67 - A Colméia do Bem

1 0 0
                                    

Alguns dias após a primeira sessão de massagem, Miguel já sentiu os primeiros resultados:
_ Já tô conseguindo mexer os dedos do pé, pai!
_ Calma, Miguel... Tu ouviu o que o massagista falou... São umas quatro sessões de massagem, no mínimo...
_ Ô, pai! Não é massagista. É "arrumador de ossos"... Ele tá arrumando meu esqueleto direitinho! Já tô sentindo menos dor... Logo posso sair dessa cama e correr por aí de novo!
_ Calma, marujo! No momento, nada de abandonar o navio! Tu sabe que lá fora os tubarões vão te pegar!
_ E lá eu tenho medo de tubarão? Eu faço picadinho deles!
_ Já vi que o jovenzinho aqui tá mudando os pensamentos... Só espero que essa fase fique na adolescência, e não pule pra aborrescência!
_ Aborrescência? Que diacho é isso, pai?
_ Aborrescência é quando o jovem "aprendiz de adulto" faz bagunça e azucrina a vida dos outros, só pra se divertir, e acaba estragando a vida dele mesmo, e às vezes, estraga também a vida dos outros...
_ Aaaa, pai... Mas eu não vou ser um aborrecente! Vou ser um homem honrado, que nem o senhor, capitão! Ou melhor, quero ser militar quando eu crescer! Quero defender a minha Pátria!
Arnaldo sentiu sinceridade nas palavras do filho, mas preferiu desviar o assunto com cautela.
_ Já que tu tá melhor, hoje de tarde vou te levar até a casa das manas, pra estudar. Assim, a Tina não fica sem elas. Coitada! Ela tem o nenê, e ainda cede as meninas pra te ajudar nas tarefas da escola.
_ Iebbbba! Amei a ordem do capitão! Abandonar navio! Vamos ao barco das manas!
Miguel fez menção de levantar-se, mas Arnaldo não permitiu:
_ Nada feito, marujo! Primeiro almoçar... Ou vai esvaziar a despensa da Tina!
_ Tenho uma ideia, pai!
Arnaldo olhou para Miguel desconfiado:
_ O que essa cabecinha maluca tá arquitetando?
_ Nada, pai! Só ia dizer que a gente poderia levar umas coisas pra tia Tina... As meninas falaram que elas tão poupando na comida, pra não faltar...
Os olhos de Arnaldo se encheram de lágrimas ao ouvir o que o filho falara...
_ Então... Elas tão passando aperto... E Tina não me falou nada.
_ Mas as manas me disseram ontem, quando fizeram sanduíches pro lanche... Elas tavam com uma fome de leão...
Arnaldo não podia acreditar no que acabara de ouvir...
_ Estranho... Ainda ontem, quando eu fui levar ela pra consultar, ela falou que tava tudo bem...
_ Acho que ela tava com vergonha de falar, pai...
Arnaldo colocou a mão no queixo...
_ Acho que eu faria o mesmo, Miguel... Não quero que ninguém tenha pena de nós!
_ Mas nós vamos ajudar elas, né, pai? Elas sempre nos ajudaram...
_ Vamos fazer assim: vou levar umas coisas no carro e falar com ela primeiro... Se ela aceitar, beleza! Não quero forçar nada! Somos amigos de longa data, e não quero que ela se magoe!
Arnaldo arrumou algumas provisões e colocou-as no carro. Ao chegar, após ajudar Miguel a entrar na casa de Tina, arriscou:
_ Tina... Podemos conversar?
_ Deixa só eu colocar o nenê no berço...
Arnaldo ficou ali, pensando em mil maneiras de ajudar a amiga, que tanto o ajudara no passado. Ao voltar e ver a fisionomia séria de Arnaldo, Tina pressentiu que o assunto era sério.
_ Pois fale, Arnaldo! Puxa um banquinho e senta!
_ Eu não sei como começar...
Tina olhou-o de frente...
_ Pois comece do começo, Arnaldo. Somos amigos a tanto tempo, que creio que tu não deveria ter medo de falar! E pode ter certeza que o Cláudio te diria o mesmo!
Diante das palavras simples e claras de Tina, Arnaldo criou coragem e foi escolhendo as palavras:
_ Olha... O Miguel quis trazer umas provisões... Como ele tá numa fase meio "saco sem fundo", a gente não queria dar prejuízo pra vocês. Aceita?
Tina sorriu:
_ Ahhhh... Era isso? Mas é claro! Tu já nos conhece de anos! Somos simples... E valorizamos toda ajuda que recebemos!
Arnaldo suspirou aliviado.
_ Ainda bem... Sei que tu tá te virando sozinha, e eu não quis ofender...
_ E lá ajudar os amigos é ofender? Eu e o Claudio passamos a vida ajudando quem precisava, e nunca pensamos nisso... Agora, infelizmente, nós é que estamos precisando de ajuda... Logo vou começar a fazer as sessões de radioterapia... Aí mesmo que vamos precisar... Mas não vamos pedir nada a ninguém! A gente vai dar um jeito, e chega lá!
_Eu te entendo, Tina... Não sabe o quanto te entendo! Posso te perguntar mais uma coisa?
Tina olhou para Arnaldo assustada:
_ Pode... Claro que pode...
_ Se mais alguém quiser te ajudar, te trazendo alguma coisa, aceita? Tenho amigos no sindicato rural e da igreja que sei que te ajudariam... São pessoas simples como nós, sabem que tu perdeu a padaria, e querem ajudar...
_Claro, Arnaldo! Mas não quero que as pessoas fiquem com pena de nós! Não posso trabalhar agora, mas assim que eu fizer o tratamento pra curar o meu câncer, vou reformar a padaria e recomeçar do zero!
_ Fica tranquila, Tina. Só vou fazer o que tu e o Claudio fariam por nós! E pode ter a certeza que o pessoal que vai te ajudar, e é porque um dia tu, como professora, plantou uma boa sementinha no coração delas...
Arnaldo saiu da casa de Tina com uma certeza... Que iria ajudar de qualquer forma, nessa fase difícil da vida dela! Ao voltar para casa, parecia que o frescor daquele ar puro o fizera pensar. Olhou para o céu:
_ Deus... Permita que a Tina consiga toda a ajuda que merece! Ela sempre foi a primeira a ajudar o Miguel quando ele precisou... E agora ela tá numa pior, e ainda quer ajudar os outros... Ela merece que aquelas sementinhas que plantou um dia floresçam e dêem os mais belos e bons frutos!
Arnaldo pensou nas várias maneiras que poderia ajudar, mas parecia que nenhum plano surtiria efeito, pois estava sozinho. Decidiu ir à cidade, comprar alguns produtos na agropecuária do Sindicato rural. Ao escolher algumas sementes de hortaliças, ouviu sem querer duas senhoras, comentando:
_ Olha, Lizi... A gente precisa ajudar ela de algum jeito! Ela foi minha professora. Tudo de importante que aprendi na vida, praticamente devo a ela, que me ensinou o que meus pais jamais me ensinaram, que é o amor incondicional a um filho... Meus pais só pensavam em fumar e jogar bingo, sem se importar se eu e meu irmão aprendiamos alguma coisa com isso ou não. Agora, que ela precisa de ajuda, parece que ninguém vai se prontificar a fazer alguma coisa!
_ Olha, Cristiane! Eu faço parte do Grupo de mulheres " Girassol", e vou levar o caso da Tina pra reunião do grupo. Planejo fazer uma rifa pra ajudar a Tina, e se o grupo for de acordo, vamos nos mobilizar todas em benefício dela... Ela tem as gêmeas e o nenê recém nascido, e tá sozinha pra sustentar...
_ E eu faço parte de um grupo chamado "Colmeia do bem"... Vou conversar com a Adriane e a Mara, e levar alguma ideia pro grande grupo.
_ Sei que ela perdeu a padaria, que pegou fogo, e tem as crianças pra sustentar sozinha...
_ Sim. E eu soube que ela ainda descobriu um câncer de mama, que ela vai ter que fazer um tratamento pra curar... Mas esse tratamento ela só pode fazer quando o nenê dela tiver 3 meses!
Arnaldo olhou para as duas mulheres, e brincou:
_ Desculpa me meter, senhoras, mas ouvi que tão fazendo uma"fofoca positiva" pra ajudar a Tina!
Lizi sorriu:
_Sim, seu Arnaldo. A gente já tinha comentado em ajudar quando seu Claudio tava no hospital, mas não sabíamos como a Tina iria reagir... Era tudo muito recente...
_ E agora, que tá quase chegando o Natal, pensamos em fazer alguma coisa pra ajudar. Ela sempre teve um bom coração!
_ E eu e o meu filho somos prova do bom coração dela!
Arnaldo narrou à elas sobre a época que Irene o abandonará, com o filho doente... Quando Tina e Claudio e as manas o ajudaram.
_ E agora, que o Miguel se machucou, ela pediu pra deixar ele na casa dela, pra que as meninas possam passar os conteúdos da escola pro Miguel, e que eu possa trabalhar... Ninguém se preocupou em oferecer ajuda pra gente, só ela e as meninas!
_ Vamos fazer umas campanhas de ajuda pra ela... Sei que não vai resolver os problemas de saúde dela, mas sabemos que o câncer é uma palavra que já derruba a pessoa só de ouvir a palavra... Imagino quem passa por um e precisa fazer tratamento...
