Alfredo
O cavalo de Alfredo percebe o perigo e foge em disparada, derrubando o aprendiz no chão. O impacto quase o deixa sem ar. Ele chuta as serpentes que tentam chegar perto. O cadáver de Dom Aldo desmonta de seu próprio cavalo e se aproxima de Alfredo, ajoelhando-se ao seu lado.
- Alfredo? – ele diz, com uma voz que parece vir de outro mundo. – O que aconteceu? Você está bem?
- Me solta! Fique longe de mim.
- Fique calmo...
Alfredo fecha os olhos e tenta se desvencilhar, socando e chutando o cadáver ao seu lado. Quando ele abre os olhos novamente, ele vê o rosto de Dom Aldo pairando sobre o seu. Desta vez, no entanto, ele está normal.
- Que sonho foi esse? – ele diz.
- O quê? O que aconteceu...?
- Você dormiu na sela. Eu não quis te acordar, mas há pouco você começou a gritar e caiu do seu cavalo. Aliás, quase que ele fugiu. Eu consegui segurar as rédeas no último segundo. O que você sonhou?
- Eu... não sei... foi um pesadelo, só isso.
- Eu sei que foi um pesadelo. Deu para perceber. – Dom Aldo olha em volta. Eles estão em um trecho da Estrada do Ferro que corta um bosque com vegetação densa. O céu tem um tom rosado, o que significa que o dia já está amanhecendo. – Melhor pararmos um pouco. Nós cavalgamos a noite toda. Vamos comer algo, descansar por alguns minutos, e depois continuamos. – O cavaleiro coloca a mão em uma orelha, como que para ouvir melhor. – Você está escutando isso?
- O quê? – Alfredo tenta ouvir por um momento.
- Água. É o Rio Vermelho. Estamos próximos a ele. Agora só precisamos segui-lo até a sua foz, e chegaremos na Agulha.
Alfredo se senta e esfrega suas têmporas. Sua cabeça parece estar prestes a explodir. Ele tenta se consolar pensando que a viagem até a Agulha está próxima do fim.
- Tomara que Lorde Bainard nos dê um lugar confortável para ficar na Agulha – Alfredo diz. – Eu estou exausto. Você acha que ele vai nos dar bons aposentos?
- Não vejo por que não.
Dom Aldo faz uma fogueira e esquenta um pouco da comida que Olga lhes deu. Enquanto esperam a comida ficar pronta, dois soldados montados e vestidos em armadura passam por eles. Os soldados os observam com olhos curiosos, mas apenas acenam com a cabeça quando veem a caveira bordada no manto de Dom Aldo. Alfredo procura pelo seu brasão. Em seus mantos amarelos, ambos os soldados carregam as três espadas cruzadas da Família Bainard. São soldados da Agulha.
- Sorte que eu estou com você – Alfredo diz. – Senão, eles viriam me questionar.
- Eu já acho que é o contrário – Dom Aldo responde. – Um cavaleiro, por mais que seja de uma família amiga, pode despertar o interesse de alguns soldados. Mas um cavaleiro acompanhado de um aprendiz de Erudito não é visto como uma ameaça. Eles devem achar que estou te escoltando.
- Eles acham que Dom Aldo está escoltando um mero aprendiz de Erudito? – Alfredo diz em tom de ironia. – Que decadência, não é?
- Eles sabem quem é Dom Aldo de nome, mas muitos nunca viram meu rosto. Para eles, eu sou apenas um soldado da Família Feros. – A expressão do cavaleiro fica repentinamente séria. – Eles não são os primeiros a passar por nós. Durante a noite, cruzamos com uma dezena deles. Olga estava dizendo a verdade. Há muitos soldados da Agulha nesta região. Mais do que o normal.
Os dois comem rapidamente e continuam sua viagem. Alfredo tenta se esquecer do sonho que teve, mas as imagens perturbadoras continuam a voltar à sua mente. Tudo parecia muito real. Assustadoramente real. O aprendiz pensa se o seu sonho tem algum significado. Os povos antigos costumavam dizer que os deuses usam os sonhos para falar com os homens. Irmão Humberto diria que isso é bobagem. Afinal, os povos antigos eram supersticiosos, e os Eruditos não acreditam em divindades.
Já é de manhã quando eles chegam às margens do Rio Vermelho. Suas águas correm vigorosamente e têm um tom marrom. A Estrada do Ferro continua rumo ao sul, por uma ponte em forma de arco que cruza o rio. Alfredo já estudou bastante sobre esta ponte. Ela foi projetada por Irmão Sertus há dois séculos. A longa vida da ponte provou a teoria do famoso Erudito de que estruturas em forma de arco seriam mais resistentes.
- Estamos no período de cheia do Rio – Dom Aldo diz. – Quando chegar o inverno, as águas não vão ter tanta força assim.
Alfredo observa a correnteza por um momento. Como pode ser possível que uma criança de onze anos tenha sobrevivido a essas águas? Mesmo um adulto teria grandes chances de morrer afogado.
Os dois cruzam a ponte, mas Dom Aldo logo vira à esquerda em direção a um estreito caminho às margens do Rio Vermelho.
- Onde você está indo? – Alfredo pergunta.
- Como eu disse, temos que seguir a margem do Rio de agora em diante. Você conhece os mapas. Daqui em diante, a Estrada do Ferro nos leva para um lugar que não queremos ir. Pelo menos não neste momento.
Dom Aldo está certo. A Estrada do Ferro segue até a costa do grande continente que abriga o Império, que os Eruditos chamam de Mediaterra. De lá, a estrada faz uma curva em direção ao oeste, rumo à Terra do Gelo, até chegar ao Forte da Tempestade, o castelo da Família Tranos.
Alfredo nãocompreende por que Dom Eduardo escolheria o Castelo da Agulha ao invés do Forteda Tempestade. Os Tranos são frequentemente descritos como frios e cruéis, maseles permaneceram ao lado do Imperador Jonas durante toda a Guerra. Por queeles trairiam o Príncipe João logo agora? Além disso, o Forte da Tempestadefica a dois ou três dias de viagem do Ninho, enquanto o caminho para o Casteloda Agulha é bem mais longo.
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Das Cinzas da Era Perdida
FantasyUma traição põe fim à Guerra dos Dois Irmãos e arrasta o Império para um novo conflito. Novas alianças se formam na luta pelo poder, enquanto outros lutam pela sobrevivência em meio ao caos.