91 - Rã no cardápio

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Após avaliar os recursos disponíveis para comemorar o aniversário do filho, Tina decidiu:
_Acho que esse ano não vamos ter dinheiro pra fazer uma festinha de aniversário pras crianças. As encomendas da padaria diminuíram bastante essa época e o dinheiro tá pouco.
Teresinha sorriu.
_ A Valéria vai ter que se contentar só com um bolo pequeno também. Parece que foi ontem que fez aniversário, e já passou um ano de novo.
_ Mãe... Por que não faz um almoço pra todos? Dá menos trabalho e também não gasta muito... As dindas e os dindos do Claudino e da Valéria sempre vêm no aniversário deles.
_E é bom que eles vêm, pelo menos uma vez por ano. Assim, acompanham o crescimento dos afilhados.
_ Então, mãe. Todos iriam gostar.
_ Mas é bastante gente, e depende do que vamos fazer, vai além do nosso orçamento. Temos pouca carne no freezer e temos que manter as contas em equilíbrio!
_ Aniversário é só uma vez por ano, mãe... O mano vai ficar triste se a gente não fizer nada...
Valéria e Claudino, atrás da porta, não evitaram de escutar a conversa.
_ Se eu fizer um almoço, não teremos carne que chega. Os frangos estão muito novos ainda pro abate, e as galinhas poedeiras eu não quero abater. Preciso dos ovos na padaria. Teríamos que ter uma reserva de carne maior no freezer pra fazer um almoço pra tanta gente...
Valéria olhou para o amiguinho, que esgueirou-se furtivamente até a gaveta da pia. Abriu-a, e, furtivamente, pegou a primeira faca que encontrou. As duas crianças entreolharam-se e sumiram porta afora.
_ Tá, mãe... Se a gente fizer apenas um bolo e alguns salgados sai mais em conta...
_ Verdade... Me ajuda aqui com as bolachas? Essa é a última fornada.
Tina, a filha e Teresinha terminaram de assar as bolachas e apenas deram-se conta do silêncio das crianças após um certo tempo.
_ Ô, mãe... Tá ouvindo?
_ Não... Não tô ouvindo nada. Ou tô ficando surda ou não tem nada pra ouvir.
_ É justamente isso, mãe! Silêncio... Eu não tô ouvindo o mano e a Valéria brincar lá no quartinho... Será que pegaram no sono?
Tina sorriu.
_ Aqueles dois já não dormem durante o dia faz meses. Eles devem estar no pátio, brincando.
_ Não tão, não... Tá tudo muito quieto... Esses dois não sabem brincar sem fazer barulho... No caso desses dois, quando eles estão muito quietos, é porque estão aprontando.
_ Vai dar uma olhada, pra ver se acha eles, que eu e a Teresinha terminamos de arrumar as bolachas.
_ Vou ver se eles não estão na rádio, com o Juvenal e o Arnaldo... Ou na ONG, com a Lenir.
Após procurar inutilmente por todos os lugares possíveis, Lenice retornou à padaria.
_ Nada, mãe! Os dois tomaram chá de sumiço! Onde será que eles estão? Eu tô com um mau pressentimento! Eles nunca saíram daqui sozinhos.
Um breve silêncio... Tina ergueu os olhos.
_ Deus... Nos ajude. Não permita que alguma coisa tenha acontecido com esses anjinhos. São apenas crianças...
De repente, Tina sentiu um arrepio percorrer seu corpo.
_ O banhado... Eles devem ter ido sozinhos até o banhado perto da lagoa. Às vezes brincam lá quando o Juvenal e Arnaldo vão pescar na lagoa.
Teresinha olhou preocupada.
_ Mas o que eles brincariam no banhado? Não tem brinquedo lá, e pode ter cobras.
Eles gostam de cortar e empilhar talos de inhame. Fazem isso dizendo que é lenha. As manas também faziam isso.
Uma ruga de preocupação desenhou-se na testa de Teresinha.
_ Será que eles iriam até lá mesmo? É longe e perigoso. Pode ter tudo que é tipo de bicho naquele banhado...
_ Tu sabe que coragem pra isso os dois têm. Vamos procurar eles!
Tina, a filha e Teresinha saíram da padaria e dirigiram- se até o banhado próximo à lagoa. À medida que se aproximaram, ouviram aos poucos as vozes de Claudino e Valéria, que foram ficando cada vez mais nítidas.
_ Um pedaço pa ti, um pedaço pa mãe, um pedaço po Chico e um pa mim... Não dá pa todo mundo... Temo qui pegá mais um!
_Ali... Ali tem mais um...
_ Vamo pegá... Toca ele pa cá qui eu pego ele! Agola dá pa fazê o nosso anivesáio!
Tina sentiu um misto de alívio e preocupação. Alívio por terem encontrado as crianças, e preocupação com o assunto que Claudino e Valéria estavam conversando.
_ O que esses dois estão brincando, mãe?
_ Eu gostaria de pensar que eles estão dividindo talos de inhame... Vocês faziam isso!
Lenice aproximou-se silenciosamente espiando o que o irmãozinho e a amiguinha estavam fazendo. O olhar surpreso de Lenice mostrou que não eram talos de inhame que estavam dividindo. Sinalizou para que Teresinha e a mãe se aproximassem.
_ Mmmmm... Venham aqui, ver o que estão fazendo. Acredito que a brincadeira é mais séria do que empilhar e dividir talos de inhame...
Ao visualizar as crianças, a surpresa de Tina e Teresinha foi além do normal. Claudino, arregalou inocentemente os pequenos olhos ao olhar para elas:
_ Manhê! Agola dá pa fazê o nosso anivesáio! Tem calne pa todo mundo! Ajuda aqui a levá pa casa? Deu muuuuita calne!
Tina ficou ali, pasma diante da cena inusitada. Entre as duas crianças, sobre uma pedra, uma faca, muitos pedaços de uma carne branca e uma enorme rã nas mãos de Claudino. Ao lado, as visceras e as peles dos animais abatidos.
_Pegamo um monte, mãe... E tem mais aqui! Dá pa convidá o tio Naldo tamém!
Apesar de toda a cena estranha, Tina não segurou o riso.
_ Meu amor... A gente não costuma comer essa carne... Mas valeu a intenção. Não vamos estragar a carne da caçada de vocês. Vamos ajudar vocês a levar pra casa, sim.
Teresinha sorriu.
_ É, Tina... Passar fome esses dois não passariam. O futuro deles promete! Vão ser caçadores... Ou pescadores...

*

Após uma série de gritos, apitos e correria, a voz do Sargento Brackemeyer cortou o ar, na base militar de Santa Maria:
_ Hoje vai ser treinamento pesado. Atenção, tropa! Em forma! Um, dois! Um, dois! Apresentar armas!
Brackemeyer passeou os olhos pela fileira de recrutas. Em uma das fileiras de recrutas, o de número 122 apresentava-se sem fuzil.
_ Recruta 122! Pode me dizer por que está sem fuzil?
_ Me atrasei pra sair do alojamento e esqueci, Senhor Sargento Brackemeyer! Vou pegar!
O Sargento não perdoou o esquecimento do recruta.
_ Tá cansado de saber que todas as salas e os alojamentos estão trancados após a saída dos recrutas. Vamos arranjar um fuzil pra esse animal! Assim nunca mais vai esquecer! Atenção, seu monstro! Quero vinte flexões!
Enquanto Brackemeyer assistia altivamente a punição do recruta, sinalizou para Rudhinski:
_ Cabo Rudhinski! O escamão aqui esqueceu o fuzil ao sair do alojamento, Senhor! Arruma um fuzil "da pesada"pra ele!
Rudhinski esboçou um sorrisinho irônico ao encarar o recruta 122.
_Sim, Senhor Sargento Brackemeyer!
O cabo Rudhinski saiu aos olhares curiosos de todos. O recruta 122 empinou o peitoral e sorriu, com ar de superioridade, cochichando ironicamente ao recruta ao lado:
_ Viu? Vou ganhar um fuzil melhor que o de vocês! Novinho!
Porém, o sorriso morreu em seus lábios ao ver "o fuzil" que Rudhinski lhe trouxera.
_ Aqui está, 122! Eu sei que a partir de hoje tu nunca mais vai esquecer o fuzil!
Rudhinski passeou diante dos olhares pasmos da tropa, entregando ao recruta 122 um tronco de eucalipto verde, recém cortado, de um metro de comprimento e trinta centímetros de circunferência.
_ Aqui o seu fuzil "da pesada", seu batimal! Agora, ao treinamento!
O recruta 122 sentiu as pernas tremerem diante do peso da madeira que Rudhinski lhe entregara.
_ Atenção tropa! Um, dois! Um, dois! Apresentar armas, prestando continência! Alto!
A exaustão logo ficou visível no rosto do recruta 122. O suor escorrendo pelo rosto denunciava o cansaço físico e psicológico. Brackemeyer não perdeu a oportunidade:
_ Está bom o fuzil novo, 122? Vai te refrescar a memória, da próxima vez que der branco na hora de pegar o fuzil!
O rubor subiu às faces do recruta 122. Porém, respondeu com polidez, prestando continência:
_ Sim, Senhor Sargento Brackemeyer!
Brackemeyer retomou o assunto, em frente à tropa, aumentando o tom de voz ao máximo:
_ Que isso sirva de lição para o próximo molenga que esquecer o fuzil antes do treinamento! Entendido?
A tropa repetiu em coro, prestando continência:
_ Sim, Senhor Sargento Brackemeyer!
Miguel, após o ocorrido, rapidamente ergueu os olhos azuis para o céu, agradecendo em pensamento:
_ Obrigado, meu Deus... Obrigado, meu Pai... Ainda bem que só um recruta esqueceu de pegar o seu fuzil! Obrigado, que eu não esqueci o meu!
O pensamento de Miguel foi interrompido pela voz cortante e imperativa de Brackemeyer:
_ Agora, seus molengas! Tratem de ir para o treinamento de campo!
_ Sim, Senhor Sargento Brackemeyer!
_Cabo Rudhinski! Providencie um míssel para o treinamento! E encaminhe a tropa para o treinamento! Precisarão transportar o míssel manualmente por um trajeto de dois quilômetros! Se estiverem numa situação semelhante um dia, já saberão como fazer!
_ Sim, Senhor Sargento Brackemeyer!
Rudhinski esboçou um sorrisinho irônico diante da ordem de Brackemeyer, pois nenhum dos recrutas sabia o que seria o tal "míssel".
_ Agora sim! Vamos ver quem entra no serviço militar pra vencer e quem entra pra torar!
Aos comandos de Rudhinski, a tropa adentrou na mata.
_ Aqui! Esse é o míssel! É todinho de vocês!
Era simplesmente uma tora de madeira com medidas e peso equivalentes a um míssel, que deveria ser transportado inteiro pela tropa, pelo percurso estabelecido, sem quedas.
_ Estamos a dois quilômetros da base! A missão é levar o míssel "com todo cuidado"até a base, em menor tempo possível! As estratégias para cumprir a ordem é com vocês!
Os recrutas entreolharam-se, preocupados. A tora não poderia ser transportada com solavancos, tampouco deixada cair, pois se realmente fosse um míssel, a missão teria que ser cumprida à risca. Rudhinski esboçou um risinho irônico e completou:
_ Realmente, o recruta é que nem fuzil... Só funciona se a gente dá um golpe nele! Ao treinamento, molengas!
_ Sim, Senhor Cabo Rudhinski!










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