_ Sabemos que qualquer ajuda será bem-vinda, até ela conseguir se curar do câncer, reformar a padaria incendiada e voltar a trabalhar...
Arnaldo sentiu-se um pouco mais aliviado, sabendo que mais pessoas estavam preocupadas com Tina e a família.
_ É nessas horas que a gente da roça vê que o nosso sindicato realmente tá do lado dos agricultores !
_ Nosso trabalho é esse, seu Arnaldo... E paralelo ao trabalho do sindicato, temos roça e família também. E sabemos muito bem como é quando uma "maré de azar"entra na vida de um dos nossos associados!
_ É... Quando a gente pensa que saiu da lama, às vezes chega um problema e derruba a gente de novo!
Arnaldo narrou o episódio do acidente de Miguel no Kung Fu.
_ Tenha fé, seu Arnaldo! Esse massagista é muito bom. Muitos dos nossos associados já se trataram com ele e voltaram a caminhar e trabalhar normalmente.
_ Fé é o que não me falta, Lizi... E o Miguel tem força de vontade pra ficar bom, e as gêmeas da Tina tão ajudando ele. E por falar em Miguel, tenho que ir buscar ele na casa da Tina, ou ele acaba querendo dormir lá também. Ele o Chico e as manas tão que nem irmãos, já!
_ Tá indo pra lá agora? Então leva uma cesta básica pra Tina. Não é muito, mas vai ajudar...
_ Levo sim... Sei que ela tá precisando, e não pode comprar...
Arnaldo deixou a cesta básica na casa de Tina. Depois, colocou cuidadosamente o filho no banco traseiro do carro, Arnaldo brincou:
_ Vou raptar o Miguel por um tempo. Amanhã ele vai de novo no"arrumador de ossos"!
Após mais quatro semanas e quatro sessões de massagem, Miguel já dava os primeiros passos, usando as muletas no consultório do massagista.
_ Sr Arnaldo... Sugiro encaminhar o Miguel pra fazer fisioterapia, pra começar a usar as muletas de maneira certa! Depois, ele recomeçar a caminhar devagarinho.
_ Já tenho um par de muletas... O Miguel tá ansioso pra começar a caminhar de novo, porque tá quase chegando o Natal.
Ao voltar daquela última sessão de massagem, Miguel sentiu-se mais confiante. Pegou as muletas e foi dando alguns passos.
_ Agora sim, pai... Olha! Agora sou o pirata Mig!
Arnaldo brincou:
_ Ainda bem que agora tu tá conseguindo sair do lugar, Miguel! Antes parecia uma galinha choca, só no ninho!
_ Evolução a jato, pai! De galinha choca a pirata sem mar... Tenho que procurar o mar...
_ Nada feito, marujo! Por enquanto fica dentro do barco! Amanhã de manhã vou te ajudar a ir caminhar um pouco com as muletas na grama. De tarde te deixo no "barco das manas"! Tenho umas coisinhas a resolver...
Miguel olhou desconfiado para o pai:
_ Mmmm... Coisinhas? Sei...
_ Realmente é segredo, dessa vez... Se eu te contar, tu conta pras manas e pro Chico, e todos os planos vão ser descobertos...
_ Planos? Que planos?
_ Tracei uns planos com algumas senhoras...
Miguel arregalou os olhos:
_ Tu, pai? Tu nunca te interessou por senhora nenhuma? Como é isso agora?
Arnaldo deu uma gargalhada:
_ Tu fica tão bonitinho quando fica curioso! Pois dessa vez eu não conto! Não até chegar pertinho do Natal!
A cabeça de Miguel procurou compreender o que o pai estaria escondendo, porém, desistiu quando o sono apertou-lhe os olhos. Sentiu-se flutuar sob o velho sinamomo onde sofrera a queda ao salvar o pai do suicídio... Em seu sonho, parecia que ali ainda se encontravam Irene e Mary... Porém, emaranhados de cipós haviam crescido ao redor de Irene, e Mary tentava soltar inutilmente a mão da mãe. Tentou gritar, mas o som de sua voz não saía... Tentou correr, mas sentiu que a dor no quadril o impedia de sair do lugar... Tentou então mexer os braços e sentiu que duas longas asas bateram em seu corpo... Um vulto branco surgiu por detrás dele, aproximando-se de Irene e Mary... Maravilhado, viu um anjo desatar os cipós que prendiam Mary a Irene... Tentou correr para abraçar a irmã, já livre, mas a dor não permitia que saísse do lugar... Apertou os olhos para procurar a irmã, mas ela sumira, envolta nas asas daquele anjo.
_ Maryyyy!!!
Maryyyy!!!

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora