10 - Irene leva Mary

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_ Sr Arnaldo, se o Miguel evoluir assim, em breve terá alta... Talvez em uma semana de testes, o Sr e o Miguel poderão ir para casa. Só temos que avaliar como fará o controle da glicose em casa... Aqui no hospital a gente tem um controle mais rigoroso. Vamos ver como o organismo dele reagirá se simularmos uma situação caseira.
_ Explique melhor, Dr.
_Vamos deixar de dar insulina para ele e observar a reação do organismo do Miguel... O Sr acompanhará todo o processo, para aprender a superar reações diversas que a baixa ou alta de glicose gera no paciente.
Arnaldo não quis perguntar mais, mesmo que tivesse dúvidas, mas resolveu confiar no médico e em Deus.
_ Pode contar comigo, Dr! Vai dar tudo certo... Eu confio em Deus!
A madrugada encontrou Miguel suando frio. Estava pálido e delirava...
_ Mary... Mary... Não vai embora não... Papai e eu precisamos de ti... Não vaaaaaai.... Maryyyyyy!!!
Seus gritos despertaram Arnaldo do cochilo na cadeira, em frente à cama de Miguel ...
_ O que aconteceu Miguel? Tu tá branco! E gelado!! Vou chamar alguém!
_ Mary tá indo embora, pai... Ela tá indo embora, pra não voltar nunca mais... Eu vi... Tentei segurar ela... Não consegui...
Arnaldo chama o serviço de erfermagem.
_ O Miguel não tá nada bem, enfermeira! Está delirando!
_ Calma, pai... Vamos medir a glicose dele.
A enfermeira, agilmente, furou o dedinho mínimo de Miguel.
_ Só uma gotinha de sangue e vamos ver isso...
O tremor sacudia o corpo inteiro de Miguel, sentia a cabeça rodar e doer... Ouvia o pai chamando, mas parecia que ele estava a quilômetros dali...
_Glicose em 25!!! É muito baixa!!! Miguel está em convulsão! Temos que subir essa glicose imediatamente!! Preste atenção, Sr Arnaldo, no que vamos fazer... Em uma circunstância em casa, isso pode acontecer. Nesse caso, se não tiver outra maneira, faça o Miguel ingerir açúcar.
Miguel continuava chamando a irmã, em delírios. O pai, apavorado, ficou estático...
_ Vamos, Sr Arnaldo!Ajude! Estávamos aguardando os sintomas que as mudanças de glicose farão no Miguel em casa, agora preciso ensinar o que fazer em uma situação dessas em casa!
Arnaldo estava imóvel.
_ Açúcar, aqui! Em casa nem sempre terão recursos médicos, por isso, deverão sempre ter açúcar à mão... Isso poderá salvar ele até da UTI.ç Uma convulsão pode acarretar sérios danos ao cérebro, por isso não devemos esperar, e sim, agir!
Após ingerir uma pequena quantidade de açúcar, Miguel começou a voltar ao normal.
_ Vamos, meu pequeno guerreiro! Esse é o começo de uma longa caminhada... Não serão só tuas pernas que precisam de cuidados especiais, mas também o resto! Em uma semana, se tudo correr conforme o esperado, vocês voltam para casa. E podem deixar que avisaremos sua esposa de que estão voltando.
Arnaldo encarou a profissional de saúde sem coragem de dizer que na certa Irene não estava à sua espera...
_ Mary... Minha nega... Que saudade da minha meninota...

*

Os primeiros raios do sol pegaram Irene inquieta. Andava de um lado a outro, acendendo um cigarro após outro, arrumando algumas roupas de Mary em uma sacola.
_ Mary! Vamos arrumar nossas roupas... Só vamos levar as roupas boas, o resto a gente compra na casa do Valderez! Ele vai nos buscar daqui a meia hora. Vamos sair desse pulguedo e morar na cidade, com o Valderez e o Léo!
_ Quem são eles, mãe?
Irene baixou-se frente a Mary, soltou lentamente a fumaça do cigarro no rosto de Mary... A menina tentou respirar normalmente, mas acabou engasgando.
_ O Valderez é o vendedor de adubos de quem eu falei, e Léo é o filho dele... Ele vai ser teu novo papai.
_ Não quero um novo papai! Quero o meu paizinho!!!
Mary, mais uma vez, não segurou o choro... Não entendia as escolhas da mãe.
_ E porque eu tenho que ter um irmão novo?! Eu quero é ficar com o Miguel, e com o meu paizinho!
_ Tu não tem nada que dar palpite!!! Eu sou grande e tu é pequena! Eu tô certa e tu tá errada! Tu tem que me obedecer! Aqui, eu sou Deus!!!
_ Mas mãe... O meu paizinho sempre me ensinou que nada se compara a Deus... E que Deus sempre em primeiro lugar, e acima de todos!
A essas alturas, Irene já bufava; odiava ser contrariada.
_ Como ousa falar daquele véio?! Ele não tá mais aqui e não vai voltar! Nós vamos morar na cidade, tu vai ter roupa bonita e brinquedos novos!
_ Não quero roupa bonita nem brinquedos... Quero minha roupa, meus ossos de aviãozinho, meu paizinho e meu mano!!!
_Vou te mostrar quem manda aqui! Vai lá fora e tira uma vara do pé de marmelo!
Mary saiu tremendo de medo... Suas magras mãozinhas não conseguiam quebrar o galhinho do marmeleiro. Desatou a chorar; sabia que levaria o dobro de uma surra normal, se não conseguisse trazer a varinha.
_Odeio crianças que respondem! Aliás... Odeio crianças!!! O mundo seria muito melhor se crianças não existissem!!! Ainda bem que eu nunca fui criança...
Mary olhou para Irene sem entender. Como teria ela vindo ao mundo? Sua imaginação foi a mil... Imaginou diversas opções de chegada da mamãe ao mundo.
_ Será que mamãe é um ET?
Não... Seres extraterrestres, na certa, eram amáveis e carinhosos. E tem olhos puxadinhos... Olhou para os olhos arregalados da mãe.
_ E se a mamãe foi feita por algum cientista maluco?
Mary, apesar de apenas ter seis anos, já tinha ouvido falar no tal Frankenstein, e imaginou a mãe originada da junção de vários pedaços de corpos... Não conseguiu escondeu a vontade de rir.
_ Precisa de ajuda, sua inútil?!!
_ Não consigo quebrar...
O olhar gelado de Irene fez Mary sentir um arrepio... Os soluços já subiam pelo corpinho minguado de Mary. Ela já pressentia o terror que estava por vir...
_ Tu também não serve pra nada!! Igualzinha ao véio e teu irmão!!! Ainda bem que vamos sair daqui logo!
Irene saiu porta afora, enraivecida. A faca de corte de carne em suas mãos deixaram as perninhas de Mary tremendo... A expressão colerizada de Irene a apavorava.
_ Vou te ensinar como me obedecer...
Tirou uma haste comprida, com folhas e tudo. Largou a faca, puxando Mary pelo braço, e a garotinha, em um gesto de defesa, cobriu a região das nádegas com as magras mãozinhas.
_ Vai ser pior se tu botar as mãos. Quebro a vara na tua bunda! Vai ficar que nem tomate! E não traz teu Deus aqui pra dentro da minha casa, porque aqui EU sou Deus!!!
Mary levou a surra, mas seu choro não foi só de dor, mas sim, também de revolta, pois o pai sempre lhe ensinara que nada no mundo é maior que Deus...
_ E não chora que é pior!! Vai apanhar calada! Sem barulho... Assim não chama a atenção dos vizinhos!
Mary sentia-se violada e roubada... Violada por não poder escolher ficar com o pai e o irmão. Roubada, porque, de certa forma, Irene estava roubando seu direito de ser criança.
_ E nenhuma palavra dessa surra pra ninguém, sua pirralha!!!
O barulho do carro de Valderez abafou a discussão. Mary enxugou os olhos e Irene, quase que milagrosamente, começou a falar de maneira mansa e carinhosa com Mary.
_Olha... Daqui em diante somos gente fina, da cidade. Gente que fala mansinho, se veste com roupa bonita sempre...
_ Eu vou ser sempre eu!!
_ Ahhhh, Mary... Tu, de agora em diante tem que caminhar que nem menina da cidade, assim...
Irene deu uns passos "rebolando", porém Mary achou engraçada a maneira da mãe caminhar... Parecia um dos pavões que vira na casa do dindo Tonho, rebolando as penas do rabo pra lá e pra cá. Tapou a boca com as mãos para não rir.
_ Tem alguém aí?
Eram Valderez e Léo, o filho de doze anos.
_ Estamos quase prontas... Não vejo a hora de sair daqui, e deixar tudo para trás!
Léo olhou Mary da cabeça aos pés... Subiu os olhos novamente, parando os olhos no rostinho de Mary.
_ Que bonita!!!
Léo segurou uma das longas tranças de Mary, puxou de leve.
_ A gente vai se divertir muito juntos...
Léo nem disfarçou o olhar malicioso ao expressar as palavras.
_ Claro, Léo... Tu e a Mary podem brincar muito!
_ Brincar? Sim, sim... E como!!!
Mary não entendeu as intenções de Léo, mas como ele falara que iriam brincar muito juntos, calou-se. Pegou o pequeno embrulho das roupas que levaria e seguiu-os.
_ E o meu paizinho? E o mano?
_O Valderez agora vai ser teu pai, e teu mano vai ser o Léo!
Mary olhou para Valderez e Léo, com os olhos marejados. Sentiu como se algo a segurasse ao chão, a cabeça a rodar...
_ Meu paizinho vai voltar... Miguel também!
Léo pegou a mãozinha de Mary, conduzindo-a ao banco traseiro do carro.
_Vai nada, sorvetinho!!! Não adianta tu derreter aqui, à espera deles... Vamos lá pra nossa casa, lá podemos brincar de tudo!!

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora