaro, mas os seus cabelos longos e encaracolados estão ainda piores. O seu rosto, largo e redondo, marcado por um nariz achatado, sobrancelhas grossas, olhos caídos e boca grande, está sujo e oleoso.
Ele se deita na cama, que é pequena demais para a sua estatura, e fecha os olhos. Ele logo adormece.
Quando ele abre os olhos novamente, a luz do sol poente invade a cabine através da sua janela de vidro encardido. Ele se senta e esfrega os olhos. Os seus sonhos foram perturbadores de novo. Eles têm sido perturbadores nos últimos dias. Ele não se recorda de tudo o que sonhou, mas se lembra de algumas partes. Ele se recorda de navegar em um grande mar de sangue, sob um céu roxo escuro que abrigava uma grande lua cheia, brilhante e amarelada. À distância, centenas de galeões inimigos cortavam as águas avermelhadas em sua direção. Ele pediu a luneta a um de seus homens, e o que viu quase tirou o seu fôlego. Os navios inimigos estavam tripulados por corpos putrefatos. O que aconteceu depois disso, ele não se lembra.
Nada disso importa. Embora Ezequiel tenha crescido em meio aos supostos magos e feiticeiros das Ilhas do Esquecer, ele não é um homem supersticioso. Sonhos são apenas sonhos, ele pensa.
Ele vai para o convés em busca de ar fresco. O navio já está cheio, com quase toda a tripulação a bordo. Alguns dos tripulantes ainda estão no cais, fumando tabaco ou jogando cartas. Ezequiel se aproxima de Hugo, que está sentado no parapeito do navio, afiando a sua espada.
- Descansou o suficiente? – Hugo diz com um leve tom de deboche.
- Eu gostava mais de você quando você era calado.
- Que pena.
- Já estão todos aqui?
- Quase todos.
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Das Cinzas da Era Perdida
FantasiUma traição põe fim à Guerra dos Dois Irmãos e arrasta o Império para um novo conflito. Novas alianças se formam na luta pelo poder, enquanto outros lutam pela sobrevivência em meio ao caos.