21 - Lili atravessa o caminho de Irene

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Após três meses e várias tentativas de vencer a infecção generalizada da perna, os médicos decidem:
_ Para salvar sua vida, nossa equipe decidiu amputar acima do joelho esquerdo, Sr Juvenal. Após a cirurgia, encaminharemos o Sr ao setor de fisiatria, para aquisição de uma prótese. Vai estranhar um pouco no início, mas nossa equipe de fisioterapia estará a postos para restabelecer sua marcha em algumas semanas.
Juvenal, enfim, via uma luz no final do túnel. Sentia muita saudade de Teresinha e Francisco.
_ Ainda não conheço meu filho, que já tem quase cinco meses.
_ Então fica firme aí, homem! Amanhã mesmo o senhor entra naquele bloco cirúrgico e vai sair de lá fora de perigo, porque nossa equipe já tentou de tudo para acabar com as infecções, mas a rejeição severa contra a platina não permite a calcificação óssea das partes fraturadas.
_Juvenal imaginou o que seria de Teresinha e das crianças sem ele.
_ Tudo bem, Dr. Farei a cirurgia.
_ Ótimo, Sr Juvenal! Seus exames pré operatórios já estão todos prontos e está tudo certo. Jejum absoluto a partir das dezoito horas de hoje!
Na manhã seguinte, Juvenal deu entrada no bloco cirúrgico do setor de ortopedia do hospital. Ao sentir os primeiros efeitos da anestesia, sentiu-se flutuar sobre uma imensidão branca e fresca... Seus olhos tentaram ver alguém ou algo que reconhecesse, porém, o ar estava leve demais... Vultos se aproximavam e se distanciavam... Estendeu as mãos, mas não conseguiu tocar em algo, tampouco em alguém... A dimensão era outra... Vozes e murmúrios chegavam de longe... Sentiu-se andar, correr... De repente, um vácuo fez seus passos tropeçarem. Senti que estava longe do chão... Algo puxou sua perna lentamente... Mais vozes ... Abriu os olhos por um milésimo de segundo e viu um vulto branco debruçado sobre ele... Outra voz...
_ Ele está voltando a si! O efeito da anestesia já está passando...
Juvenal pensava ter passado apenas dez minutos.
_ Sr Juvenal! Está tudo bem? O Sr já está na sala de recuperação... A cirurgia foi um sucesso!
_ Que horas são?
_ Quatro horas...
Juvenal olhou a enfermeira, ainda atordoado pela anestesia.
_ Da manhã ou da tarde?
_ Da tarde, Sr Juvenal... Foram cinco horas de cirurgia. Mas deu tudo certo...
_Teresinha... Francisco...
Juvenal sentiu novamente os efeitos dos sedadivos ministrados durante a cirurgia. Porém, a família estava em seu subconsciente...
_ Que saudades do teu café, dona Teresinha!
_ Agora eu tô de volta, Sr Júlio! Eu que tava com saudade dessa criançada toda!
_E como está passando o seu Juvenal?
_Infelizmente, perdemos a batalha contra a infecção, diretor. Mas conseguimos salvar a vida dele. Afinal, o que é uma perna diante de uma vida? Francisco tava à beira de uma crise, sem a presença do pai. Logo ele estará de volta pra casa.
_ Mas como virá, de Canoas? O translado é longo e caro.
_ Sim. São duas horas de viagem.
_ E como está o nenê, dona Teresinha?
_ Agora que ele fez a segunda cirurgia, ele tá conseguindo mamar melhor. Ainda bem que minha mãe pode vir lá em casa cuidar dele. Só estranhei uma coisa ontem...
_Estranhou o que, dona Teresinha?
_ Ontem à tardinha veio lá em casa uma mulher, que se dizia ser da prefeitura, da saúde, sei lá... Mas estranhei que ela não tinha nenhum crachá, nem colete com o nome da prefeitura...
_ Estranho mesmo! Realmente, os profissionais da prefeitura precisam estar sempre identificados, com crachá ou colete com o emblema da prefeitura.
