77 - Uma padaria, uma rádio e uma ONG

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O chefe da equipe de construção anunciou:
_Dona Tina... Pra segurança de todos, derrubamos a parte incendiada e vamos construir tudo novo!
Tina observou o alicerce da padaria nova.
_ Mas não tá muito grande essa reforma? Vão precisar de muito material...
Arnaldo pousou a mão no ombro de Tina.
_ Eu tenho mais uma promessa a cumprir com o Claudio. Por isso que o alicerce ficou um pouco maior.
O olhar de Tina correu pela extensão do alicerce.
_ Olha... Eu não entendo nada de construção, mas pelo que consigo ver, foram feitas três repartições... Assim, daria pra fazer três padarias no alicerce erguido aqui.
Arnaldo sorriu.
_ Vai ser quase isso... É uma surpresa... A promessa do Claudio vai ser cumprida! E garantimos que Deus vai abençoar essa promessa!
Tina olhou o céu.
_ Que eu lembre, o Claudio tinha muitos planos de ajudar as pessoas necessitadas... Mas... Ali, na lateral, tem um alicerce de corredor... Eu não compreendo...
_ Nem precisa compreender agora... Quando estiver pronto, vai entender...
_ Não quero ser curiosa... Mas eu gostaria de saber do que se trata...
Arnaldo sorriu.
_ Tá bom, senhora "Curiosidade em Pessoa"! Vai ser uma rampa de acesso pra deficientes físicos ou pessoas idosas...
_ Poxa! Pensaram em tudo!
_ Exatamente... Agora tu precisa cuidar bem dos teus filhos e de ti. Foi a promessa que tu fez ao Claudio! Deixa que a gente vai cumprir a promessa do Claudio! Amanhã, o pessoal já vai erguer as paredes... Assim, quando que tu terminar tuas radioterapias e estiver bem, já pode aceitar encomendas.
Tina baixou o olhar, tristemente.
_Se eu sobreviver... Tá tão difícil...
_ Não diz isso! Eu sei que tu vai viver, e muito...
Tina ergueu timidamente o olhar.
_ E... Como sabe?
_Um passarinho colorido me contou...
_ Não entendi...
_ Olha... Se eu falar, tu vai ficar triste...
Tina hesitou, tristemente.
_ Eu tô triste de qualquer forma, Arnaldo... O que tu vai me dizer não vai mudar nada...
_ E por que tu tá triste?
Tina engoliu seco pra responder:
_ E tu acha que eu não tenho motivo? Perdi o Claudio, a padaria pegou fogo e descobri um câncer que pode me matar a qualquer momento...
Arnaldo pousou a mão no ombro dela.
_ Amiga... Confia em Deus... É só o que eu tenho pra te dizer!
_ É isso que eu tô fazendo, Arnaldo... Mas tá difícil... Só de pensar que talvez meus filhos fiquem sozinhos...
Arnaldo olhou fundo nos olhos de Tina.
_Amiga! Aprenda uma coisa... De alguma forma, todos nos sentiremos sozinhos um dia... Mas sabemos muito bem que o bondoso Deus não abandona ninguém, nunca... Vai, amiga! Confia em Deus, ergue a cabeça e vai... Faz a tua parte!
Tina ergueu os olhos, cheios de lágrimas.
_ Se acontecer alguma coisa comigo, promete cuidar dos meus filhos por mim?
Arnaldo apontou o céu e sorriu.
_ Já prometi isso pro Claudio! E eu tô tentando cumprir... Essa padaria nova vai te ajudar a cuidar dos teus filhos e transformar eles em gente de bem.
Tina olhou para o alicerce novamente.
_ Mas... É muito grande...
_ Temos uma promessa do Claudio a cumprir, nesse prédio.
_ Temos? Quem?
_ Eu e Claudio... Prometemos ao Juvenal, que se ele ficasse bom e conseguisse andar com a prótese, a gente iria montar uma rádio pra ele.
Tina arregalou os olhos.
_Uma rádio? Aqui?
_ E por que não? Com a ascensão do turismo rural, podemos muito bem montar uma rádio aqui. Até a geografia facilita. Moramos numa localização de muitos morros! E tem mais...
Tina olhou curiosamente para o alicerce.
_ Mais?
_ Lembra quando o Miguel perdeu o movimento das pernas e tu ajudou ele? E depois, quando ele sofreu o acidente no Kung Fu? Ele precisou se recuperar duas vezes. E pra isso precisou de cadeira de rodas... De muletas...
_ Sim... Mas não entendi...
_ Pois interligado à rádio, faremos um ponto de referência para ajudar pessoas com deficiência. Sem fins lucrativos.
_ Desculpa a minha ignorância... Mas eu ainda não entendi...
_ Eu explico... Quando o Claudio levava o Juvenal pra Canoas, a gente encontrou vários lugares onde alugam cadeiras de rodas, muletas e camas hospitalares... O sonho do Claudio era abrir uma ONG, onde pessoas com deficiência ou com limitações que não tem como conseguir comprar ou alugar esses equipamentos.
_ É, mas... O Claudio não está mais aqui pra realizar esse sonho...
_ É por isso que o pessoal das igrejas se reuniu... Vai ser construído um prédio com três repartições... A padaria, claro, precisa seguir as normas de segurança previstas em lei.
_Eu sei... Mas vai custar muito caro...
_ Todo esse investimento voltará à população, pois muitas pessoas idosas daqui da localidade já não saem de casa pra nada por não conseguir caminhar. Se a ONG ajudar essas pessoas da comunidade, já temos o nosso objetivo alcançado! É pra isso que vamos construir a rampa de acesso pra deficientes físicos e idosos.
_ Tá... E a rádio?
_ A rádio precisa de uma licença pra funcionar. Mas o pessoal daqui já tá empenhado em encaminhar tudo.
Tina esboçou um sorriso, pela primeira vez, em semanas. Arnaldo brincou:
_ Como diriam as crianças... Iebbbba!
_ Ué...
_ Faz semanas que espero que tu dê um sorriso... E agora, tenho o prazer de te ver mais aliviada. Missão cumprida!
_ Eu não sabia que me fazer sorrir era uma missão tua... Depois que o Claudio partiu, ninguém tem o direito de achar que pode me fazer rir por aí!
Arnaldo ergueu os braços.
_ Opa, opa, opa! Deixa as farpas do ouriço bem quietinhas! Eu não quis ofender...
_ Desculpa, Arnaldo... Não ofendeu... Só fiquei triste quando lembrei do Claudio... Eu não consigo evitar... Faz parte de mim "levantar as farpas do ouriço", como tu diz...
_ E eu respeito isso, Tina... Eu também fico triste quando lembro dele, porque a gente era parceiro em tudo... Mas prometi pra ele e pra Deus que eu não deixaria tu e teus filhos desamparados... E vou cumprir, se o bondoso Deus assim o permitir!

*

Na Itália, Mary não parava de olhar pela janela.
_ Dona Miloca... Quando acha que vai patar de chover? Já tá chovendo faz dias, e hoje ainda desceu mais um baita temporal!
A velha senhora respondeu mansamente:
_ Só vai parar de chover quando o bondoso Deus quiser, minha menina!
Miloca e Albertina observavam Mary torcendo as mãos trêmulas, nervosa. Seus olhos procuraram esconder o medo.
_ O que será que essa menina tem?
Conversavam em tom baixo, para evitar que Mary escutasse.
_ Ela deve ter algum trauma, pra ter tanto medo de chuva...
_ Pois é... A gente não conhece a história dela. Vou tentar conversar com ela, pra ver se podemos ajudar ela.
Lentamente, Albertina puxou conversa:
_Pode se acalmar agora, menina... A chuva não vai entrar aqui na casa.
_ Como sabe que eu tô nervosa por causa da chuva?
_ Filha... Eu não nasci ontem... E vi tua reação quando viu as trovoadas e a chuva forte...
Mary hesitou antes de falar. Duas grossas lágrimas desceram pelo seu rosto.
_ Mas não é a chuva que me assusta, Albertina... É que ela me lembra...
Albertina sabia que algo afligia a menina. Pousou suavemente a mão em seu ombro.
_ Pode falar, amada. Desabafe...
_ É que... É uma história bem comprida... E triste... E a senhora não vai querer ouvir uma história triste...
_ As histórias tristes que vivemos são parecidas com sacos de pedras, que carregamos em nossos corações. Não vou forçar, mas se um dia tu quiser desabafar... Fale quando tiver vontade...
Mary ergueu-se, enxugou os olhos com as costas das mãos.
_ Não, Albertina... Tá na hora de me livrar desse "saco de pedras"! A senhora tem tempo pra me escutar?
_ Tenho sim, minha pequena... Dona Francesca tá dormindo agora.
_ Mary começou, com a voz trêmula.
_ Eu tinha uma família, sabia? Minha mãe... Ela tinha épocas que ficava brigando com todos... Fumava muito... Um dia brigou com meu pai e pra não fazer as pazes com ele levou a mim e meu irmão pra dormir no mato, por semanas... Era frio... Chovia... Não tínhamos comida...
Mary narrou tudo à velha enfermeira, que escutou o relato com uma mão no peito e os olhos arregalados.
_ Então... É por isso que tem medo da chuva...
_ Sim... O "saco de pedras" começa a pesar quando chove muito... E eu fico com medo... Parece até que a minha mãe tá voltando com a chuva, pra me levar de volta pro mato... Toda vez que chove, parece que eu ainda tô lá, embaixo daquela barraca de lençol, com a água da chuva batendo no meu rosto... Me encolhendo de frio...

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora