_ Cadê a mana, pai?! E a mãe?!
Arnaldo encontrou a casa vazia. Mas não era surpresa...Apenas os poucos e simples móveis que tinham compunham a cena, em seus olhos marejados.
_ Acredito que saíram, Miguel. Vamos fazer uma surpresa pra elas, fazer um almoço supimpa!
Arnaldo e Miguel não faziam ideia do motivo do silêncio na casa. Foram até os quartos e viram que as roupas deles não estavam mais lá.
_ Que estranho... Onde estão nossas roupas?
Arnaldo e Miguel não faziam ideia de que Irene tinha queimado as roupas deles.
_ Vai ver que a mamãe deu nossas roupas pras pessoas pobres lá da cidade... Aquelas que moram embaixo da ponte.
_ Não sei, Miguel. Temos essas que o pessoal do serviço social do hospital arrumou pra gente. Amanhã vou até o armazém do seu Dorvalino e compro umas bem baratinhas. Agora, vou ver como estão as lavouras. Depois de tanto tempo, o mato deve ter tomado conta de tudo, ainda bem que temos trator pra lavrar.
_ O que possa fazer, pai? Quero ajudar... No hospital me deixaram forte!
_ Não, Miguel. Você precisa começar devagar... Até porque, se sentir alguma coisa diferente, como tontura, ou a sensação de ter umas formiguinhas debaixo da pele, ânsia de vômito ou os olhos embaçados, é sinal que tua glicose tá alterada. Aí temos que medir...
Arnaldo mostrou o glicosímetro, um aparelhinho que o menino achou engraçado no hospital... No princípio, chorava ao furar o dedinho, mas decidiu que deixaria o pai fazer a medição da glicemia.
_ Hoje vamos arrumar tudo aqui. Você me ajuda a fazer uma coisa bem apetitosa para o nosso almoço?
_ Eeeeebbbba!!! Ainda quero ser um grande cozinheiro!!!
_Então, a cozinha é nosso navio, marujo! Vamos navegar em um oceano de sabores !
_ Sim, capitão!
Miguel bateu continência! Ele amava quando o pai encarava a realidade com imaginação...
Arnaldo notara que não tinha mais galinhas no curral das galinhas, e que o chiqueiro estava vazio também. Mas ele já sabia o destino dos animais... O vizinho Plínio já lhe falara que Irene vendeu-lhe porcos e galinhas porque precisava de dinheiro. Tentou não pensar em Irene, pois ela levara Mary...
_ Pobre Mary... Minha pequena nega...
Baixou os olhos e escondeu o choro, para. que Miguel não notasse.
_ Amanhã de manhã vou até a casa do Plínio e vou comprar de volta ao menos um porquinho umas cinco galinhas e um galo. Assim a gente recomeça nossa vida.
_ Quero ajudar...
_ Combinado! As galinhas e o porquinho serão de responsabilidade tua. Mas agora, marujo, içar as velas... E remar nas panelas!!!
_ Eeebbbba!!!
Como era fácil conviver com o pai... Ele não fazia o drama que a mãe costumava fazer... Sempre tinha uma resposta positiva, ou tentava encontrar uma...
_Depois do almoço meu imediato vai secar a louça, né?
Arnaldo olhou para Miguel e piscou. O Dr Nelson orientara Arnaldo a não deixar Miguel sozinho nos primeiros dias, pois seu quadro agora exigia cuidados... Tanto pelo controle psicológico sobre o movimento das pernas, como pelo controle da glicemia.
_ Filho! Fiquei muito triste quando me contou que a mamãe estava esperando um nenê que não é meu... Que iriam embora...
Arnaldo baixou os olhos marejados, tentando esconder o tamanho da decepção que sofrera. Depois de um longo silêncio, meneou a cabeça como se quisesse afastar as más lembranças...
_ Mas você está aqui comigo, marujo!!! E o capitão aqui vai atravessar sete mares pra te cuidar, até que você fique grande e forte como eu!
Miguel abriu um sorriso e jogou-se nos braços estendidos de Arnaldo.
*
_ Que casa grandona, mãe!! Parece um castelo!
Olhando para todas as direções da casa, Mary arregalou os olhinhos para ver onde estava indo.
_ Me sinto a Maria, da história de Joãozinho e Maria... Essa casa é enorme como a floresta da história deles!
Mary parou em frente a um enorme quadro na parede. Nunca tinha visto tão grande...
_ Será que aqui moram gigantes?
Parou pensativa, pois lembrou que na história de Joãozinho e Maria tinha uma bruxa. Olhou com o rabo do olho para Irene...
_ Não... Acho que não.
Alguns dias atrás, ao dormirem no mato, ou nos momentos de raiva de Irene, até poderia ver Irene como uma bruxa. Porém, agora Irene caminhava com elegância, empinando o peito... Veio-lhe novamente à mente a imagem do pavão do dindo Tonho.
_ Porque me olha assim, guria?
_ Nada não, mãe...
_ Essa é a casa do Valderez. Ele é muito rico! Ganha muito dinheiro vendendo adubo. Vamos ter vida de rainhas aqui! Vou realizar meus sonhos de ficar bonita...
Irene se ria toda, feliz feito pinto no lixo.
_ Mas tu já é bonita, mãe!
_ Quero ser mais! Muito mais! Primeiro, comprar roupas chiques, e me livrar desses trapos! Depois, vou fazer umas plásticas... O Valderez tem dinheiro pra tudo isso, e prometeu me pagar tudo!
_Plásticas?
A imaginação de Mary não demorou a surtir efeito, lançando em sua mente e imagem da mãe toda enrolada em tiras plásticas, feito uma múmia, rebolando como o pavão do dindo Tonho...
Mary tapou a boca para não rir na presença de Irene. Continuou seguindo ao lado de Irene, ao longo do corredor que levava aos quartos.
_ Tu vai ter um quarto enorme só pra ti, aqui nessa casa. E vai ter muita coisa que não tinha naquele pulguedo!
_ Mas eu gostava do meu quartinho, e do meu mano, e...
Mary ia falar do pai, mas parou ao notar o olhar incisivo de Irene, como se quisesse dar um tapa na boca da menina com um simples olhar.
_ E aí, menina bonita? Vamos conhecer teu quarto?
Era Léo, correndo com um skate colorido pelo corredor.
_ Olha isso, princesinha! Dá pra sair voando! E não cansa!
Mary olhou espantada a agilidade de Léo no skate. Sentiu medo daquele brinquedo, e lembrou do carrinho de lomba do Miguel. Baixou os olhos, marejados... A saudade do irmão...
_ Aqui eu durmo. Esse é o meu reino, princesinha!
Léo abriu a penúltima porta do corredor. De pé diante da porta aberta, Mary conseguiu ver dezenas de brinquedos jogados pelo quarto. Coisas que nem pensava existir...
_ E aqui ao lado, princesinha, será o teu reino! Se precisar de um nobre cavalheiro, estarei aí num zás trás!
Mary olhou o quarto onde dormiria... Era enorme! Parecia um salão... Irene não perdeu tempo:
_ Tá vendo o que é ter dinheiro? Bem diferente daquele véio pé-rapado do teu pai! Aqui sim, que nós vamos ter vida boa!
Mary baixou os olhos e sentou-se sobre a enorme cama, segurando o pequeno embrulho de roupas que trouxera.
_ Não te preocupa com esses trapos! Amanhã o Valderez vai nos levar nas lojas mais chiques daqui... E vamos te colocar numa escola nova. Não vai nunca mais naquele coleginho onde parece que todo mundo é irmão. Odeio quando têm aquelas festinhas de fim de ano e toda aquela gentalha suada e fedorenta chega junto pra comemorar o Natal e pegar boletim. Agora somos da alta!!!
Mary lembrou-se do irmão... Será que ele já estava melhor? E como ele ficaria, sem Mary? E pior, como ficaria ela, sem Miguel?!
_ Eu quero meu mano...
_ Teu mano agora é o Léo! Ele não é aleijado, nem é cria do diabo, como teu irmão!!!
Irene ainda não perdoara Miguel por ele ter cortado a corda onde Arnaldo tentara tirar a própria vida. Para ela, seria mais fácil bancar a viúva diante do povo do vilarejo.
_ Miguel vai ficar bom, mãe! Eu sei! Eu sinto!
_ Vai nada! Aquele aleijado deveria ter é morrido quando caiu do cinamomo!
Mary baixou os olhos e sentou-se num cantinho do quarto, onde tinha um pequeno baú. Nunca ficara tanto tempo longe do irmão.
_ Venha, vou te dar um banho. Aqui temos cozinheira e hora pra almoçar...
O almoço transcorreu normalmente. Valderez, com voz altiva, anuncia...
_ Vai estudar na mesma escola que Léo estuda. Assim, podem usar o mesmo transporte. Ainda hoje levarei vocês para conhecer a escola.
Mary caminhava segurando a mão de Irene, no corredor da escola nova. Enormes salas e crianças agrupadas no pátio... Algumas a olhavam com curiosidade... Outras davam risadinhas...
_ Porque estão rindo, mãe?
_Deve ser inveja! Somos novas aqui... E ricas, agora...
Irene estava à procura da secretaria da escola, a fim de efetivar a transferência de Mary...
_ Que cheirinho bom, mãe!
Era o cheiro do lanche dos alunos, que tinha sido preparado caprichosamente pela Dona Teresinha, cozinheira de mão cheia da escola.
_Tô com fome!
_ Mary! Tu acabou de almoçar! Não pode ter fome ainda!
Mary olhou para a porta da cozinha e viu Dona Teresinha, que acenou com um sorriso meigo para Mary... Foi como que atraída pelo olhar bondoso da cozinheira que parecia chama-la ... Andou em direção à ela e deu de frente com um menino de pele e feições iguaizinhas às da Dona Teresinha.
_Francisco! Presta atenção onde anda, guri! Esse guri não para quieto na sala de aula! Faz as tarefas rapidinho e não sossega... Tem que andar pela escola inteira!
Mary encarou o menino... Suas feições expressavam algo estranho e diferente... Não sabia o que era, mas sentiu que Francisco era diferente...
_ Perdoe meu filho, senhora. Ele foi diagnosticado com Transtorno de Espectro Autista... Não pára nem amarrado! Conseguimos uma bolsa de estudos pra ele nessa escola porque eu trabalho aqui.
O sorriso largo de Francisco demonstrava que ele confiara em Mary. Normalmente não parava diante de pessoas que desconhecia... Normalmente se isolava em um cantinho qualquer, tamborilando os dedinhos sobre alguma superfície qualquer, olhando para o vácuo...
_ E não repare não se ele não conversar contigo... Ele começou a falar só com 4 anos. Antes enrolava tudinho e não dava pra entender uma palavra que dizia.
Mary olhava com atenção para aquela bondosa senhora... Imaginou-a em sua casa, fazendo guloseimas... E imaginou Francisco"beliscando"as guloseimas... Seus olhinhos brilharam quando, de repente, Dona Teresinha ofereceu-lhe um bolinho de aipim que acabara de fritar... Timidamente, retraiu-se, pois Irene não gostava que a filha aceitasse nada de estranhos.
_ Pode comer, meu anjo... E a mamãe também pode provar.
Dona Teresinha estendeu o prato com deliciosos bolinhos de aipim, levemente douradinhos...
_ É assim que eu gosto dos bolinhos... Douradinhos... Mmmmm!!!
_ Fique à vontade, senhora! Eu vou lembrar o Francisco que ele precisa voltar para a sala de aula. Ele tem umas ideias próprias que não tira da cabeça nem de arrasto e arruma atrito com as outras crianças. Aí trago o caminhãozinho dele, que é a paixãozinha dele, e ele fica brincando aqui num cantinho... Faz parte do autismo... Crianças com esse probleminha normalmente são assim...
Mary reparou que Francisco se isolara em um cantinho da cozinha, com seu caminhãozinho... Parecia até que ele era o único ser na face da Terra. Dona Teresinha teve que lembrá-lo da sala de aula...
_ Vamos, Francisco!A professora já foi pra sala de aula! Já pra sala!
O olhar tímido de Francisco saiu do caminhãozinho, indo parar em Mary... Porém, ao som da voz de Dona Teresinha, baixou-se...
_ A sala de aula, Francisco!
_ Sim, mãe!
_ Vou conduzir a senhora e sua filha até a secretaria da escola, dona Irene. Agora já está no horário de atendimento da secretaria.
Dona Teresinha estendeu a mão até Mary...
_Vem, amada... Vou levar você e sua mamãe até as tias que fazem a documentação dos alunos.
Mary olhou a mão morena de Dona Teresinha, onde encaixou suavemente sua pequena mãozinha... Uma sensação de paz profunda apoderou-se de Mary, pois o simples contato sincero e carinhoso lembrava-lhe o pai...
_ Aqui, senhora... Atenderão vocês em breve. Só aguardar...
_Obrigada.
Documentação e perguntas de praxe... Logo estava efetivada a entrada de Mary na escola.
_Sei que hoje ela não trouxe material escolar, mas vou encaminhar Mary para a sala de aula. Assim já conhecerá a professora e os colegas. A senhora pode nos acompanhar até lá, se quiser.
Mary segurava temerosa a mão da secretária, pois não sabia como era a professora, tampouco seus colegas...
_ A aula encerra às dezessete horas, senhora. O Dr Deonizio, o porteiro, ficará até às dezessete e trinta...
_ Sim, sim... Vamos buscar ela logo depois das 5.
_Agora, minha pequena, aqui será sua sala.
A secretária abriu a segunda porta do corredor de salas de aula... Mary sentiu um tremor nas pernas, pois era tudo muito novo para ela. Em pouco tempo, sua vida mudara totalmente... E agora, uma escola nova... Colegas novos...
_ Professora Mara! Esta é Mary, nossa nova aluna. Ela veio da Escola Olavo Bilac, do vilarejo de Linha Café, e vai frequentar essa classe...
_ Olha!!! Teu nome é quase igualzinho ao meu!!! Vamos nos dar muito bem! Seja benvinda, Mary!
A secretária deixa Mary aos cuidados da professora Mara e retoma o corredor, a fim de conduzir Irene até a saída. A professora apresenta Mary à classe...
_ Esta é Mary... Ela vai estudar com vocês. Ela é de Linha Café.
Um garoto esguio de cabelos ruivos não perdeu tempo...
_ Linha Café? Então, vai fazer par com o"cafezinho"aí...
Até então, Mary não tinha observado os colegas da classe. Olhou na direção que o garoto estendeu a mão ao fazer a piada... Seu olhar encontrou os olhos negros de Francisco, timidamente sentado no cantinho da sala...
_ Francisco!
Os olhos de Mary se iluminaram, pois a figura dele inspirava a mesma paz que Dona Teresinha lhe inspirava...
_ Já se conhecem?
Mara estava surpresa... Olhou para Francisco, que baixou os olhos...
_Então , se já se conhecem, o que você acha de dividir tua carteira com Mary? Faremos um teste de alguns dias, para avaliar a adaptação...
Mara estava esperançosa, pois normalmente Francisco , devido ao seu pequeno grau de autismo, tinha dificuldades de concentração... Por alguns momentos, saía da carteira, porta afora, "visitar"o diretor Sr Júlio, ou Dona Teresinha, na cozinha... Depois, voltava à carteira...
_ A dupla"Café com leite"!
Lauro, o garoto ruivo, não perde tempo e faz outra piada. Francisco já conhecia as piadas de Lauro referentes à sua cor, porém, sabia que não poderia brigar e calou-se.
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INFÂNCIA ROUBADA
RandomHistória baseada em fatos reais. ALERTA DE GATILHOS: contém violência, abusos, suicídio e morte. Não indicado para menores de 18 (dezoito) anos e/ou pessoas sensíveis aos assuntos abordados. Miguel e Mary são duas crianças, irmãos... Após a tenta...