Angela estava otimista:
_ Olha, dona Francesca... Mais um pouquinho e estará conseguindo mover as pernas... Se o bondoso Deus permitir, um dia desses vai sair caminhando por aí!
Mary assistia, e não parava um minuto de falar:
_E nesse dia eu vou sair de braço dado com a senhora, como se fosse realmente minha mãe...
A menina parou a frase de repente, pensativa.
_ Sabe o quê? A minha mãe nunca me abraçava...
Uma sombra passou pelos olhos de Mary. Albertina abraçou a menina.
_ Pois aqui, minha pequena, tu vai ganhar muitos abraços e muito carinho... É disso que as crianças precisam pra crescerem fortes...
Angela olhou-a da cabeça aos pés.
_ Precisam de mais do que isso, Albertina... Casa pra morar, roupa e muita comida! Olha como essa menina ainda tá pequena! Vai demorar muito pra crescer.
Mary ficou abraçada à enfermaria , enquanto a fisioterapeuta massageava as pernas de dona Francesca. As vozes e risadas de Albertina e da menina encheram o ambiente de alegria. Os olhos de Francesca brilhavam diante daquela felicidade tão espontânea de Mary, como se fossem agradecer por aquela menina tão parecida com seu filho falecido entrar em sua vida. A menina soltou-se de Albertina, estendeu os braços e saiu andando pelo cômodo, na ponta dos pés, com os braços estendidos.
_ Algumas precisam de mais comida... Muita comida! E eu sou uma ursa... Preciso de meeeeel... Quero muito mel...
Mary andou até Francesca e abraçou-a, colando seus lábios na face da mãe de Pedrinho.
_ Achei uma colmeia inteirinha ... É mel pra vida toda!
A menina, mais uma vez, abre os braços e gira saltitando alegremente. Depois, volta para perto de Francesca e beija-lhe a outra face.
_ Pequena ursa esqueceu esse favo aqui, dona Francesca!
Angela e Albertina entreolharam-se em silêncio. Viram a verdadeira felicidade estampada no rosto daquela criança e de Francesca. Mary não parava...
_ Eu ainda vou estudar bastante pra descobrir um jeito de fazer um tratamento novo pra dona Francesca voltar a caminhar. Aí a gente vai passear juntas pelos mais lindos jardins da Itália!
Albertina lembrou a menina:
_ Pequena ursa ainda precisa cair na "grande cachoeira"lá do banheiro, porque ela vai ter aula depois do almoço!
Angela concordou:
_ Verdade, amada... Responsabilidade também faz crescer!
O rosto de Mary iluminou-se.
_ É mesmo? Então, pra eu crescer rapidinho, vou tomar banho na grande cachoeira, secar o banheiro e colocar a roupa suja no cesto.
Mary foi andando lentamente, na ponta dos pés, com os braços estendidos, em direção ao banheiro. Os olhos de Francesca brilharam redobradamente enquanto acompanharam a figura da menina. Angela não conseguiu segurar um comentário:
_ Sem dúvida, essa era a única medicação que faltava pra dona Francesca!
_ E pra nós também, Angela... Essa menina é um presente de Deus!
_ Quisera Deus que ela realmente consiga estudar e realizar todos os seus sonhos.*
Miguel estava nervoso com a primeira apresentação no CTG. Arnaldo tentou manter o filho tranquilo:
_ Vai ser mais fácil que aquela prova sobre tradições gaúchas que tu teve que fazer pra entrar no CTG.
_ Fala isso porque não tá no meu lugar, pai! O senhor já dançou no CTG?
_ Não. Só nos fandangos que eu e a mãe de vocês íamos antes de tu nascer. Depois a gente nunca mais dançou.
_ Por quê?
_ Olha, Miguel... Fandangos não são exatamente os lugares ideais pra se ir com um nenê...
_ Mas poderiam dançar em casa, pai. A Tina e o Claudio dançam em casa! É tão legal!
_ A tua mãe nunca mais teve gosto pra dançar... E eu respeitei isso nela. Acho que ela...
Miguel baixou os olhos por alguns momentos. Depois, disfarçadamente, pediu:
_ Pai... Me ajuda aqui... Esse tal de nó no lenço no pescoço eu nunca acerto!
Arnaldo notou a tristeza nos olhos de Miguel e sentou-se diante do filho.
_ Me diz uma coisa, Miguel... Tá com saudades da mamãe?
Mais uma vez, Miguel sentiu uma sombra passar pelos olhos. Seus movimentos para tentar arrumar o nó no lenço denunciavam seu nervosismo. Arnaldo ajudou o filho a ajeitar a indumentária.
_ Paiê... Tô com saudades da mana... Eu gostaria de saber onde ela tá... Se ela é feliz... Se ela também dança...
Arnaldo, mais uma vez, teve que superar a tristeza de viver longe da filha para dar força para Miguel. Conduziu o assunto à parceira de dança do filho.
_ Vamos até a casa do Claudio agora. Será que a Lenice já tá pronta?
_ Claro que deve tá, pai! As manas nunca se atrasam!
_ Então, vamos até lá? O Claudio vai levar todo mundo pra assistir a estréia de vocês.
Miguel pôs o chapéu de aba larga e comentou:
_ O tio Claudio comprou um chapéu igualzinho pro Francisco... Ele e a Lenir ainda não vão apresentar dança hoje. Os novos vão só assistir. Eles precisam fazer a redação sobre tradições gaúchas antes de se apresentar a primeira vez.
_Vamos? O Claudio deve tá esperando a gente.
Tina entrou na cozinha e encontrou Claudio remexendo no armário das ervas medicinais.
_ Tá procurando que chá? Algum problema?
_ Uma dorzinha de cabeça, que tá me incomodando desde ontem... Já tomei até comprimido e não tá resolvendo...
_ Será que é por causa do estômago? Tomou teu remédio de manhã cedinho?
_ Tomei sim. Tem alguma coisa aqui que poderia acalmar essa dor?
_ Tem, mas deveria ir no médico, pra saber de onde vem essa dor. Pode ser uma coisa mais séria!
Claudio olhou sério para a esposa.
_ A única coisa séria que eu tenho é esses malditos pólipos no estômago! Essa dor de cabeça deve vir desse problema!
_ Tem tintura de mil em rama aqui. Ela é boa pra dores de cabeça que vêm de problema de estômago. Mas quero que procure um médico.
_ Semana que vem eu vou. Hoje quero ver minha princesa dançar... Estão todos prontos?
_ As manas estão se arrumando. Vou ver se precisam de ajuda.
_ Não quer ir mesmo assistir?
Tina abraçou Claudio.
_ A Teresinha não tá muito bem, e aí nós vamos ficar aqui... Assim eu termino a encomenda da festa de aniversário da filha do Sr Raymundo. É amanhã... Lembra? Tem que entregar cedinho na Associação dos Motoristas.
_ É mesmo! Não vamos ficar até muito tarde no fandango. Só até as crianças se apresentarem! Quando a gente voltar, trato os bichos, tiro leite e te ajudo a terminar os doces e salgados da festa.
_ Essa tarde vai ser especial pras crianças. Divirtam-se! Deixa que eu e a Teresinha terminamos a encomenda. Te amo...
_ E eu vou ver se o Juvenal e o Francisco estão prontos. O Arnaldo e o Miguel também já devem tá chegando. Hoje a caminhonete vai cheinha!
Lenice e Miguel estavam apreensivos com a apresentação. Claudio logo tratou de acalmar as crianças:
_ É só vocês relaxar e confiar no que aprenderam nas aulas de dança. Vai dar tudo certo.
Lenice abraçou o pai.
_ O que eu faria sem meu paizinho?
Claudio olhou para a filha e brincou:
_ Olha... Eu vou tá sempre com vocês... Até no dia que o Papai do Céu me levar, eu vou tá sempre pertinho, pertinho. Vou fugir do céu e vir assombrar vocês!
A gargalhada foi geral. Estava vencido o medo da apresentação. O grupo no qual Lenice e Miguel dançaram foi perfeito. Lenir e Francisco ficaram com Juvenal, Arnaldo e Claudio, na plateia.
_ Parece até que foram feitos pra dançar! Meus parabéns à professora de dança do CTG!
Após a apresentação, todos os dançarinos voltaram à presença das famílias.
_ Depois dessa dedicação toda às nossas tradições, vocês merecem um prêmio:
_ Prêmio? Obbba!
_ Todos estão convidados pra comer um sorvete. Topam?
As crianças responderam em coro:
_ Topamos!!!
Arnaldo olhou para Juvenal e completou:
_ Nós também topamos, né?
_ Então, todos ao sorvete! E depois, pra casa! A dona Teresinha e a Tina devem estar correndo pra terminar aquela encomenda pra festa de aniversário. Amanhã cedinho preciso levar tudo lá!
Domingo... A caminhonete de Claudio estava lotada de quitutes e delícias a serem entregues nas dependências da Associação dos Motoristas de Igrejinha.
_ Só falta o Juvenal, que vai comigo até a Rádio Comunitária pra estrear seu programa. Deus é muito bom, Tina. Ele deu ao Juvenal uma chance de recomeçar, em todos os sentidos. Vai ter um filho, vai ser independente com a prótese e vai trabalhar num emprego que ele tanto...
Claudio parou de falar de repente... Apoiou-se na caminhonete e pôs a mão na cabeça.
_ Uma tontura... E essa dorzinha chata...
_ Se tu não estiver bem, não vai... Ou chama o Arnaldo pra dirigir. Ele tem carteira de motorista.
_ Bem capaz! Esse osso aqui é duro de roer! Vou comer uma fruta... Devo ter comido pouco no café da manhã...
Enquanto Claudio colhia e descascava uma laranja, Juvenal aproximou-se.
_ Meu amigo! Tô tremendo feito vara verde! Não sei se vou me sair bem na rádio!
_ Calma, homem... Venha comer uma fruta também. Me deu uma coisa esquisita... Acho que é fome... Vou até levar umas laranjas na caminhonete. Vai que bate essa tontura de novo...
Após colocar algumas laranjas no carro, os dois homens tomaram o rumo da cidade até as dependências da Rádio Comunitária.
_ Boa sorte, Juvenal! Vou fazer as entregas da festa da filha do seu Raymundo e volto pra casa. Antes do almoço venho te buscar. Pode ser?
Juvenal brincou:
_ Se eu estiver vivo até lá. Tô quase infartando de norvoso!
_ Não brinca com isso, homem... Deus não precisa de mais anjos... O céu já tá lotado! Vai... Entra nesse estúdio, e bota todo teu carisma na voz, pois o que tu transmitir será só o que os ouvintes vão sentir ao te escutar!
Juvenal abraçou o amigo, com um sorriso confiante.
_ Se tu não fosse tão grande, eu te diria que tu é um anjo, meu amigo! Mas com todo esse tamanho, é impossível. Anjos tem que ser pequenos e delicados!
Claudio sorriu:
_ Vou tentar ser um anjo grandão, então... Pois meu lema sempre foi:"fazei o bem, sem olhar a quem"!
Claudio entregou as encomendas da padaria e retornou ao domicílio. Foi diretamente até o armário de chás. Tina mostrou-se preocupada:
_ Não está te sentindo bem de novo?
_ Não... Tô ruim... De novo senti aquela dorzinha chata e outra tontura...
_ Tem que procurar saber o que é... Precisa consultar um médico... Talvez, se for até o hospital, eles te atendam!
_ Vou ver se consigo ir essa semana. Agora vou tomar alguma coisa pra acalmar essa dor e depois vou dar uma olhada nos bichos. Tratei eles hoje cedinho, mas não sei se o Geleia não tá aprontando... Esse potrinho tá arrisco demais. Preciso amansar ele um pouco, ou vai acabar machucando uma das crianças. Antes do almoço vou buscar o Juvenal na rádio. Pena que não pegamos sinal da Rádio Comunitária aqui. Tô curioso pra saber como se saiu.
_ E eu vou chamar as manas, pra tomarem café e me dar uma ajuda no almoço.
Tina acordou as filhas e começou os preparativos para o almoço de domingo.
_ Se vocês quiserem descer até a cidade com o pai, pra buscar o Juvenal, primeiro vão tomar café e organizar o quarto de vocês. Ele vai buscá-lo na rádio antes do meio-dia.
_ Iebbbba! Vamo chamar o Francisco pra ir com a gente!
_ Epa! Epa! Epa! Primeiro, tomar café um reforçado e organizar o quarto!
As meninas correram da cristaleira até a despensa, a fim de servir um café reforçado. Tina olhou-as com o rabo do olho e deu uma risadinha:
_ É assim que eu gosto... Quem dera fossem rápidas e práticas assim sempre.
Assim que Claudio voltou da baia do Geleia, Lenir já foi puxando uma cadeira e pulando no colo do pai.
_ Aqui, paizinho... Senta aqui, meu paizinho... Precisa descansar! Aí, eu aproveito e te dou um abraço...
Claudio estranhou:
_ Ué... Vocês só vem desse jeito quando querem alguma coisa do pai... Posso saber o que é, dessa vez?
Lenice abraçou o pai.
_ A mãe disse que, se a gente organizar o quarto, podemos ir junto buscar o Juvenal na cidade!
Claudio olhou para as filhas interrogativamente:
_ Tá... E organizaram o quanto? Posso conferir?
Lenice bateu continência em frente ao pai:
_ Tudinho no seu devido lugar, capitão!
_ Deixa só eu tomar um banho e descansar um pouquinho. Essa dorzinha de cabeça ainda tá me incomodando...
_ E nós vamos lá chamar o Chico, pra ir com a gente!
As meninas foram até a casa de Teresinha, para convidar Francisco.
_ Chico! O nosso pai vai buscar teu pai na rádio! Quer ir junto?
_ E precisa perguntar?
Claudio foi ao banho. Ao sair do banheiro, uma nova tontura obrigou-o a sentar-se. Tina, que o observava à distância, comentou:
_ Se tu não estiver bem, vai pedir pro Arnaldo buscar o Juvenal. Ele não vai te negar esse favor!
Claudio ficou em silêncio por alguns momentos. Levantou-se lentamente, pegou a chave da caminhonete e saiu.
_ Tu não vai esperar as crianças?
O barulho do motor da caminhonete denunciou que Claudio não escutara as palavras de Tina nem esperara as filhas, pela primeira vez na vida.
_ Alguma coisa não tá bem... Ele, em seu estado normal, jamais sairia sem as filhas, tendo prometido pra levar elas.
Naquele momento, as meninas e Francisco entraram na casa, desolados:
_ O pai já foi? Ele nunca sairia sem esperar a gente... O que será que deu nele?
Tina concordou:
_ Também pensei nisso... Muito estranho mesmo...
A mulher tentou transmitir uma calma que ela não tinha naquele momento.
_ Depois, meus amados, quando ele chegar, a gente pergunta o que aconteceu. Vão brincar um pouquinho, tá? Vou terminar a salada. Até lá, eles chegam e vamos almoçar. Já tá tudo pronto.
Duas horas da tarde... O almoço já estava pronto no fogão à lenha a horas, e Claudio ainda não retornara da cidade. Juvenal apareceu na soleira da porta.
_ Cheguei agora a pouco em casa e a Teresinha me falou que o Francisco foi com o Claudio pra cidade. Estive esperando ele me buscar mas não vinha nunca... Aí, um outro locutor da rádio me trouxe em casa. O Claudio ainda não saiu daqui?
Tina ficou branca de repente. Um pressentimento ruim fez a mulher segurar-se.
_ Ele foi... Faz tempo... Estranhei... Ele ia levar as crianças... E saiu sozinho...
Juvenal ficou sério:
_ Mas então... A senhora acha que...
_ Ele me falou que não tava se sentindo bem... Talvez ele tenha ido até o hospital, pra tentar consultar... Até pedi pra ele...
Juvenal, diante da possibilidade do amigo ter passado mal e estar no hospital, resolveu:
_Vou dar um jeito de voltar até a cidade, e ir até o hospital... Se ele não puder dirigir pra voltar, dou um jeito... Mesmo com um olho só, numa emergência pra ajudar um amigo, tudo vale! Fui caminhoneiro durante anos!
Após a saída de Juvenal, as crianças entraram correndo.
_ Ué... Não ouvimos a caminhonete... E o pai do Chico já voltou...
Tina, infelizmente, teve que falar para as crianças sobre sua preocupação com o marido.
_ Acho que o papai não tava bem, e foi procurar um médico...
_ O paizinho vai voltar logo, mãe! Ele ama a gente!
Seis horas da tarde... Juvenal voltou da cidade com um carro de aluguel. Tina, ao ver o amigo vir sozinho, ficou trêmula.
_ E o Claudio? Não achou ele no hospital? De manhã, quando saiu, não tava nada bem...
Juvenal baixou o tom de voz, como se quisesse esconder das crianças a informação.
_ Sim... Ele tá no hospital.
_ Então? Ele passou mal e foi consultar, não é? Ele tá melhor?
Juvenal não sabia como dar a notícia... Porém, após um longo silêncio:
_ Tina... Ele tá lá no hospital sim... Mas não foi bem assim... Ele sofreu um acidente... Os médicos falaram que foi resgatado dentro da caminhonete... Parece que ele desmaiou na descida da ladeira que desce atrás do campo de futebol de Igrejinha... Bateu num carro estacionado... Deu perda total nos dois carros...
Tina cobriu o rosto com as mãos...
_ Nãããão!!! O Claudio não!!!
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INFÂNCIA ROUBADA
RandomHistória baseada em fatos reais. ALERTA DE GATILHOS: contém violência, abusos, suicídio e morte. Não indicado para menores de 18 (dezoito) anos e/ou pessoas sensíveis aos assuntos abordados. Miguel e Mary são duas crianças, irmãos... Após a tenta...