65 - O acidente no Kung Fu

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Miguel deu uma última olhada no espelho:
_Vamo logo, Miguel! Ainda preciso passar na casa do Juvenal e pegar o Francisco! Não vão querer chegar atrasados hoje nos treinos!
_ Calma, pai! Ainda tenho que amarrar o meu sapato e passar um pente no cabelo!
_ E tu acha que o teu cabelo vai ficar alinhado na hora do treino?
_ Tá, pai! Mas e no caminho? No caminho eu tenho que tá bonito, né? O mestre de Kung Fu não vai se importar com uns minutos de atraso!
_ Entrando no Kung Fu, ou em qualquer outra coisa, tem que te ajudar a ter disciplina. E começando pelo horário marcado! Se o mestre marca pras duas, não é às duas e quinze nem duas e meia!
_ Tá bom, pai! Tô pronto! Vamo, que o Chico deve tá esperando!
_ Prefiro tá lá um pouco antes da hora marcada, do que depois. O atraso vai virando costume, e depois tu não aprende a honrar teus compromissos!
_Oooo, pai!!!
Miguel olhou para o pai fazendo muxoxo. Arnaldo continuou:
_ E não adianta fazer essa carinha de zangado comigo não, jovenzinho! Querem praticar algum esporte ou alguma arte marcial? Comecem pela disciplina e vão longe!
Arnaldo e Miguel chegaram na casa de Juvenal. Francisco já estava à espera.
_ Pensei que não iam mais vim, Mig!
Arnaldo brincou:
_ É esse bonequinho aqui que não ficava pronto nunca! Agora deu pra ficar se arrumando todo na frente do espelho, só pra ser descabelado de novo na hora do treino!
Miguel corou diante das palavras de Arnaldo.
_ Pára, pai!
_ Mas não é verdade? Tô achando que foi uma boa vocês participarem de mais essa peleia, porque enfiar na cabeça de vocês que precisa honrar os compromissos tá difícil! Assim, através dos treinos, quem sabe vocês vão aprender a ter disciplina! Já estão no quarto treino e Miguel ainda não aprendeu que horários marcados são horários marcados!
_ Mas, pai... A gente só entrou no Kung Fu pra ficar mais forte e conseguir dar uma lição no Léo... Não pra ter essa tal de "disciplina"!
_Ahhh, meus jovenzinhos... O pacote vem completo nas artes marciais! Primeiro, vocês tomam uma dose bem grande de disciplina, depois, a defesa pessoal, e por último e menos importante, o ataque!
_ Nossa, tio Arnaldo! Como o senhor sabe tudo isso? O senhor também já treinou alguma luta?
_ Não, Francisco. Mas eu fui me informar antes de deixar o Miguel fazer os treinos! Eu jamais iria deixar o meu filho entrar num treinamento de luta que prega a violência!
_ Mas... A gente só quer dar uma lição no Léo!
_ Vingança não é o remédio! Só traz problemas pra ambas as partes. Não é melhor deixar a justiça nas mãos de Deus?
_ Mas a gente quer acabar com a raça daquele fulano que machucou a mana, pai!
_ Olha... Eu também fiquei revoltado com o que vocês me contaram, mas violência só gera violência... Tudo bem de vocês praticarem alguma arte marcial,mas não com esse objetivo!
Meio a contragosto, Miguel olhou para o pai com o rabo do olho.
_ Tá bom, pai!
_ Já chegamos! Eu vou deixar vocês lá dentro e vou aproveitar pra fazer umas compras. Tenho que pegar umas coisas pra Tina no mercado também. Depois venho assistir o finalzinho do treino de vocês. Caprichem!
_ Pode deixar, pai! A gente vai mostrar pra ti depois como já tamo bem nos treinos!
_ Não tenha pressa, Miguel... A pressa sempre foi inimiga da perfeição!
_ De novo com esses ditados, pai! Eu quero ficar bom na luta, e tô com pressa, sim! Essa perfeição é pra molengas!
Arnaldo olhou para Miguel com ar de reprovação.
_ Miguel!!!
_ Desculpa, pai! Escapou!
_ Vou repetir quantas vezes for necessário, filho! Não tenha pressa! E tenha disciplina... Vou ir agora, ou vou ficar só batendo boca com vocês e esqueço as compras!
Arnaldo saiu, deixando Miguel resmungando:
_ Tô pouco me lixando com essa "disciplina" que o meu pai tanto fala! Ele repete, repete, repete... Parece até que travou nessa palavra! Eu quero mesmo é ficar forte e ágil! Quando eu tiver uns baita de uns músculos, aquele filho da mãe que machucou a mana vai ter o que merece!
O mestre de artes marciais solicitou o aquecimento físico no grupo de treinadores. Organizou-os de par em par para a primeira etapa dos treinamentos do dia.
