68 - Devaneios

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Tina não sabia o que dizer, tampouco o que fazer... Simplesmente não acreditava na cena que seus olhos insistiam em mostrar-lhe: No cemitério, dois caixões iguais, lado a lado, circundados por crisântemos brancos. O choro de Francisco e Miguel se misturavam aos murmúrios dos presentes.
_ Coitada... Perdeu o maridoa pouco tempo! E agora, as duas filhas...
_ Deve ter pecado muito pra ser castigada assim... Deus não deixa impune!
_ Ela deixou o marido morrer... Deus tá fazendo justiça... Ela nem merece filhos...
Os olhos de Tina, vermelhos de tanto chorar, procuravam em seu colo, o rostinho de Claudino. Era como se fosse esboçar a única esperança de vida que ainda lhe restava.
_ Meu filhinho... Mamãe tá muito triste... Prometi ao teu pai que guardaria a vida das manas com a minha vida, e não consegui cumprir minha promessa...
A vontade era de sair daquele ambiente triste. Porém, a cena dos dois corpos inanimados das filhas, sendo velados, a impediam. Olhou para os crisântemos brancos, em seguida para os rostos pálidos das filhas, e sentiu mais uma vez aquela sensação de que estava sem chão... Apertou Claudino nos braços e seus olhos procuraram o céu, como a perguntar o motivo de Deus ter levado suas filhas... A voz silenciosa do coração clamava, enquanto mais lágrimas desceram pelo rosto de Tina.
_ Deus... Eu não consigo acreditar! Não posso deixar as meninas partir assim... Não é justo, Senhor... Leve a mim, que estou com câncer, mas não leve as minhas filhas... Elas ainda têm uma vida inteira pela frente, e são as sementes do Claudio, que sempre foi tão bom pra todos...
Algumas nuvens brancas pareciam misturar-se e formar os rostos sorridentes de Lenice e de Lenir. A vida das meninas, com Claudio, pareceu-lhe passar diante dos olhos... O nascimento prematuro... As travessuras da primeira infância... A queda de Lenir do cavalo... O falecimento de Claudio, que as deixara sem chão...
_ Deus... Eu fui tão feliz com a presença delas... Mas, se é vontade do Senhor que elas façam parte do teu reino de anjos, que seja feita a sua vontade... Eu cumprirei a minha missão com o Claudino.
Àquelas alturas, parecia até que os sorrisos das manas emanavam daquelas brancas nuvens que desciam lentamente sobre o cemitério, deixando-o coberto por uma densa névoa. A voz do pastor parecia rasgar o silêncio que imperava ali.
_ Temos que apressar o funeral... Creio que teremos chuva!
A névoa foi seguida por uma chuva fina, cuja água misturava-se às lágrimas de Tina... Olhou pela última vez aqueles rostos tão amados, antes que se fechassem os caixões... Fechou os olhos e orou:
_ Deus... Cuida bem das minhas meninas... Que elas sejam anjos bons como sempre foram em vida, aqui, com a gente!
Como num piscar de olhos, Tina despertou... Olhou para Claudino, adormecido em seus braços... Em seguida, olhou para os lados... Surpreendentemente, não estava no cemitério, mas em sua casa... Ergueu-se rapidamente, procurando o quarto das meninas, que dormiam profundamente, abraçadas aos seus travesseiros. Sentiu seus joelhos se dobrarem, e olhou para o alto...
_ Deus... Obrigada por me devolver minhas filhas... Esse sonho serviu pra reforçar minha promessa: vou guardar a vida dos meus filhos com a minha vida!

*

Miguel encontrava-se em uma estrada iluminada, cujas laterais tinham enormes plátanos que refrescavam o ar. Ele via uma menina ao longe, cujo rosto não conseguia descobrir quem era, mas que não lhe era estranho... Sentiu que, pela primeira vez, seu coração acelerava mais que o normal... Sentiu um calor intenso subir-lhe pelas pernas, indo parar no peito...
_ Espera aí, menina... Eu já te vi em algum lugar...
Aproximou-se lentamente, como se fosse temer alguma reação da menina... Seu rosto, agora nítido, transparecia uma leveza ímpar...
_ Uau! Parece um anjo...
A resposta dela foi imediata:
_ Anjos não caminham... Anjos voam...
Miguel parecia fascinado diante daquele jeito simples e leve da menina falar. Tentou falar, mas gaguejou:
_ Ent... Então, tu é uma fada?
_ Fadas também voam... E eu não tenho asas, que serviriam pra voar... Olha! Tenho braços... Servem pra abraçar...
Miguel ficou ali, frente a frente com aquela menina que lhe estendia os braços, sem saber se deveria abraçá-la ou não...
_ Não precisa ter medo de mim, Mig! É só um abraço!
Diante daquelas palavras tão simples, ele não resistiu. Um abraço selou aquela sensação de bem estar que tomara conta de Miguel. Pela primeira vez, o calor de um abraço parecia misturar-se ao pulsar do coração.
_ Tu é um anjo, sim... Ou uma fada... Só anjos e fadas trazem um abraço tão bom!
Em uma fração de segundos, Miguel se viu sozinho. Como em um piscar de olhos, a menina desaparecera. Desorientado, Miguel acabara de despertar de um sonho estranho... Porém, ao despertar, notou que algo estranho tinha acontecido...
_ Foi só um sonho! Estranho... Eu não fiz xixi na cama... Porque o meu colchão tá molhado?
Miguel não sabia se conversaria com o pai sobre o ocorrido, ou omitiria.
_ Se eu falar, é capaz dele rir de mim... Ou vai me dar uma surra ou um castigo... Ou, pelo menos, uma baita bronca...
Com receio de ser castigado, resolveu calar-se. Porém, Arnaldo, ao entrar no quarto do filho, notou no jeito diferente dele, que tinha acontecido alguma coisa.
_ Tu acordou diferente hoje, Miguel... Aconteceu alguma coisa? Brigou com alguém? Tá doendo o quadril?
_ Não, pai... Só que...
Miguel corou ao encarar o pai. Arnaldo pôs a mão no ombro do filho.
_ Pode falar... Ou teu velho aqui não é mais teu melhor amigo?
Miguel olhou para Arnaldo envergonhado.
_ Não sei como falar, pai... Tu vai me dar uma bronca...
_ Bom... Vamos fazer um trato! Primeiro, tu fala e eu escuto, sem interromper.. Depois, eu tento responder às tuas encrencas, e sem xingamentos! Fechado?
O rosto de Miguel iluminou-se:
_ Fechado! Tu é o melhor pai do mundo!
_ Então, desembucha, guri! Não tenho o dia todo!
Miguel começou devagarinho, com receio:
_ É que... Tudo começou com um sonho diferente... Uma menina sem rosto...
Arnaldo sorriu:
_ Continue...
_ Depois que ela chegou pertinho, eu vi o rosto dela... Era muito bonita, parecia até um anjo... Ou fada... Ou coisa assim...
Arnaldo escutava Miguel em silêncio, com a mão no queixo.
_Ela me abraçou... E eu senti umas coisas... Diferentes...
_Mmmm... E?...
_ Miguel passou a atropelar as palavras:
_ E... Aí nada, pai... Eu acordei... E meu colchão tava molhado... Desculpa, pai... Mas eu não fiz xixi na cama... Não sei como ficou molhado!
A princípio, Arnaldo fez cara de sério:
_ E agora, meu pequeno aprendiz de adulto... Terminou?
Miguel olhou receoso para o pai:
_Sim... Vai me dar um castigo?
_E o que tu acha que eu deva fazer?
O olhar desorientado de Miguel demonstrava seu nervosismo.
_ Não sei... Nunca me aconteceu... Meu colchão tá molhado...
Arnaldo sorriu:
_Pois então, de acordo com o trato, agora é a vez do capitão aqui falar...
_ Desculpa, pai...
_ Tu sabe que eu sou neto de índio, né?
Arnaldo olhou pela janela, como se procurasse algo. Miguel não compreendeu...
_ O que tá olhando, paíi?
_ Tô vendo se tem sol hoje!
_ E o que o meu colchão tem a ver com o índio? E com o sol?
Arnaldo piscou para Miguel.
_ Tudo a ver, marujo! Meu avô e sua tribo dormiam em redes. Ele sempre dizia que, se um "pequeno guerreiro" molhasse a rede, teria que estender ela ao sol, na aldeia, e dançar perto dela, até que ela esteja seca...
Arnaldo não precisou usar de nenhum xingamento, mas suas palavras atingiram Miguel em cheio, que torceu as mãos e gaguejou:
_Pa... Pai... Preciso fazer isso? Não consigo dançar ainda, tô de muletas!
A gargalhada de Arnaldo encheu o quarto.
_ Tô brincando, marujo! Eu sei exatamente o que te aconteceu... E vou te explicar!
Surpreso com a reação do pai, Miguel Sentiu-se mais confiante:
_ Sabe o que me aconteceu... Como assim?
Arnaldo tirou um livro da estante.
_ Venha! Vou te explicar de uma maneira "limpa" o que aconteceu a esse pequeno"aborrecente"... Prefiro explicar assim do que saber que tu aprendeu na rua, de uma maneira "suja"!
Ao abrir o livro, Arnaldo parou na página que falava sobre sexualidade na puberdade.
_ Aqui... Vamos ler juntos... O que tu não entender, me pergunta, tá?
Miguel foi lendo, página após página. Sua fisionomia foi ficando séria.
_ Pai... Aqui diz que todos os meninos normalmente passam por isso, e muitas vezes...
Miguel fez uma pausa. Em seguida, continuou:
E o senhor já foi um menino... Isso quer dizer que o senhor...
Arnaldo brincou:
_ Bem capaz! Eu não! Eu nasci como um girino, depois, criei pernas e braços e me transformei num homem!
Miguel arregalou os olhos diante da brincadeira do pai.
_ Bahhh! Não acredito!
_ E não precisa acreditar mesmo, marujo! Tu já sabe quando eu tô brincando!
_ Mas... O senhor também passou por isso?
_ E tu acha que não? Perdi a conta de quantas vezes eu acordei molhado, sonhando com meninas bonitas... Ou tu acha que não tinha meninas bonitas na minha adolescência?
Miguel, àquelas alturas, já se mostrava mais tranquilo.
_ Então, pelo que eu li aqui, vou dançar muito ainda ao redor do meu colchão molhado, né pai?
Arnaldo sorriu:
_ Eu tava brincando sobre a dança, filho! Basta colocar o colchão no sol. Tu tá dispensado da dança! Ainda mais que tu tá usando muletas! Imagino tu dançar de muletas!
A gargalhada de Arnaldo fez Miguel rir do acontecido.
_ Obrigado, pai! Se Deus quisesse me dar outro pai, eu não ia aceitar, não!
_ Então, marujo... Vamo tirar esse popozão do colchão e colocar ele no sol, ou alguém vai dormir num colchão molhado essa noite!

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora