102 - Pretinha e Cisco

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A casa de Edelvina ficou de pernas para o ar, após a faxina de Irene. A filha andava de um lado para o outro, à procura de objetos pessoais que Irene mudara de lugar ao "organizar a casa".
_ Eu não me acho dentro da minha própria casa! E pensar que ela quer voltar, e fazer faxina aqui de novo... Isso me assusta!
A moça parou de repente, com o dedo em riste, erguendo as sobrancelhas.
_ Já sei! Vou fazer um ritual um pouquinho diferente daqueles que costumamos fazer. Aí, quem sabe, os orixás se revoltem e ela desiste de vir fazer a faxina pra pagar o trabalho.
_ Até que a ideia não é má... Mas, eu nunca fiz um estrago nos meus rituais... Vai que...
Saltitante, Eliane sorria e gesticulava, imitando o jeito corcunda de Irene.
_ Vamo fazer só a metade do trabalho... Assim, a cura dela não vai acontecer... E... Ela vai pro beleléu! Simples assim... E ela vai ficar assim... Assim... E assim!
_ Então, o que nós tamo esperando? Tranquei a galinha na gaiola ontem à noite. Vai lá buscar ela, que preparo o resto!
_ Mas eu tô curiosa. O que tu vai fazer pro ritual não agradar os orixás?
_ Ainda não sei, mas eu vou achar um jeito desse ritual dar errado, e essa chaminé ambulante nunca mais querer fazer faxina pra mim!
Edelvina abriu a gaveta, pegou o azeite de dendê, milho e o cordão.
_ Já sei! Vou deixar de colocar milho e água pra penosa! Assim, o sacrifício vai morrer de fome e sede. Os orixás vão se revoltar e tirar a Irene do nosso caminho! Ninguém vai desconfiar que ela foi pro beleléu por um trabalho mal feito!
Eliane sorriu, maliciosa.
_ E, de quebra, a gente fica livre pra sempre daquele traste! Não suporto nem o cheiro dela... Parece até que tá apodrecendo viva...
Edelvina abriu a garrafa de azeite de dendê, fazendo uma careta.
_ Vai ver que tá podre mesmo... Não viu as feridas nas costas dela? Ela usa bastante roupa pra disfarçar, mas o cheiro passa... Vai lá, na gaiola grande do galpão, e pega a bichinha do sacrifício pra mim!
A moça saiu do recinto, enquanto Edelvina separava o cordão e o azeite de dendê para o ritual. Ao voltar, Eliane parecia estar travando uma verdadeira luta com a pobre galinha.
_ Ela me bicou! Essa cria do Dianho! Não vou segurar ela nem mais um minuto!
_ Dá ela aqui! Pode deixar ela comigo, que eu dou o banho nela!
Edelvina prendeu as pernas da pobre ave e começou a banhá-la, da cabeça aos pés, com o azeite de dendê, esfregando repetidas vezes para impregnar completamente o óleo nas penas.
_ Tem que tá tudinho as penas encharcadas pelo azeite. Olha... Assim!
A pobre galinha arregalava os olhos a cada toque das mães de Edelvina. Parecia que ela pressentia o seu cruel destino.
_ Prontinho! Agora, que ela tá prontinha, vamos fazer o resto na única encruzilhada que eu conheço, perto daquela casa onde tem os bonecos!
Eliane hesitou, tentando mudar o lugar do ritual, pois não queria revelar que foi ali que roubou a galinha.
_ Mas... Por que precisa ser ali? Não tem outro lugar?
_ É o lugar perfeito! Tem que ser ali!
Edelvina e a filha levaram a pobre galinha até o lugar escolhido. A pobre ave, presa com uma pata a uma pedra, através de um cordão, deixaram ali apenas um pote de azeite de dendê.
_ Nada de água nem de milho, guria. Se o sacrifício tiver sede, vai tomar azeite de dendê! É o que manda o ritual! Se ela tiver fome, que coma pedras! Assim, a Irene vai...
Edelvina girou por várias vezes, sacudindo ombros e quadris, proferindo alguns sons estranhos.
_ É pra agradar os orixás, filha! Eu tenho que fazer minha parte certinha, ou vai recair tudo em dobro em cima de mim.
Após concluir o ritual, as duas mulheres afastaram-se do local, deixando a pobre galinha ali, presa , sem compreender o que estava acontecendo.
_ Vamos a um merecido café, agora! Gastei toda minha energia com esse ritual!
Não muito longe dali, Irene sentiu um tremor percorrer o corpo, sacudiu os ombros e desmaiou. Macega, que a tudo assistia, prensou ser uma brincadeira da mulher.
_ Tu tá achando que eu vou acreditar que tu tá desmaiada? Me poupe! Quando tu terminar o teu show, me avisa, tá?
Na encruzilhada, instintivamente, Pretinha parecia despertar de um transe. Tentou sacudir as penas grudentas e começou a bicar freneticamente o cordão que prendia sua pata, até rompê-lo. Olhou ao redor... Ela conhecia bem aquele local, pois era próximo à casa de Tina, onde costumava ciscar para caçar minhocas e insetos.
_ Chico! Eu tenho a impressão de que ouvi a Pretinha...
_ Tu tá é ouvindo coisas, mana!Ela sumiu faz mais de uma semana! Algum gato-do-mato deve ter levado ela... Tem muito bicho do mato por aí, comendo galinhas!
_ Ainda bem que botamos os ovos que ela tava chocando na chocadeira, e conseguimos salvar ao menos um... O Cisco vai crescer e vai ficar bem parecido com ela, eu acho...
_ Mas... O Cisco é amarelinho... Será que as penas dele vão mudar de cor? A Pretinha não tem nenhuma pena amarela!
_ Dá pra ver que tu é da cidade, Chico! Os pintinhos mudam a cor das penas quando crescem.
Francisco tocou no ombro de Lenir, ergueu as sobrancelhas, em sinal de silêncio.
_ Psiiiiu... Acho que eu também tô ouvindo coisas, mana... Deve ser muita saudade da Pretinha... Parece mesmo o cacarejar dela!
Lenir tirou Cisco de cima do ombro, desenrolando um fio de cabelo que se enroscara no bico do pequeno pintinho, que piava a cada toque.
_ Não precisa ter medo não, Cisquinho... Não quero te machucar! Só quero desenrolar o cabelo que tá enroscado no teu bico!
Naquele momento, Lenir foi interrompida por um cacarejar bastante familiar. Seus olhos encontraram no chão, sem acreditar, a galinha que desaparecera .
_ Olha, Chico! A mamãe do Cisco voltou! Pretinha!!!
A alegria transparecia nos olhos e na voz dos jovens. A pobre ave, tentando andar, sentiu as pernas fracas e parou. Parecia pedir socorro.
_ Me ajuda aqui, Chico! Pega o Cisco que eu tenho que dar um banho na Pretinha! Acho que ela caiu numa caixa de gordura! Tá que não consegue caminhar! Coitada!
Lenir colocou detergente e água morna em uma bacia, mergulhando Pretinha e esfregando repetidas vezes as partes mais impregnadas de azeite de dendê.
_ Coitada... Bota o Cisquinho na chocadeira e traz mais água morna e detergente. Temos que trocar essa água, que tá pastosa, de tanta gordura!
Francisco esfregou o nariz.
_Que cheiro ruim, esse! Onde será que ela tava? Faz tempo que ela sumiu!
_ Isso não importa, Chico! O que nós temos que fazer agora é salvar a coitadinha! Troca essa água e coloca bastante detergente na bacia! Assim, ela fica livre dessa gosma que tá matando ela!
Após uma hora e mais duas trocas de água morna com detergente, as penas de Pretinha finalmente ficaram livres do azeite de dendê.
_ Pronto! Agora segura ela, que vou pegar o secador de cabelos, secar ela rapidinho, porque tá quase na hora de buscar as crianças na escola.
Após secar totalmente as penas da pobre ave, Lenir colocou-a cuidadosamente no interior de uma caixa de papelão com palhas secas, sob a mesa da cozinha.
_ Pronto, Pretinha! Aqui tu vai ficar quentinha e protegida, até a gente voltar com as crianças. Depois, vamos te apresentar teu filho Cisco!
Na saída da escola, Lenir olhou com cumplicidade para Francisco, porém, deixou escapar para os dois pequenos:
_ Temos uma surpresa pra vocês dois! Tá lá em casa...
Os olhos de Valéria brilharam de repente.
_ A mamãe voltou pra casa? Ieeeeebbbaaaa!!!
Tristemente, a moça inclinou-se diante da menina.
_ Não, meu amor. Eu também gostaria que tua mamãe tivesse voltado. Mas, infelizmente, não é isso... Teu papai telefonou pra gente ontem, e disse que tua mamãe tá muito melhor, e que só precisa fazer mais um procedimento, aí ela volta pra casa.
_ Proce... O quê? O que é isso, mana?
_ É uma coisa que só os médicos podem fazer... Mas logo tua mamãe vai tá boa, pra voltar pra casa.
Claudino abriu um sorriso, saltitando ao redor de Valéria, repetindo:
_ Então... Foi a minha mamãe que voltou! Eu empresto a minha mamãe pra ti, Valéria... Empresto, sim... Foi ela que voltou! Foi, né?
Com os olhos marejados, após um breve silêncio, Francisco respondeu:
_ Infelizmente, não... A Lenice telefonou hoje de manhã, dizendo que a tia Tina continua em coma.
Os olhos arregalados de Claudino expressaram incompreensão. Querendo entender do assunto, com as mãozinhas na cintura, não segurou as palavras:
_ Coma? Não é "cama", Chico? No hospital, as pessoas não ficam na coma. Ficam na cama mesmo, pra ficar boas do dodói! Chicoooo!
Lenir olhou com tristeza para o irmãozinho., explicando:
_ Meu amor... A nossa mamãe ainda não acordou depois de ser operada. É isso que o Chico quer dizer.
As duas crianças entreolharam-se.
_ Então, se não é nenhuma das nossas mamães, o que é a surpresa?
Francisco sorriu, piscando.
_ Mas bahhhh!!! Mas se a gente for contar, não é mais surpresa!
Claudino fez beicinho, chutando uma pedra.
_ Tá bom... Eu vou ligeiro, pra chegar antes de todo mundo em casa! Vem, Valéria!
As duas crianças, de mãozinhas dadas, desataram na corrida, na direção da casa de Tina. Abriram a porta e seus olhos percorreram a cozinha, até encontrar o olhar tranquilo de Pretinha, acomodada sobre as palhas quentinhas.
_ A mamãe do Cisco! Ela voltou! Ieeeeebbbaaaa! Vamo botá o Cisco junto com ela!
Lenir, diante da enforia das crianças, interrompeu:
_ Calma, seus apressadinhos! Ela nem sabe que o Cisco é filho dela. Vamos devagar. O Chico vai pegar o Cisco na chocadeira, aí a gente vê o que acontece.
Infelizmente, Pretinha arrepiou as penas e desferiu uma bicada nas asas do pintinho.
_ Foi o que pensei. Ela não viu ele nascer, aí não reconhece o Cisco como filhote dela. É melhor a gente cuidar dele enquanto é pequenininho e indefeso.
Claudino não compreendeu e resmungou:
_ Mas... Ele é filho da Pretinha! Nenhuma mamãe pode machucar seu filho! Não tá certo...
_ Eu sei, mano. Mas ela não sabe que ele é filho dela. Hoje vamos deixar o Cisco na chocadeira e amanhã vamos pedir pro Arnaldo ajudar a gente fazer uma gaiola com "dois quartos"... Um pra Pretinha e um pro Cisco, pra eles ficar pertinho um do outro sem conseguir se bicar, até se conhecer... Acho que vai dar certo!



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