44 - "Delícias da Tina"

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Os colegas de cela de Valderez estavam em polvorosa.
_ Olha o boneco aí! Dorme feito criança.
_É por conta desse cara aí que eu tô aqui!
_ Temo que aproveitar que o boneco tá dormindo pra "apagar"ele...
_ Não. Não. Primeiro temo que "sangrar"o cara! Esse cara é cheio de grana! Ele tem que pagar pelo que passamos por causa dele!
_ Mas ele não vai pagar nada se a gente for bonzinho com ele!
Falcão, como era conhecido, deu a ideia:
_ Peraí! Primeiro, vamo arrumar uma bela cicatriz na cara dele! Aí, se ele não quiser virar picadinho, vai dar tudo que a gente pedir.
Falcão tirou do bolso uma lasca de osso, estrategicamente afiada no concreto da cela.
_ Marreta! Tu segura o boneco aí!
Um filete de sangue desceu pelo rosto de Valderez.
_ O que... O que é isso??...
_ E aí parça? Se tu tiver disposto a soltar tua grana pra galera aí, a gente não desenha mais nada na tua cara!
Rato advertiu Valderez:
_ Mas se tu não colaborar, meu chapa, não vai ter cicatriz só na cara! Vamo fazer picadinho do grande Vavá!
_ Mas eu... Eu não tenho muito dinheiro comigo!
_ Isso não é da nossa conta! Te vira! Na certa deve ter uma mulher bonita que vai te visitar! Ela pode trazer todo dinheiro que tu pedir!
_ Tenho direito a um advogado. Hoje vou exigir meus direitos e ligar pra ele. Ele vai até minha casa e trazer o dinheiro.
_ Posso saber o que se passa aqui?
A entrada do agente da polícia interrompeu Valderez.
_ E esse sangue aí? Posso saber o que foi isso, Vavá?
Os companheiros de cela de Valderez entreolharam-se. Marreta olhava fundo nos olhos de Valderez, de modo desafiador. Uma distração do agente, e Marreta sinalizou horizontalmente o dedo indicador na própria garganta. Valderez gaguejou:
_ Na nada, não!
_ O senhor terá que me acompanhar até a enfermaria. E tem direito a um telefonema. Sugiro que entre em contato com seu advogado. E não tente gracinhas!
O agente conduziu Valderez à enfermaria e ao telefone. Ele colocou o advogado a par da situação:
_ Sim. Também preciso que avise minha mãe e Irene. Preciso de dinheiro, ou a coisa aperta pro meu lado aqui!

*

Veio o sábado, juntamente com um céu azul e uma temperatura agradável.
_ A casa onde vão morar já está mobiliada, Teresinha. A não ser que queira levar algo de apreço especial. Temos lugar na caminhonete.
Francisco estava eufórico.
_ Vou levar minha roupa e meu caminhãozinho. Vou brincar muito com as manas e o Mig.
Teresinha, Juvenal e Francisco organizaram a mudança na caminhonete de Claudio.
_ Pegaram tudo que queriam levar?
_ Acho que sim. Minha mãe mora na casa ao lado, e vai cuidar das nossas coisas, por enquanto... Vai que...
Teresinha corou ao falar. Não queria dizer que estava com medo de que não desse certo trabalhar com Tina na padaria. Claudio sorriu e anunciou:
_ Todos a bordo, então!
A viagem até Igrejinha foi uma festa para Francisco. Claudio notou o entusiasmo do menino:
_ E aí, meu guri! Tá gostando da viagem?
Os olhos negros de Francisco faiscavam de felicidade diante do negro asfalto à sua frente. Olhava de uma lateral à outra, parecendo não querer perder nada.
_ Quando eu for grande, vou dirigir caminhão, sabia?
Claudio sorriu diante da espontaneidade das palavras do menino. Apontou para o alto:
_ Pois se o Papai do Céu escreveu no teu destino que tu vai dirigir caminhão, assim será!
Chegando ao destino, as manas e Miguel já aguardavam a família Neves. Saíram correndo ao encontro de Francisco:
_ Chico!!!
Teresinha sorriu ao ver a recepção das crianças a seu filho. Notou que ali havia sinceridade e carinho entre os pequenos.
_ Booom... Pelo jeito, as crianças já deram as boas- vindas! Agora, Teresinha... Quero que você conheça Tina... O Sol que ilumina minha vida!
Tina olhou sem jeito para Claudio. As meninas notaram o embaraço da mãe e foram emendando:
_ Paiê! A mãe é o Sol e nós somos tuas estrelinhas!
_ Tá bom. Tá bom. Ficaram com inveja, é? Pois então vou corrigir: minha família é uma constelação inteira!
Entregues a uma conversa animada, a mudança de Teresinha e Juvenal foi sendo ajeitada cuidadosamente no interior da residência. Teresinha obrervou:
_ Mas... É bem grande essa casa!
_ E podem usufruir dela à vontade!
_ Mas... O aluguel deve ser caro... Com mobília e tudo...
_ Dona Teresinha... Vocês estão acostumados à vida na cidade, onde tudo que os rodeia precisa ser pago... Aqui é diferente. Temos água de vertente, pura e límpida, e aqui não se paga aluguel também. A energia elétrica é a única conta que pago.
Teresinha respirou fundo. Silenciosa e discretamente, deixou escapar uma frase:
_ Obrigada, meu Deus. Obrigada, meu Pai!
_ Vou deixar vocês arrumarem tudo aí, Juvenal. Vou fazer umas entregas de erva-mate no centro de Igrejinha. Crianças... Querem ir junto?
_ Siiiiim!
_ Então, vamos!
_ Ebbbbbbbba!
_ Num zás-trás as quatro crianças estavam no interior da caminhonete de Claudio, eufóricas.
Teresinha aproximou-se de Tina.
_ Eu tô feliz com a alegria do Francisco. Faz tempo que eu não o vejo sorrir.
_ Vai fazer bem pra ele, conviver com a natureza.
Teresinha baixou os olhos.
_ Principalmente com essas crianças daqui, que aceitam ele como ele é. As crianças de Caxias faziam chacotas dele, por ele ser de cor e ser autista.
_ Pois aqui não existe isso, Teresinha. Minhas filhas e o Miguel têm um carinho muito grande pelo teu filho.
_ Falando no Miguel... É verdade que ele não tem mãe?
_ Tem, mas ela pensou que o menino ficaria numa cadeira de rodas depois que caiu de uma árvore. Aí pegou a irmãzinha dele e foi morar com um ricaço não sei de onde. Coitadinha da menina. Ainda lembro bem da Mary... Tinha lindos cabelos... Sempre usava em longas tranças, como minhas filhas.
_ Mary??? Tranças???
Teresinha olhou para Tina como se tivesse visto uma assombração.
_ O que foi, Teresinha?
_ Então... Mary... De longas tranças...
_ Como assim? Conhece a Mary? Sabe onde ela tá?
Teresinha sentiu um arrepio.
_ Agora sei o motivo que Deus tinha pra trazer a gente pra cá...
_ Explique melhor, Teresinha. Que motivo?
_ Mary...
_ Conhece Mary?
_ Tinha uma menina que estudava na escola onde eu trabalhava. Era muito amiga do Francisco... Na verdade, era a única que compreendia ele. Um amor de menina. Amava aviões...
Tina ficou pálida diante da revelação de Teresinha.
_ O que aconteceu, dona Tina?
Tina respirou fundo:
_ Bom... Primeiro, me chama só de Tina... Depois, acho que essa menina era a irmãzinha do Miguel. A irmã do Miguel amava aviões. O que sabe dela?
Teresinha baixou os olhos:
_ Não muito... Só sei que a mãe dela era uma mulher meio estranha. A menina parecia sofrer muito...
_ Sofrer? Explique melhor, Teresinha!
_ Não sei explicar, no início, a Mary era feliz. Mas a menina mudou muito com o tempo. Várias vezes encontrei ela chorando. E um dia apareceu sem as tranças.
_ Como assim? Deixou o cabelo solto?
_ Não... Ela contou ao Francisco que o Léo, o filho do padrasto dela, tinha cortado as tranças dela.
Tina ficou pasma diante da revelação de Teresinha.
_ Então... Mary foi...
_ Acredito que sim, Tina. Infelizmente, creio que foi abusada.
Tina custava acreditar.
_ Mas... Tu falou que ela "estudava"...
_Sim. Faz tempo que não aparece na escola. O Léo ainda estuda lá... Não sei de Mary faz tempo...
Tina respirou fundo:
_ Deus certamente levou a Mary para um lugar onde Léo não ...
Teresinha olhou para o alto.
_ Que assim seja. Porque ela tava muito triste. Dava uma peninha... Era a única amiga do Francisco.
Tina notou a tristeza de Teresinha.
_ Bom... Venha! Vou te mostrar onde vamos trabalhar.
_ Como vai chamar a sua padaria?
_ Bom... Não é bem uma padaria... Eu já faço doces sob encomenda a algum tempo. Agora, se você me ajudar, podemos ampliar nossa clientela.
_ Então, vai ser feito tudo aqui?
_ Sim. Tenho uma cozinha especial para o preparo de doces, bolos e salgados. Só preciso de ajuda pra aumentar a oferta de produção.
Teresinha sorriu, aliviada. Viu em Tina uma pessoa criativa.
_ Ahh... Perdão... Meus produtos levam o nome "Delícias da Tina"!
_E certamente são uma delícia!
_ O segredo é fazer com carinho. Tudo que é feito com carinho fica bom. Claudio falou que a senhora é especialista na cozinha. Aí logo pensei em convidá-la.
_ Especialista não sou, mas amo cozinhar.
_ Então somos parecidas. Vamos fazer os doces e salgados mais gostosos da região!
Tina estendeu um prato com biscoitos caseiros coloridos a Teresinha.
_ Prove! Essas são minhas favoritas!
_ Teresinha pegou timidamente o doce, que, ao provar, desmanchou em sua boca.
_ Mmmmm!



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