2- Cumplicidade de irmãos

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Mary sentiu-se em flutuar leve, em um extenso túnel de nuvens brancas. O frescor do ar era único... Silêncio... Paz... Nenhuma dor... Apenas um vulto ao longe, de longas vestes, a estender os braços e chamar seu nome...
_ Mary! Mary!
Mary seguia a luz, o ar leve, a voz longínqua do vulto que falava-lhe de uma"missão"... Tudo parecia programado... Paz...
Num repente, Mary sentiu-se presa pelo pé... Pensou ter esbarrado num cantinho de nuvem daquele estranho caminho de luz...
_ Mana! Mana! Maaaanaaaaa!!!
O desespero de Miguel estava sem controle. Mary sentiu seu corpo sendo sacudido desesperadamente pelas magras e pequenas mãos de Miguel.
_ Não!!! Não pode ser! Maaaannaa!!!
As lágrimas ecoavam copiosamente pela face desesperada de Miguel, que levantou os olhos e pediu a Deus:
_Deus!!! Me ajuuuuuuda, Deeeeeeus!!! Não posso ficar sem ela!!! Não leva minha irmã!!!
Mary sentiu, no momento, todo seu corpo sendo sacudido. Era Miguel, que sacudia repetidamente, o corpo de Mary, que sentia-se paralisada. Em um impulso, virou-a de bruços, mesmo sem saber que essa atitude salvaria a vida de Mary, que, ao abrir os olhos, não sabia o que lhe acontecera.
_ Mana! Você voltou!!! Graças a Deus!!!
Miguel ergueu os olhos ao céu, em sinal de gratidão, pois o pai ensinara-o sempre a ser grato a Deus, por tudo.
_ E agora, mana? Como vamos explicar o que aconteceu para o pai e a mãe?
A preocupação de Miguel era evidente, transparecia em seu rostinho de criança. Mary certamente levaria um castigo, ou até umas chineladas, por estar molhada... Miguel olhou para o rostinho atordoado de Mary.
_ Já sei!!! Se o pai e a mãe quiserem te castigar, vão ter que me castigar também.
Miguel pulou dentro da sanga, ficando com água até o umbigo, molhou toda a própria roupa, saindo em seguida, molhado feito patinho.
_ Vou dizer pro pai que está muito calor, e resolvemos nos refrescar. E não abre a boca pra dizer outra coisa, mana. Será nosso segredo.
Miguel abraçou o magro corpo de Mary, e juntos adentraram na casa. Arnaldo ergueu as sobrancelhas, surpreso...
_ Crianças!!! Porque estão molhados?
_ Por nada, paiê! Tá muito quente hoje. Eu e a mana"jogamos água um no outro"!
_Precisam cuidar pra não cair naquela sanga. Ela é funda demais pra vocês dois.
Miguel e Mary se entreolharam, em cumplicidade.
_Aaaaaa, ainda vamos ter luz elétrica e água encanada. Assim podem tomar banho de chuveiro. É mais seguro. Vão vestir uma roupa seca.
As crianças correram até o quarto, onde cumpriram a ordem do pai, que, da cozinha, falava às crianças:
_ Se vocês se comportarem direitinho, vou levar vocês dois até a estrada principal. Lá a patrola da prefeitura está espalhando saibro, pois a chuva da última semana estragou toda a estrada.
_Ebbbbba!!!
Miguel era fascinado por máquinas. Seu sonho era ter um brinquedo com rodas.
_ Um dia vou pedir um carrinho pro Papai Noel. Então posso dar meus ossos de avião pro Amigo!
_ A comida está esfriando, crianças.
Irene estava impaciente com a demora para servir o almoço.
_ Ouvi você dizer que levaria as crianças até a estrada principal, pra ver a patrola. Não quero que leve Mary.
_ Porque não?
_ Primeiro, porque máquinas não são coisas para meninas. Segundo, estrada não é lugar de meninas.
Irene olhou incisiva para Arnaldo.
_Mas eu vou estar junto com os dois. Sou o pai deles. Nada vai acontecer.
_ Ela não vai e pronto.
Irene olhou furiosa para Arnaldo. Um olhar que parecia uma navalha...
_ Tudo bem. Levarei só o Miguel, então.
O almoço transcorreu em tranquilidade, porém, quando Mary soube que não acompanharia o pai e o irmão até a estrada principal, ficou triste. Não compreendia o motivo.
_Paieeeee!!! Oooooolha, pai!!! Que patrola grande!!!
Miguel estava fascinado. Amava ver máquinas, ouvir seu roncar estrondoso... Estava simplesmente maravilhado...
_ Aí, guri! Tá gostando do serviço?
Era o operador de máquinas da prefeitura, puxando uma prosa com Miguel. Ele notara que, apesar do menino estar fascinado, o medo daquela enorme máquina estampava-lhe o olhar.
_ Quer uma balinha, guri?
O profissional da prefeitura tirou do bolso uma bala de hortelã.
_ Pode pegar, guri. Pode, não?
Miguel olhou interrogativamente para o pai. O pai acenou afirmativamente.
_ Tem duas balas, tio?
Miguel encarou o homem com a timidez de um pequeno cãozinho, quando pede um osso ao dono.
_ Mas o que é isso, Miguel? O "tio da patrola" te ofereceu uma bala, e você vai e pede duas? Não acredito no que meu filho fez. Perdão, senhor, pela ousadia do meu guri.
_ Calma, Sr Arnaldo... Vejamos... Para que você pediu-me duas balas, guri?
_ Eu explico sim, tio. Minha mãe não deixou minha maninha vir olhar a patrola, tio. Quero levar uma bala para ela.
O pobre operador de máquinas quase"foi ao choro"... Engoliu seco e tirou um punhado de balas , colocando todas na mãozinha de Miguel.
_ Vai, meu guri!!! Quisera meu filho ser como você.
Arnaldo agradeceu fervorosamente ao trabalhador das estradas.
_ Deus lhe pague, Sr.
Miguel não via a hora de chegar em casa e dividir as balas. Chamou Mary e fez a contagem das balas... Sete balas...
_ Poxa vida!!! Vai sobrar uma... Ou faltar uma... Já sei!!!
Miguel correu até a cozinha, empunhou uma faca e saiu em disparada. Não deu tempo para explicar à mãe o motivo pelo qual queria a faca.
_ Assim você fica com três balas e uma metade, e eu também.
O ar de cumplicidade entre os dois irmãos transparecia em seus rostos, gestos e palavras.
_Mana! Prometo sempre cuidar de você...

*Amigo:cão da família.

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora