Uma semana fora... O retorno de Irene da viagem à Santa Catarina marcou mais um pouco a vida de Miguel e Mary. Só falava de um primo distante que se formara em direito...
_ O Carlito agora é doutor... Ele me deu uns ótimos conselhos...
Arnaldo escutou os relatos da esposa, em silêncio... Ainda sentia mágoas pelo fato das crianças passarem uma semana na casa de dona Olívia, mas resolveu não argumentar, para não criar motivos para discutir em frente às crianças.. Agora Miguel e Mary estavam de volta também, e era isso que importava.
_ O Carlito é um homem muito importante agora. Já está"pegando uns casos"e ganhando um dinheirão.
Irene estava deslumbrada com o fato do primo distante ser um doutor.
_Agora tenho que chamar ele de Dr Carlito. Antes eu chamava ele de"Carlucho"...
Arnaldo já estava se sentindo desconfortável pelo fato da esposa só falar no tal "Dr Carlito", que Arnaldo sequer conhecia. Mas mais uma vez calou-se...
_ Não vai falar nada? Tô aqui, falando a horas do Dr Carlito e tu nem responde!
_ Não tenho nada pra falar, só isso...
Irene acendeu um cigarro e soltou uma densa baforada no rosto de Arnaldo, como se quisesse provocar...
_ Sabe o que ele disse?
Arnaldo dirigiu-lhe um olhar interrogativo, porém silencioso, pois pressentia a bomba que estava prestes a explodir em sua frente... Olhou na direção das crianças e respirou fundo, aliviado... Miguel e Mary estavam enxugando a louça da janta, e o barulho que as duas crianças faziam não permitia-lhes de escutar nada do que ele ou Irene falariam.
_O Dr Carlito falou que, se eu não estiver feliz contigo, posso "me separar"...
Arnaldo esperava ouvir qualquer coisa, menos que Irene pediria separação... Sentiu o chão faltar sob seus pés... Teve que se apoiar em uma cadeira para não cair, tamanha foi a surpresa...Irene não parava de falar...
_E ele falou que faz meu processo de divórcio sem cobrar nada.
Arnaldo retirou-se, com a desculpa de tirar pasto, mas a vontade era de abrir uma fenda no chão, entrar nela, fechar os olhos, adormecer, para nunca mais acordar... As lágrimas escorriam pelo rosto incrédulo de Arnaldo. Além de separar as crianças dele, agora Irene também se separaria... Sentia isso...
_ Migueeeeel!!! Onde tu tá? Preciso que coloque o remedinho nas minhas pintas das costas. Essas pintas me incomodam cada vez mais. Se eu não ficar bonita, o que vai ser de mim?
Miguel veio e atendeu o pedido da mãe.
_Tem uma pinta aqui que tá criando uma casca.
_ Não pedi pra tu apontar pras pintas. Dá azar...
Mais um cigarro... Longas tragadas de fumaça... Irene nem ligou quando Miguel engasgou ao respirar a fumaça.
_Talvez nós vamos morar bem longe daqui, lá em Santa Catarina.
_ Porque, mãe? E onde é isso? É perto da vovó?
Miguel, em sua inocência, não sabia o que estava prestes a acontecer. Saiu correndo, em direção onde Mary fazia um desenho em um papel velho que encontrara.
_ Mana, mannnnnna!!! A mãe falou que nós vamos morar perto da vovó, lá em Santa Catarina.
_Onde?
_Eu acho que é perto da vovó.
As crianças não tinham noção de onde era"Santa Catarina" , pois tinham o hábito de visitar os avós com frequência.
Arnaldo tentou não pensar no assunto. Tinham construído recentemente a casa, e o empréstimo do banco estava ali, a ser pago aos poucos... As colheitas e vendas dos produtos da lavoura tinham que fluir, para quitar as pendências das obras. A preocupação mais acirrada era o bem estar dos filhos, porém, ele sabia que esse bem estar dependia do equilíbrio emocional e financeiro da família.
_ Minha família é minha base e responsabilidade. Se eu fraquejar, onde meus filhos vão se espelhar? O pau da barraca precisa ficar em pé!
O tempo foi parceiro de Arnaldo. A produção da lavoura rendeu uma boa quantia e ele conseguiu, na colheita daquele ano, pagar parte da dívida para com o banco. Dois meses depois, já recomeçou o plantio da nova safra. Na lavoura, ao menos, Arnaldo sentia-se tranquilo e confiante. Irene, em contrapartida, mostrava-se cada vez mais estranha, e possessiva em relação aos filhos.
_Quero me separar de ti, Arnaldo. O Carlito vai fazer nosso divórcio!
_Deixa de ser boba, Irene! Logo agora, que concluímos a casa nova? Temos uma casa como a gente sempre sonhou. Grande... Espaçosa... Ventilada... Dá até para acomodar duas famílias...
Irene arregalou os olhos e soltou uma densa baforada de fumaça do cigarro que estava entre seus dedos... Parecia pensativa...
_ Então, se tu diz que a casa dá para duas famílias vamos dividir ela. Assim, não preciso mais deixar tu me tocar.
Arnaldo encarou Irene com o semblante triste...
_ Bahhhh! Isso não faz diferença!!! Faz meio ano que não fazemos amor... E estou com tanta saudade de você nos meus braços... Mas eu respeito tua vontade...
_ Nunca mais vai me tocar! Eu não te amo! E vamos nos separar sim. E vou levar Miguel e Mary pra Santa Catarina. E vou sair daqui, pra tu nunca mais colocar as mãos em mim!
_ Mas as crianças ficam!
_ É o que veremos!!!
Irene esperou a volta das crianças da escola. Arrumou uma caixa onde colocou algumas roupas e mantimentos. Quando Miguel e Mary chegaram foi logo avisando:
_ Vamos, crianças. Vamos sair dessa casa...
_Ebbba!!! Vamos na casa da vovó!!!
_Não! Peguem as coisas da escola também!
Irene pegou o que tinha arrumado na caixa, pegou a mãozinha de Mary e conduzia até uma clareira nos fundos do potreiro... Pegou um lençol e improvisou uma barraca...
_Agora o véio não vai mais me tocar, nem a vocês. Vamos ficar aqui até sair o divórcio! E depois vamos morar com o Carlito... Ele vai ser o novo papai de vocês!
As crianças estavam pasmas, diante da ideia de passarem uma noite dentro de uma barraca de lençol, bem no meio do mato... Mary choramingou...
_ Mas, e o pai?
_Eu proíbo vocês de ir até onde o véio tá! Ele ficou na casa... Daqui vocês vão até a escola, e de lá, voltam pra cá! É uma ordem!!!
O olhar imperativo de Irene deixava claro que deviam obedecer...
_ E vocês vão ter um maninho ou uma maninha!
Mary e Miguel se entreolharam com alegria, pois sempre pediam que tivessem um bebê na família.
_ O pai já sabe que vai ser pai de novo, mãe?
Miguel, na sua inocência, não calculava o que estava por vir, quando fez a pergunta...
_ Não! O nenê é do Carlito! Por isso vamos morar com ele! E vocês estão proibidos de falar do nenê para o véio!
Naquela noite Mary e Miguel nada dormiram, pois caiu uma leve chuva que deixou-os molhados...
_ Tô com frio, mãe!
_ Aguenta, Mary! Teu pai sempre te mimou!
_ O paizinho nunca me levaria pra dormir no mato... Na chuva... No frio...
_ Te proíbo de falar no véio!!! E vê se cala a boca e dorme.
Irene acendeu um cigarro, mantendo a fisionomia hostil para as crianças.
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INFÂNCIA ROUBADA
RandomHistória baseada em fatos reais. ALERTA DE GATILHOS: contém violência, abusos, suicídio e morte. Não indicado para menores de 18 (dezoito) anos e/ou pessoas sensíveis aos assuntos abordados. Miguel e Mary são duas crianças, irmãos... Após a tenta...