Em Santa Maria, após ler a carta de Francisco, com as lágrimas queimando a face, Miguel desceu do beliche e cutucou o canga.
_ O meu véio tá com problemas sérios, e meus amigos também. Tá na hora de eu conseguir tirar aquelas férias vencidas e ir ajudar eles lá, até que as coisas entrem nos eixos.
_ Vai e fala com o General Brackemeyer. Ele é teu chapa, porque tu desfez aquele sanhaço no rancho, que mais parecia uma pocilga. Agora parece uma cozinha. Tenho certeza que ele vai te liberar.
_Preciso conversar com Deus primeiro, cara... Se estiver nos planos de Deus de eu voltar pra ajudar o Francisco, as manas e o papai, vou conseguir ir. E se não estiver nos planos de Deus, nada vai acontecer, e eu só vou atrapalhar.
Seu olhar procurou, através da janela do alojamento militar, algum ponto no céu, até parar no brilho de uma estrela diferente. Miguel sentiu o coração pulsar forte diante daquele brilho especial.
_ Deus... Sou muito grato ao Senhor por me acompanhar em todos os passos da minha vida, desde que nasci, quando caí da árvore ao salvar o papai da morte, quando a mamãe, achando que eu ficaria aleijado, me abandonou ao lado do meu paizinho. Gratidão pelo que sobrou da minha família e pelos amigos que o Senhor me permitiu ter. Tenho certeza que, em cada momento que eu viver, tu estarás perto de mim, pra me mostrar o que devo fazer. Se for a tua vontade, Senhor, me permita ir ajudar o papai e o pessoal de Igrejinha. Gratidão, meu Deus. Gratidão, meu Pai. Amém.
Após um breve silêncio, Miguel voltou a falar com o canga.
_ Aí, Zimmer! Vou seguir o teu conselho. Tomei a decisão de falar com o General Brackemeyer! Tenho minhas férias vencidas e vou pra casa, ajudar o papai , as manas, o Francisco... Um ano e meio aqui, e eu nunca tirei uma folga nem pra visitar o papai... E se o general Brackemeyer não liberar, vou pedir baixa e não volto mais. O dinheiro que guardei até agora vai me servir pra pagar a passagem até Igrejinha e ajudar o pessoal.
_ Eu sou de Três Coroas. Me avisa quando tu for, que eu vou contigo até Sapiranga. Lá no desembarque do Batalhão Militar, meu velho vai me pegar e pode te dar uma carona até Igrejinha. Aí , seguimos pra casa, em Três Coroas. Assim, eu passo um fim de semana em casa, e tu economiza a passagem intermunicipal de Sapiranga pra Igrejinha.
_ Tu não existe, cara! Obrigado!
Após alguns dias, o coletivo militar chegava ao Batalhão da Brigada Militar de Sapiranga. No setor de desembarque, Miguel sentiu as pernas tremendo pela emoção de logo reencontrar o pai e os amigos. Zimmer fixou os olhos ne setor de desembarque e bateu no ombro do colega:
_ Aí, meu irmão! Meu véio vem nos buscar aqui, e logo vamo tá em casa!
Miguel sorriu timidamente, olhou para o céu e agradeceu baixinho:
_ Obrigado, meu Deus... Obrigado, meu Pai.
Zimmer pôs a mão no braço de Miguel, indicando um senhor que aguardava na saída do desembarque.
_ Meu pai já tá ali. Vamos? O velho Jair não gosta de ficar esperando!
_ Obrigado , meu amigo. Te devo essa!
_ Não me deve nada. Agradeça somente a Deus, por colocar a gente no mesmo caminho!
Já a bordo da caminhonete do senhor Jair, Miguel parecia voltar aos tempos em que ele, as manas e Francisco acompanhavam Claudio à cidade. Enquanto seus olhos percorriam os morros de Sapiranga, sua euforia transparecia nas palavras:
_Agora, já tamo pertinho. Olha lá, Zimmer ... Aquele é o Morro Ferrabrás! É lá que tem a rampa de vôo livre. Um dia ainda quero subir lá e treinar o "vôo do passarinho"! Sabia que, quando eu era pequeno, sempre sonhei em voar como um passarinho? Eu e minha irmã...
Instintivamente, uma sombra de tristeza cobriu o olhar de Miguel.
_ Minha irmã e eu sempre brincávamos de voar como os passarinhos, antes da nossa mãe levar ela daqui.
Zimmer sentiu a tristeza nas palavras do amigo. Tentou disfarçar, fixando o olhar em um ponto colorido no céu.
_ Olha! Não é uma dessas asas que tu tá falando?
Miguel estremeceu. Pareceu sair de um transe. Seguiu o olhar do colega.
_ É isso aí, meu amigo! Se eu conseguir treinar nas minhas férias, logo, logo, vou tá voando numa dessas asas aí!
_ Teu velho sabe que tu tá voltando de férias?
_ É isso aí, Zimmer... Não consegui avisar o papai, porque o telefone lá de casa foi cortado. Assim, vou fazer uma bela surpresa para o pessoal! Pelo que o Francisco informou na carta dele, o papai ainda não voltou pra casa, então, vou achar todos na casa das manas.
_ Só explica pro meu pai por onde ele precisa ir, que ele te leva pra casa.
Miguel sorriu, dirigindo-se ao senhor Jair:
_O senhor sabe onde é a Serra Grande?
_ Sei, sim. Sou pedreiro, e a um tempo atrás fizemos uma construção lá. Só me mostra onde é, quando chegarmos perto.
_ Tô louco pra rever o pessoal lá de casa! Quero fazer pra eles uma porção de pratos e doces que aprendi a fazer no meu curso de gastronomia, em Santa Maria.
Os olhos de Miguel brilharam diante da perspectiva de voltar a ver o pai e os amigos, que deixara de visitar durante todo o tempo que estivera no quartel. Por pouco Miguel não esqueceu de avisar o pai do recruta Zimmer sobre a localização da casa de Francisco.
_ É ali, Sr Jair! Ao lado daquela padaria.
Após ajudar a descer as bagagens de Miguel da caminhonete, Zimmer bateu de leve o ombro do amigo.
_ Então, até a volta das tuas férias, cara! Eu volto pra Santa Maria domingo!
_ Obrigado pela carona, Sr Jair. Que Deus lhe pague em dobro!
_ Deus já me abençoou, guri! Só de ver meu filho sendo amigo de gente boa, fico mais tranquilo!
Miguel levou uma parte da bagagem próximo à porta da casa que era ocupada por Juvenal e sua família. Bateu discretamente, porém não obteve resposta.
_ Ué... Será que o Francisco também não tá em casa? Eu deveria ter avisado que viria...
Desolado, sentou-se na soleira da padaria. Estava tão absorto em seus pensamentos que não notou a presença de Lenir e Francisco.
_ Mig???
_ É o Mig, siiiiiiiiim!!! Que saudade!!! Tu veio pro aniversário do Francisco? Vai ser amanhã!
Miguel sorriu, dirigindo-se até a porta da casa de Juvenal, receoso.
_ Tu falou na carta que o meu pai foi operado, e tá ficando aqui contigo... Ele... Ele não tá mais aqui? Ele voltou pra casa? Como é que ele tá?
Lenir sorriu.
_ Calma, Mig... Respira ... Uma pergunta de cada vez! Ele deve tá tirando pasto. Saiu agora a pouco com a carretinha.
Miguel respirou aliviado. Francisco abriu a porta, ajudando Miguel a carregar a bagagem até o quarto.
_ Que susto! Mas, me conta... O que aconteceu por aqui? A tia Tina e a tua mãe ainda tão no hospital?
Lenir baixou os olhos, tristemente.
_ Infelizmente. A mamãe foi operada no hospital de Canoas, e a mãe do Chico foi transferida para o Hospital Geral de Caxias.
_ Tá... E o Claudino, e a Valéria?
_ Eles estão brincando, lá em casa.
Engano... Valéria e Claudino, já não estavam mais na casa de Tina. Os dois, pé ante pé, silenciosamente, pareciam seguir alguém, abrindo a porta da padaria. Olharam com admiração em direção a um estranho vulto de luz, seguindo-o padaria adentro.
_Olha, Claudino! A mamãe veio pra cá! E tá toda cheia de luz. Tá branquinha, branquinha! Ela tá chamando nós! Vamo fechá a porta, que é pra ninguém vê que a gente tá aqui!
As duas crianças, como se estivessem hipnotizadas por aquela estranha luz, trancaram a porta da padaria por dentro. Com os olhos arregalados, viram o vulto de luz aproximar-se da bancada de preparo dos doces. Os ingredientes foram-se misturando um a um. Na bancada, foram surgindo os mais diferentes doces e saborosos salgados, como que por encanto. Uma melodiosa música parecia encher harmoniosamente todo o ambiente da padaria. Pipilos de passarinhos se faziam ouvir nas janelas, enquanto os doces e bolos enfileiravam-se sobre a bancada, como se fosse magia. De repente, como num piscar de olhos, um bolo diferente surgiu aos olhos das crianças.
_ Olha, Valéria! Que bonito!Um bolo de aniversário! Será que é pro Chico? Ele tá de aniversário amanhã!
Doces e salgados foram surgindo, como que por encanto, enquanto a luz se tornava mais intensa. O tempo parecia não existir naquela padaria. Doces e salgados foram enfileirando-se sobre a bancada, enquanto o vulto de luz ia de um lado para o outro, ao som daquela música suave e inebriante. Valéria bocejou, agarrada ao braço do amiguinho.
_ Claudino. Eu tô soninho... Vamo durmi aqui? É quentinho aqui, e a mamãe cuida de nós.
As duas crianças, com os olhos diminuindo aos poucos, entregaram-se ao sono. O vulto de luz pairou por alguns momentos sobre as duas crianças, observando-os dormindo. Uma voz longínqua parecia ecoar pela padaria:
_ Teresinha! Teresinha! Tua missão terrena termina agora...
O vulto de luz olhou para as crianças pela última vez, parecia erguer-se suavemente, atravessando o teto da padaria.
No Hospital Geral de Caxias...
_ Um infarto fulminante! Nós estamos perdendo ela! Chamem a equipe de cardiologia, urgente!
O mesmo ambiente de Luz e Paz que Teresinha estivera anteriormente. Agora, sua silhueta de luz flutuava suavemente sobre as rosas perfumadas, aspirando o doce perfume do jardim, sentiu a Paz tomar conta de todo seu espírito. Estendeu as mãos, tocando suavemente o rosto de um pequeno vulto, à sua frente.
_ Alessandro... A mamãe voltou! A mamãe voltou para a casa do Papai do Céu! É esse o meu lugar na eternidade...
Na casa de Tina, Lenir estava em prantos.
_ Onde será que essas crianças se esconderam? Deixei elas aqui, brincando...
Miguel ergueu as sobrancelhas, preocupado.
_ Será que foram raptados? Tu tem uma espingarda aí, Chico? Vamos procurar por tudo, e só vamos ficar tranquilos se acharmos eles!
Francisco, apavorado diante da situação, não conseguia falar. Lenir arriscou.
_ Não temos armas, Mig. Mas vamos pensar positivo. Eles podem ter dormido em algum cantinho por aí. Vamos chamar eles por todos os lugares. Se ouvirem a gente, vão responder!
Francisco olhou para a janela da padaria, e estranhou:
_ Ué... Nós deixamos a luz da padaria acesa, quando entramos na câmara fria?
_ Não, Chico! Tenho certeza que desliguei a luz.
Os jovens entreolharam-se:
_ Então...
Tentaram em vão abrir a porta da padaria. Lenir piscou.
_ Valéria e Claudino devem tá lá dentro... Tá tudo muito quieto. Vamos chamar bem alto, que devem ter pegado no sono.
_ Claudino!!! Valéria!!! Vocês estão aí dentro?
Após um breve silêncio, um barulho de chave girando quebrou o silêncio. A porta aberta, mostrava a bancada repleta de quitutes caseiros, juntamente com o primoroso bolo de aniversário.
_ Crianças... Quem fez tudo isso?
Valéria bateu no peito, orgulhosa.
_ A minha mamãe! Ela era um anjo de luz e veio aqui, fez tudo isso pro aniversário do Chico!
Os jovens ajoelharam-se, aos prantos. Miguel respirou fundo, olhando tristemente para as crianças e para Francisco.
_ Vamos entrar na sala da rádio! Lá tem telefone, pra ligar para o Hospital Geral de Caxias.
Ainda com as lágrimas queimando o rosto, Francisco ouviu a voz triste de Juvenal, dando a triste notícia:
_ Infelizmente, filho... Os médicos fizeram tudo o que podiam ter feito. Mas um infarto fulminante levou tua mãe...
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INFÂNCIA ROUBADA
RandomHistória baseada em fatos reais. ALERTA DE GATILHOS: contém violência, abusos, suicídio e morte. Não indicado para menores de 18 (dezoito) anos e/ou pessoas sensíveis aos assuntos abordados. Miguel e Mary são duas crianças, irmãos... Após a tenta...