_ Depois desse primeiro treino, as duplas trocarão de par, pra fazer um segundo treino... E assim, sucessivamente!
Todo o grupo de jovens treinadores olhou-o interrogativamente:
_ Sucessivamente?
_ Sim, meninos! É trocar de novo de par... Vamos fazer um treino intensivo hoje! Já estamos no quarto treino e acho que vocês já podem dar um pouco mais de si pra lutar!
_ Mas, e se a gente ficar cansado?
_ Tentem respirar fundo e aguentar! Ou vocês acham que os grandes campeões sentam no cantinho e descansam quando começam a suar? Aí mesmo que a luta "esquenta"!
_ Tá bom, mestre!
Os meninos foram organizados em duplas, em tatames improvisados por toda extensão do ginásio..
_ Não se esqueçam, meninos! Isso é só treino... Não quero ver golpes baixos ou falta de disciplina! No mais... Se tiverem dúvidas, perguntem!
Na primeira rodada de treinamento, Francisco já estava prestes a desistir:
_ Eu não aguento mais, Mig! Já tô cansado agora... Imagino depois da segunda ou terceira rodada!
Miguel olhou para Francisco e piscou:
_ Vamo fazer dupla eu e tu? Assim a gente não "pega pesado"e não cansa tanto... Vamo só fazer de conta que tamo treinando... O mestre tem outras duplas pra olhar ao mesmo tempo, e nem vai notar que combinamos fingir o treino.
_ Boa ideia, Mig! Ficar forte cansa... E dói...
Arnaldo chegou justamente no momento em que os meninos formaram as duplas para a última rodada dos treinos. Miguel correu até a presença do pai.
- Oi, pai! Eu e o Chico treinamos juntos agora a pouquinho! Pena que não viu !
_ Que bom que cheguei bem na hora de assistir a última rodada. Assim vou ver como vocês estão se saindo nos treinos!
_ Tamo bem, pai... O treino que eu e o Chico fizemo junto foi fácil!
_ Maravilha, meninos! Agora vão... O mestre tá chamando pra continuar os treinos!
_ Tu ainda vai ter muito orgulho de mim, pai! Eu vou ser o melhor! E vou mostrar pra ti!
A voz impessoal do mestre encheu o ginásio e chegou até os alunos:
_ Não se esqueçam... Novo revezamento de parceiro de treino... Essa é a última etapa do treino de hoje! Depois, estarão liberados!
Miguel correu até o tatame onde ele e Francisco haviam treinado. Ao olhar o novo colega de treino, lembrou-se das palavras de Francisco, ao falar de Mary, machucada por Léo... Apertou-lhe a mão, sentindo uma estranha sensação. Parecia que aquele menino à sua frente era o mesmo que machucara Mary... Não conseguiu segurar... Partiu para uma série de golpes... À medida que o treino avançava, Arnaldo ia notando que Miguel não estava só treinando, e sim, partindo para uma luta mais intensa. Estarrecido, presenciou um salto simultâneo de Sparring da dupla. O colega de Miguel saltou mais alto e Miguel foi ao chão... O colega caiu encaixado de forma lateral na cintura de Miguel... Um grito de dor rasgou o ginásio... As lágrimas desciam pelo rosto de Miguel... Arnaldo correu até o filho.
_ Miguel!!!
Um círculo formou-se ao redor de Miguel. Os meninos ali presentes ficaram curiosos e preocupados com o acidente.
_ Afastem-se! Ele precisa respirar! Vamos levar ele pro hospital! Chamem uma ambulância!
Arnaldo aproximou-se rapidamente:
_ Eu sou o pai dele, e tô de carro aqui! Vou levar ele pro hospital!
_ Melhor não, Sr... Na ambulância tem recursos pra prestar os primeiros socorros! E no carro do Sr não os terá, e ainda estará em posição inadequada, pro caso de ter fraturado a perna ou o quadril!
_ Então vou levar o Francisco pra casa primeiro, depois vou até o hospital... Não posso deixar o Francisco sozinho aqui no ginásio, e não vão deixar ele entrar no hospital comigo!
Arnaldo deixou Francisco e as compras na casa de Tina, voltando ao centro em seguida. A caminho do hospital, parecia que um filme estava se repetindo na mente de Arnaldo. Mais uma vez, Miguel se machucara e fora parar no hospital. E mais uma vez aquela sensação de abandono total, por estar sozinho para cuidar do filho.
_Que Deus cuide do meu filho!
Na sala de espera, parecia que os minutos eram horas! As paredes alvas pareciam aproximar-se e afastar-se repetidas vezes.
_ Deus... Não permita que aconteça o pior... O Miguel é a única coisa que ainda me resta nessa vida! Te agradeço tanto que o deixou comigo por tantos anos...
A voz do médico plantão do hospital Bom Pastor tomou o ambiente:
_ Sr Arnaldo! O Sr que é o pai do paciente Miguel Engelmann?
Arnaldo ergueu-se da cadeira de um salto.
_ Eu mesmo, Dr! Como ele tá?
_ Infelizmente, seu filho sofreu um grave deslocamento da bacia, que é um osso do quadril que saiu do lugar. Sugiro um encaminhamento pra cirurgia, com a finalidade de recolocar o osso em seu devido lugar.
Arnaldo olhou para o médico, preocupado.
_ Tá... E como vai ser essa cirurgia?
_ Olha... Vou lhe ser sincero... Vou encaminhar ele para um traumatologista, pelo SUS... Mas lamento dizer que há uma fila bem extensa nesse tipo de procedimentos! E quanto à sua pergunta... Tenho que ser sincero...
_ Pode falar, Dr!
_ Não é um procedimento simples. O traumatologista vai fazer uma incisão na coxa, "serrar o fêmur", e encaixar a ponta do fêmur certinho na bacia... Depois, será colocada uma placa de platina pra recalcificar o fêmur. Tenho que reconhecer... É um procedimento complicado, mas eficaz!
_ E... Quanto tempo levaria pra que ele faça essa cirurgia?
_ Eu não saberia dizer exatamente... Mas tudo depende do andamento dos procedimentos já encaminhados..
Arnaldo olhou para Miguel, na maca hospitalar.
_ Mas... Parece que ele não tem dor nenhuma, agora...
_ Ele está medicado e sedado... Vamos deixar ele em observação por alguns dias aqui no hospital. Depois, ele poderá aguardar a cirurgia em casa.
_ E como? Parece que ele não vai conseguir caminhar tão cedo...
_ Não recomendo tentativas de marcha dos membros inferiores antes da cirurgia, pois pode agravar a situação dele.
_ Então, Dr... Tá querendo dizer que meu filho não deve andar?
_ Exatamente. Sugiro o uso de uma cadeira de rodas, pra ele não ficar só na posição horizontal, pois deitado, o pulmão dele poderá ficar debilitado também...
Arnaldo ficou ali, observando o filho adormecido profundamente.
_ Ô, meu guri! Que enrascada que tu te meteu agora! Mais uma vez, sem caminhar... E por quanto tempo, será?
E aquele velho filme parecia rebubinar-se novamente, passando em sua cabeça... Mais uma vez aquela sensação de não saber que rumo tomar, onde se agarrar para não cair...
_ Tenho que achar um jeito de salvar meu filho! Um menino cheio de vida como ele não merece passar por isso!

*

Na Itália...
Albertina observou Mary, na biblioteca da mansão de Francesca.
_ Vamos fazer companhia à dona Francesca? Precisa sair um pouco da biblioteca..
Mary sentiu de repente um arrepio percorrer seu corpo.
_Estranho... Não tá frio, mas parece que veio um frio intenso, de longe... Entrou no meu coração, foi se espalhando pelo corpo...
_ Deve ser fome.. Não sai nem pra comer...
_ Pode ir, Albertina... Vou daqui a pouco!
Albertina mostrou preocupação ao entrar na sala:
_ Essa menina não sai da biblioteca, dona Francesca! Ela tá fazendo pesquisa sobre pesquisa, sobre células tronco! Ela ainda é capaz de encontrar um tratamento pra tirar a senhora da cadeira de rodas!
Angela, que iniciara a sessão de fisioterapia, interrompeu, em tom de brincadeira:
_ Aí eu vou ficar sem trabalho e tenho que voltar pro Brasil!
_ Mas seria maravilhoso!
_ Eu sei... Dona Francesca fez questão que eu viesse pra Itália com ela, pra que eu desse sequência aos tratamentos. E eu me acostumei tanto com ela, que parece que ela é minha família!
Os olhos de Francesca brilharam de repente, e seus músculos pareciam querer despertar...
_ Viu só, Albertina? Eu sei exatamente o remédio que está faltando pra cura dela: é uma família!
_ Mas ela tem a pequena Mary... Ela é como se fosse filha... É a família dela...
Os olhos de Francesca brilharam de repente, pois Mary estava à sua frente.
_ Essa menina é o remédio principal da Dona Francesca! Ela ainda vai cumprir a promessa de sair caminhando com ela pelo jardim...
_ E vou cumprir mesmo, Albertina! E vou descobrir um jeito de tirar ela da cadeira de rodas e fazer caminhar de novo...
_ Que Deus te ouça, menina!
_ E depois, dela, vou ajudar outras pessoas cadeirantes a caminhar!

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