60 - A tristeza de Arnaldo

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Após fazer o exame de mamografia, Tina ficou pensativa. Teresinha preocupou-se:
_ Eu tô te achando muito quieta, amada. É por causa do exame? Confia em Deus, Tina. Nada acontece na nossa vida se não estiver traçado por Deus.
_ Tô preocupada, sim... Se der positivo, como vou levar essa gravidez adiante com segurança para o nenê? Ele é a única coisa que me resta do Claudio! Caso isso aconteça, vou optar por não fazer o tratamento.
_ Eu compreendo perfeitamente, Tina. Seria muito difícil fazer um tratamento grávida. Sei que tive que parar de amamentar o Alessandro quando aquela aranha me picou.
_ O exame vai ficar pronto na próxima segunda-feira. Vou pedir para o Alceu pegar por mim. Quando eu fui fazer a mamografia, ele e a Débora estavam lá ne Centro de Diagnósticos fazendo uma ecografia dos gêmeos. Precisam fazer um acompanhamento intensivo da gravidez dela, pois é de risco.
_ Mas... E a tua gravidez... Não é de risco? Se tu tem 44 anos...
Tina sorriu:
_ É possível que eu também tenha que fazer um acompanhamento mais de perto, pela minha idade, apesar de que me sinto bem em relação a isso. A única coisa que me preocupa é essa alteração nas mamas. Mas eu confio em Deus. Deus e meus filhos em primeiro lugar!
_ Mas precisa se cuidar também. Teus filhos precisam de ti.
_ Eu sei disso. Mas, se eu tiver que escolher entre colocar a vida do meu filho em risco ou a minha, colocarei a minha. Nesse caso, essa será minha escolha!
_Mas vamos pensar positivo. Talvez seja só uma alteraçãozinha da gravidez.
_ O problema é que eu já tinha notado que alguma coisa não tava bem antes do Claudio sofrer o acidente. Mas pensei que eu estivesse enganada, e que iria passar...
O sábado encontrou as crianças agitadas. Arnaldo e Juvenal levaramm as crianças ao CTG, para mais uma apresentação. Francisco ostentava todo orgulhoso a pilcha que Claudio lhe dera.
_ As crianças estão lindas, Juvenal! Nunca pensei que o Miguel fosse gostar de dançar.
_ As crianças crescem, Arnaldo... E mudam.
_ Agora o Miguel e o Francisco cismaram que querem entrar num curso de artes marciais... Ele falou num tal de Kung Fu... Tenho medo que eles vão brigar na rua...
_ Olha, Arnaldo. O Francisco me falou que querem ficar mais fortes pra defender a melhor amiga dele. E se ele falou isso é porque vai, porque ele não fala por falar.
_ Defender a melhor amiga de quê? De quem? E quem é essa "melhor amiga"?
_ Não sei. Só sei que é um pouquinho mais nova que o Francisco. Ele falou que ela é lá de Caxias, e foi machucada por um rapaz maior.
Arnaldo olhou para Juvenal incrédulo.
_ Mais nova que o Francisco? E foi machucada por um rapaz mais velho? Isso tá me parecendo um caso de abuso...
_ Prá tu vê, meu amigo. Até eu bateria nesse rapaz, se eu soubesse que ele abusou de uma criança.
_ Então, vamos colocar os guri no Kung Fu? Dizem que é uma luta de alta defesa, e traz disciplina pro lutador. Assim como o Judô.
_ É, meu irmão... Temos que colocar eles onde vão aprender disciplina e defesa. Porque se o Francisco encontrar o tal rapaz, ele tá disposto a defender essa amiga dele, que deve ser muito especial pra ele.
_ Verdade. Ela foi a única que aceitava ele com as limitações que tinha. Era parceira de trabalho de escola e amiga de verdade.
Arnaldo olhou com tristeza para Juvenal.
_ Se essa amiga do Francisco era um pouco mais nova que o Francisco, na certa tinha a idade da minha filhinha. Se um monstro desses abusaria da minha filha, eu também não ia me segurar, não! Acho que ia partir o cara ao meio!
_ Deus há de proteger essa menina desse monstro.
Arnaldo nem de longe imaginava que a filha dele e a melhor amiga do Francisco eram a mesma menina.
_Agora até eu já tô com raiva dele, mesmo sem saber quem é essa amiga do Francisco. Semana que vem vou ver esse curso que eles querem fazer, e vou autorizar o Miguel a treinar. Vai ser bom pro corpo e a mente dele. Quem sabe, assim ele ganha uns músculos e pára de se achar um graveto!
_Verdade. E com isso eles vão manter a cabeça ocupada. Pra adolescente, uma cabeça vazia é oficina do Dianho!
_ Olha! As crianças vão dançar agora! Pena que o Claudio não tá aqui, pra ver as meninas...
_ Ele tá aqui, meu amigo! Com certeza ele tá vendo as filhas dele!
Arnaldo e Juvenal acompanharam com os olhos cada passo de dança das crianças. O orgulho de Juvenal não cabia no peito.
_ Mas que orgulho! Olha só o Francisco, depois que percebeu que dançar não é um bicho de sete cabeças! Todo orgulhoso, de peito estufado... Parece até um sabiá!
_ Essas crianças são a própria primavera, meu irmão! Pena que nas grandes cidades a infância delas é roubada pela violência ... E às vezes, pelos abusos...
Arnaldo acompanhou as crianças com o olhar, enquanto dançavam. Seu olhar triste chamou a atenção de Juvenal.
_ Alguma coisa errada, Arnaldo?
_ Eu tava pensando naquela menina... A amiguinha do Francisco... Deu uma dor aqui no peito, porque ela tem a idade da minha filha Mary... Eu me coloquei no lugar do pai dela, e fiquei horrorizado.
A expressão de Juvenal naquele momento era de susto.
_ Como... Como tu falou que se chama tua filha?
_ Mary.
_ Estranho...
_ O que é estranho?
_ O nome da melhor amiga do Francisco é Mary...
Arnaldo empalideceu diante da revelação de Juvenal.
_ Será que é a... Minha Mary?
_ Não sei... Mas que é muita coincidência... Ahh, isso é!
_ Me autoriza a falar com o Francisco? Eu gostaria de saber se essa menina é ou não minha filha!
_ Claro que autorizo, meu amigo!
Naquele momento, as crianças voltaram à presença dos pais. Arnaldo aproveitou a ocasião para aproximar-se de Francisco:
_ Vamos até uma sorveteria aqui perto? Hoje, o sorvete é por minha conta!
_Iebbbba!!!
A fisionomia preocupada de Arnaldo denunciava que algo estava errado.
_ Tá triste,pai?
_ Não, Miguel. Só preocupado. Eu soube da Mary.... Bom... Não sei se é ela ou não.
_ Ahh pai! Eu sei onde ela tá!Ela é a melhor amiga do Chico!
_ Como... Como sabe?
_ Ahhh paí... Esquece que eu e o Chico tamo sempre juntos?
Arnaldo olhou para Francisco:
_ É verdade mesmo que a tua melhor amiga é a irmãzinha do Miguel?
_ Sim, tio Arnaldo! Ela tá na Itália agora, mas prometeu voltar... E não vai me esquecer!
Arnaldo sentiu um misto de felicidade, por ter conseguido saber do destino da filha, e de horror, por saber que ela fora a vítima de abuso à qual Francisco se referira.
_ Francisco... Ela é minha filha...
_ Eu sei, tio. O Mig falou pra mim.
_ E o que mais vocês conversaram sobre Mary? Conte- me tudo!
Francisco relatou tudo sobre as tranças cortadas, as mãos queimadas... Enquanto falava, a expressão de Arnaldo ia se transformando...
_ Ficou brabo, tio?
_ Não, meu guri... Triste, por saber de tudo e não tá lá pra proteger minha filhinha daquele monstro!


*

Na Itália, Albertina encontrou Mary no quarto, em frente ao espelho, escovando os cabelos, agora já crescidos. Notou que a menina passava a mão em cada mecha do cabelo, enquanto seus olhos estavam banhados de lágrimas.
_ O que aconteceu, pequena Mary? Posso ajudar?
Aquele jeito doce de aproximação de Albertina a fez sentir segurança para falar, entre soluços.
_ Meu cabelo... Já tá ficando comprido de novo... O Léo cortou, faz tanto tempo...
Um soluço cortou-lhe a frase. Albertina abraçou Mary.
_ Venha, amada. Vamos conversar, na companhia de uma deliciosa xícara de chá. Aí você me conta o que pesa no seu coração.
Mary tentou sair pela tangente, porém, não funcionou.
_ Não posso, Albertina. Tenho que estudar. Eu tô fazendo uma pesquisa sobre células tronco...
_ Células tronco?
_ É. Eu soube pelo jornal que em Israel as pesquisas nessa área já tão bem adiantadas.
_ Sim. Eu soube.
_ Quero descobrir um jeito pra conseguir ajudar a senhora Francesca a caminhar um dia!
Mary desviou o assunto porque esperava que Albertina a deixasse sozinha, pois preferiu não expor as atrocidades que sofrera quando sofria os abusos por parte de Léo. Porém, a velha senhora sentiu que aquela menina estava precisando conversar. E conversar muito além de assuntos corriqueiros...
_ Amada... Se não tirar as mágoas que estão trancadas no teu coração, não vai conseguir estudar nada, e não vai conseguir ajudar ninguém. Nem a você mesma!
Diante da maneira doce de Albertina conversar, Mary acalmou-se.
_ Tá tudo bem, dona Albertina... Eu só tava...
_Angela virá daqui a pouco, fazer a fisioterapia de dona Francesca. Vem comigo?
Mary ficou pensativa por alguns momentos.
_ Vou sim, senhora. Vou só guardar esses livros de pesquisa na biblioteca.
_ Eu espero você.
_Eu ainda vou descobrir um jeito de curar a dona Francesca e tirar ela daquela cadeira de rodas. Vou andar de braço dado com ela pelo parque! Ela merece, por me trazer pra cá, bem longe do...
Mary parou de repente, sentindo um arrepio de horror percorrer seu corpo. Deu-se conta que havia falado um pouco além do planejado.
_ Pode falar, Mary... Faz bem se abrir...
_ Eu tenho que aprender a calar minha boca, como minha mãe falava... Ela me batia na boca quando eu falava o que ela não queria ouvir...
Albertina abraçou a menina.
_ Pra gente você pode falar o que sente, minha menina! Ninguém vai machucar você.
Mary olhou surpresa para a enfermeira.
_ Como a senhora sabe... Que me machucaram?
_ O coração nos diz coisas que acontecem. Não é preciso falar com palavras...
Após sair da biblioteca, Mary foi até o quarto de Francesca, onde a fisioterapeuta Angela já tinha dado início ao trabalho. Ela entrou estrategicamente, conversando sobre outro assunto. Albertina percebeu logo que Mary se fechara novamente ao assunto que iriam conversar.
_ Boa tarde, dona Angela. Eu tava pesquisando umas coisinhas na biblioteca que, no futuro, vão ajudar a dona Francesca a caminhar!
_ É mesmo, menina?
_Já achei muitas reportagens a respeito de pesquisas sobre tratamentos com celulas tronco, pra fazer pessoas acidentadas recuperar os comandos dos movimentos.
Albertina percebeu que ainda não era o momento mais propício para abordar o assunto que tanto afligia Mary. Resolveu adiar a conversa que teria com a menina, entrando na conversa sobre a pesquisa.
_ Eu não duvido nada que você vá descobrir, no futuro, uma maneira de fazer a nossa Francesca andar de novo.
_ Assim que eu terminar o ensino médio, minha universidade vai ser na área da reabilitação psicomotora das pessoas acidentadas, como a dona Francesca.
_ Mas tem muito tempo ainda até lá, menina. O que vai fazer enquanto não estiver na universidade?
_ Posso dizer qual é o meu grande sonho, desde pequenininha?
Albertina olhou-a com curiosidade.
_ Mmmmm. Acredito que seja... Não. Não vou arriscar.
_ Um dia, bem lá na frente, quero aprender a pilotar aviões.
Angela fez um sinal de silêncio para Mary, pois sabia que Pedrinho e o pai haviam morrido através de um desastre de avião. Mas Mary não tinha segredos dos seus planos com nenhuma das três, tampouco travas na língua.
_ Quero pilotar aviões pra mostrar pra dona Francesca que não foi culpa de ninguém que Pedrinho e o pai dele partiram.
_ Como assim?
_ Era plano de Deus, sim. Me trazer pro mundo justamente no dia que levou o Pedrinho. E depois, colocar vocês no meu caminho pra me salvar daquele monstro do Léo... Porque ele ia acabar me achando na casa do seu Vincenzo.
Ao ver as expressões de incredulidade das três senhoras à sua frente, Mary notou que, sem querer,abrira seu coração. Albertina olhou-a com carinho.
_ Então, era essa conversa que eu estava mencionando, amada. Eu senti que você tinha alguma coisa importante pra jogar pra fora do coração! E nós três estamos aqui pra te ajudar. Como você mesma disse: Deus nos colocou no teu caminho pra te ajudar!



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