Após o exame de Irene, Valderez estava revoltado, a caminho do hospital Paulo Guedes:
_ Vou abrir um processo judicial contra essa clínica! São todos uns veterinários, não são médicos! Onde já se viu, dizer que meu filho tem cabeça d'água? Cabeça d'água tem esses açougueiros que se dizem médicos!
A enfermeira que acompanhava o casal preferiu permanecer em silêncio. Irene palpitou:
_ Na certa são traficantes de crianças, e querem ficar com o nosso nenê... Fingem um exame que nem esse, falam que o nenê tá doente, e quando ele nasce, ficam com ele pra vender pra Europa, ganhando uma grana preta!
_ Eu não confio nem um pouco nessas clínicas de fachada! Vamos fazer todos os exames em outro lugar. Mão quero saber mais dessas clínicas pra pobre!
Na volta ao hospital, Irene foi reconduzida ao quarto onde estava internada. A enfermeira voltou ao seu posto e Valderez entrou na sala do médico responsável.
_ Quando minha esposa poderá voltar pra casa? Eu não confio nessas clínicas de pobre. E quero que ela faça os exames numa clínica de luxo, onde nós costumamos nos tratar.
O médico, surpreso pela ousadia de Valderez, informou:
_ Amanhã teremos os resultados dos outros exames. Peço que aguardem.
_ E a alta?
_ Se tudo estiver certo também na avaliação do setor de psiquiatria, ela terá alta amanhã mesmo.
Valderez, na manhã seguinte, estava cedinho ne recepção do hospital Paulo Guedes.
_Vim buscar minha esposa. O médico falou que provavelmente ela teria alta hoje. Eu tô ansioso pra tirar ela daqui!
_ O senhor é marido da Dona Irene?O Dr Carlos quer conversar com o senhor primeiro, para passar as orientações de continuidade dos tratamentos, em casa. Podes passar na sala 5, por favor.
O médico responsável pelo setor de psiquiatra colocou Valderez a par da evolução de Irene:
_ O senhor terá que seguir todas as orientações para dar continuidade aos tratamentos de sua esposa. No âmbito psicológico e psiquiátrico, sua esposa está bem. O que me preocupa, são os exames de sangue que fizemos ontem. Mostraram algumas alterações.
_ Alguma coisa errada?
_ Os resultados mostram que sua esposa tem alguma infecção, mas isso será facilmente tratado em outro estabelecimento de saúde. Aqui, damos ênfase aos problemas psiquiátricos e psicológicos.
_ Sem problema, Dr. Minha esposa terá os melhores médicos do Brasil à disposição!
_ Disso não tenho dúvidas, seu Valderez. Pode aguardar na recepção, que ela logo será liberada pra alta. Aqui estão todos os exames feitos em sua esposa enquanto estava em nosso hospital.
Valderez olhou os exames com desdém:
_ Vou até levar esse lixo aí, mas vou levar ela aos melhores médicos pra tratar ela e nosso nenê, como merecem.
Irene já aguardava na recepção, quando Valderez saiu da sala do Dr Carlos.
_ Vamos, Valderez. Quero sair desse chiqueiro o mais rápido possível!
Aos xingamentos, o casal deixou o hospital Paulo Guedes.
_ Nunca mais quero botar os pés nessa pocilga!
_ Amanhã mesmo nós vamos fazer todos os exames em laboratórios e clínicas de luxo. Lá vão mostrar pra nós que esse chiqueiro aqui é só pra pobre!
Irene e Valderez mal entraram em casa, Lili já foi perguntando:
_ Como tá meu neto?
O casal entreolhou-se, pois para eles os exames feitos no dia anterior estavam errados .
_ Hoje mesmo vou remarcar todos os exames numa clínica de luxo que eu conheço. Eles vão nos dizer que o nosso nenê tá ótimo, e que a Irene tá ótima também.
_ Faz bem, meu filho. Essas clínicas pra pobre sempre manipulam os resultados de exames pra fazer a ralé correr até o hospital de novo.
Irene girou o olhar pela sala:
_ E Mary? Onde tá minha filha? Ela tá na escola?
Lili e Valderez entreolharam-se, sem coragem de dizer que Mary tinha desaparecido já desde a internação de Irene no sanatório. Optaram por ficar em silêncio.
_ Bom, vou tomar um banho, com meus sais de banho. Aquele chiqueiro não tinha nem banheira pra eu relaxar.
_ E eu vou sair, pra marcar teus exames numa clínica de renome! Quem tem dinheiro consegue tudo a qualquer hora, em uma clínica dessas.
_ Marca pro turno da tarde, que de manhã quero dormir até cansar da cama. Aquele ninho no pulguedo era pra cachorro... Não pra mim! E ainda vinham de vez em quando, medir pressão, trazer remédios e uns angus que eu não conseguia comer.
_ Agora tu tá em casa, Irene. Pode dormir quanto e quando quiser...
Irene retirou-se, Valderez e Lili permaneceram na sala.
_ Que história é essa de exames errados?
_ Nada, mãe. Fizeram um exame numa clínica pra pobre... O médico que fez falou-me umas asneiras.
_ Essas clínicas são pra pobre... Não pra gente da nossa classe!
_ Ainda hoje vou remarcar tudo, e provar que aquele veterinário, que se diz médico, tava enganado!
_ Lili mostrou-se preocupada:
_ E Mary? Como tu vai dizer pra Irene que a menina tá sumida faz tempo?
_ Não sei... Vou manter Irene ocupada com o enxoval do nenê. Assim, ela esquece de perguntar... Qualquer coisa, eu digo que ela tá com o Léo.
_ É uma ideia boa, meu filho. Como ela nunca foi muito ligada na filha, nem vai notar a ausência dela.
_ Vou sair e marcar os exames dela. Assim, ela se ocupa com as preocupações do nenê e não lembra de perguntar pela filha.*
Vincenzo entrou na cozinha eufórico:
_ Olha, bambino! Tu madre mandou telegrama! Amanhã tua tia vem te buscar aqui em casa. Vão até o aeroporto, e de lá vão de avião,direto pra Itália!
_ Avião? Itália? Amanhã?
_ Sim.
Mary hesitou:
_ Mas... Quem vai te ajudar a arrumar os vasos dos túmulos? Eu tenho que ficar aqui, com vocês!
_ Não, bambino. Tua missão é ficar com tu madre, estudar e ser alguém na vida. Aqui, não teria futuro pra ti.
_ Mas, e Gioconda? E Fiorella? Elas precisam de mim também... Preciso ensinar elas a ler mais uma porção de coisas.
_ Teu coração é grande, bambino. Mas Dio não te fez meu filho, e sim, filho de Francesca! E somos pobres... E Francesca é herdeira de uma empresa de aeronaves. Ela soube que tu tá aqui, e mandou te buscar.
_ Aeronaves? Isso são aviões...
_ Sim.
Mary ficou pensando nas palavras de Vincenzo.
_Mas eu...
_ Algum problema, bambino?
Ele não sabia que ela era uma menina. Mary resolveu falar a verdade:
_ Preciso confessar uma coisa importante, seu Vincenzo.
_ Pois fale, bambino!
_ Eu...
Mary hesitou. Não sabia como Vincenzo receberia a verdade. Ergueu os olhos, como se pedisse a Deus a coragem que lhe faltava.
_ Pode falar...
Mary respirou fundo. No justo momento que Gioconda entrou na cozinha. A menina olhou para a moça, como se procurasse nela a coragem para falar.
_ Eu não sou... Não sou Pedrinho...
_ Pois isso eu sei, mas o teu coração e teu espírito é de Pedrinho... Sem contar que é igualzinho...
_ Não. Não sou igualzinho. Sou uma...
Mary corou diante de Vincenzo. Porém, viu no rosto de Gioconda a coragem de falar:
_ Eu sou uma menina. Nunca posso ser Pedrinho.
Mary suspirou de alívio por ter conseguido falar a verdade. Gioconda completou:
_ É vero, papá. Eu e Fiorella já sabíamos. As regras dela desceram a duas semanas pela primeira vez. Aí a gente descobriu que ela é uma menina. Tivemos que explicar tudo pra ela, assim como o senhor nos explicou.
_ Mas isso é divino! Dio te fez voltar menina, pra cuidar de tu madre! Dio é muito bom!
_ Então, não tá bravo por eu ter escondido que sou menina?
_ Tu deve ter tido teus motivos... Mas, me conta agora, se quiser.
Mary relatou tudo que lembrava de sua infância com o pai e o irmão. O drama de ser levada da presença do pai que na ocasião tentara suicídio, e do irmão, que caíra da árvore ao salvar o pai.
_ Isso é cruel...
Duas grossas lágrimas desceram pelo rosto de Mary:
_ Minha mãe me trouxe pra Caxias. Foi morar com um homem que...
Os relatos sobre Léo e os abusos deixaram Vincenzo e Gioconda horrorizados.
_ Então, me diz... Como é teu nome verdadeiro?
_ Maria. Mas minha mãe sempre me chamou de Mary.
_Santa madre de Dio! Teu nome é Maria! Foi realmente Dio quem te mandou! E tua missão é cuidar de dona Francesca! E tu vai ser muito feliz com ela.
_ Eu vou cuidar dela sim, Vincenzo. Se Deus me deu essa missão, eu vou cuidar dela até o fim de seus dias. Mas vou voltar... Um dia... Quero reencontrar meu pai, meu irmão, o Francisco e vocês!
_ Mas claro, bambino... Oppppa!
Vincenzo corrigiu:
_ Mas claro, bambina!
Mary abraçou Gioconda e o velho zelador.
_ Mas, onde tá Fiorella?
Fiorella entrou, carregando uma caixa de lenha para o fogão.
_ Me chamaram?
Mary jogou-se nos braços de Fiorella, rodopiando com ela pela cozinha:
_ Deus me trouxe pra cá, Fiorella! Isso pra que vocês cuidassem de mim. Agora, eu vou cumprir a minha missão! Vou cuidar de dona Francesca!
A alegria de Mary contagiou a todos.
_ E quando ela vem te buscar?
_ Seu Vincenzo falou que vou amanhã! Deus é muito bom!
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INFÂNCIA ROUBADA
RandomHistória baseada em fatos reais. ALERTA DE GATILHOS: contém violência, abusos, suicídio e morte. Não indicado para menores de 18 (dezoito) anos e/ou pessoas sensíveis aos assuntos abordados. Miguel e Mary são duas crianças, irmãos... Após a tenta...