_Por isso me preocupei... Vai que é uma ladra, ou uma... Tenho um mau pressentimento, quando penso nela...
_ Isso é ruim e é bom, ao mesmo tempo, dona Teresinha...
Teresinha olhou inquisitivamente para Júlio.
_Vou explicar, dona Teresinha... A gente, como profissional da educação, já temos em nossa vivência situações de perigo para crianças de todas as idades.
_ Continuo sem entender, diretor...
_Pois eu explicarei em outras palavras... É bom, porque a senhora "sente" que seus filhos podem estar em situações de perigo se não tiver um responsável por perto. É ruim porque a gente nunca sabe quem tem boas intenções ou não, com nossas crianças.
_ Por falar em criança, o senhor reparou como a pequena Mary está triste? Fui ver onde estava Francisco e encontrei ela chorando no cantinho do pátio. Nem Francisco, que sempre foi amigo dela, conseguiu fazê-la parar de chorar.
_ Vou pedir para a professora conversar com ela amanhã. Acredito que ela consiga descobrir o motivo.
Mary ficou em silêncio em todo trajeto da escola até em casa. Ao chegar, Irene os esperava, com um envelope em mãos e a fisionomia radiante.
_ Cumprimentem a mais nova mamãe da casa!
Valderez encarou Irene...
_ Como assim? Nova mamãe? Agora tu é vidente? Eu não tinha te falado que minha mãe vai vir morar com a gente!
Diante das palavras de Valderez, Irene quase foi ao chão... Ela estava se referindo ao exame positivo de gravidez que segurava. Jamais imaginou que a sogra viesse morar com eles naquele momento.
_ Estou falando que tu vai ser papai, Valderez!
_ Mas isso que é ser um homem de sorte! Acabei de fechar um negócio que vai me render em torno de um milhão de reais numa tacada só, vou ter mais um herdeiro e minha rainha Lili virá morar comigo...
_ Lili?
_ Angelita... A rainha que botou no mundo o maior garanhão do pedaço! Ahhhh, eu sou o máximo!
Valderez bateu no peito, orgulhoso.
_E quando tua mãe vai vir?
_ Amanhã mesmo! Vou buscar ela no aeroporto. Ela tá voltando de uma viagem da Europa...
_ Viagem? Europa?
Irene parecia só ouvido as palavras"viagem"e "Europa"... Guardou o envelope do exame na bolsa e se retirou. Mary entrou em seu quarto, fechando à chave, como de costume.
_ Isso, princesinha! Fecha direitinho, que vamos nos divertir um bocadinho antes do jantar! Isso se ainda vai ter fome depois de saborear o que tenho pra ti!
Mary olhou para as mãos de Léo. Em uma mão tinha um punhado de brita e na outra um bombom desembrulhado. Lembrou-se do primeiro abuso, que ocorreu porque, inocentemente, comeu o bombom... Estremeceu ao lembrar...
_Não vou comer nada que vem de ti, Léo! Esse bombom tem droga!
_ Pode escolher, princesinha! Ou come o bombom batizado com pó de fada e fica boazinha, como na nossa primeira vez, ou vou te fazer comer a brita, e vai ficar com esse lindo sorrisinho quebradinho, quebradinho... Vai ficar que nem a"Chiquinha"!
Diante das últimas palavras de Léo, Mary levantou a mão, mas Léo segurou-a no ar. Em um gesto rápido, colocou o bombom na boca de Mary, tapando-lhe o nariz.
_ Agora come bonitinha aí, ou fica sem ar, princesinha! Ou vai querer saber como é o gosto da pedra?
Mary estava quase sem conseguir respirar, quando conseguiu mastigar e engolir o bombom. Sentiu as pernas fracas... Tudo girava ao seu redor... Ainda tentou debater-se...
_ Isso, princesinha! Agora, vamos ter ação... Muita ação!
Mary sentiu-se como se o sangue lhe fugisse das veias. A última coisa que lembrou que cravou as unhas no rosto de Léo, em uma desesperada reação de defesa.
A manhã seguinte encontrou Valderez apresentando a recém- chegada:
_ Essa é Lili! A rainha do meu castelo!
Segurava à mão uma distinta senhora de olhar altivo. Lili ajeitou os óculos, olhando para Irene...
_ Quem é essa serviçal? É da cozinha ou da limpeza?
_ É minha esposa, mãe! Esta é Irene.
_ Para mim tem cara de serviçal. Ela pode buscar minha bagagem no carro. Tem uma maleta com minhas roupas favoritas e a mala , onde carrego meus remédios. Joguei quase todas as roupas no lixo. Posso comprar roupas novas aqui, mas meus remédios não consigo em qualquer farmácia. Tem uns dez importados da Europa.
Irene olhou inquisitivamente para Valderez, sem entender porque Lili carregava tantos medicamentos. Valderez puxou Irene para o lado:
_ É o único defeito da mamãe. Ela é hipocondríaca.
_ Hipo... O quê?
_ Viciada em se automedicação... Ela encontra todas as doenças da face da terra... Ou são as doenças que encontram ela... Sei lá... Ela carrega uma farmácia inteira pra onde vai, sem contar os chás e tinturas fitoterápicas.
_ Mas, qual é a doença dela?
Lili ajeitou os óculos, resmungando:
_Estão falando de mim? Uma serviçal querendo saber da minha vida... Só o que me faltava! Eu, dentro da minha casa, respondendo perguntas a uma empregada...
Irene olhou Valderez, surpresa.
_Tu falou que essa casa era tua... Não falou que era da tua mãe! Tu mentiu pra mim!
_ Eu não menti. Sou daqueles filhos que não deixam a casa da mãe... Só isso!
Lili encarou altiva os olhos de Irene:
_ Pedi pra você pegar minha bagagem no carro, serviçal! Ou quer ver o olho da rua?
Irene sentiu-se acuada diante do tom autoritário de Lili. Baixou os olhos e saiu, em direção ao carro. Valderez olhou para a mãe:
_ Mamãe... Já falei que a Irene é minha esposa, não uma empregada!
Lili deu uma risadinha irônica...
_Eu já ouvi, filho. Só quis ver a reação dela diante da minha autoridade! De que zona você tirou essa"biscate"?
_ Da zona rural, mãe... Tirei ela de um bocó da roça, lá do fundo das grotas! Essa daí nunca vai fazer perguntas nem me denunciar como a Odete fez.
_ Aquelazinha lá... Fez a denúncia às oito da noite e acordou com a boca cheiinha de formiga na manhã seguinte! Bem que fez, filho. Temos que manter a imagem de família perfeita, pra polícia nunca chegar aos nossos calcanhares...
_ Psiu...Ela está voltando... Ahhhh... A família perfeita vai crescer. Irene está grávida.
_ Mas que notícia maravilhosa! Deixa comigo, filho! Meu neto será um rei, como o Léo!
_ O Léo já tá no mesmo ramo que eu, mãe! Já fez umas entregas pra gente"da alta"... O Léo vai ter o comando das melhores"bocas"logo, logo...
Lili aproximou-se de irene:
_ Perdão, querida! Eu sou meio surda e não escutei quando o Valderez falou que você era esposa dele!
Irene baixou os olhos.
_ Sem problema, dona Angelita.
_ Lili... Me chame de Lili. Vem comigo? Está na hora do meu remédio das oito horas. Se eu não tomar, fico constipada!
Irene acompanhou Lili, corredor afora...
_ Vavá me disse que vai ser papai de novo. É verdade? Vamos ter um novo herdeiro?
Irene sentiu-se envaidecida com a pergunta.
_ Siiiim! E eu tô muito feliz por dar esse herdeiro para o Valderez!
_ Fui eu quem cuidou do Léo quando ele nasceu. Viu que beleza de rapaz está se tornando? Tudo que ele sabe, fui eu quem ensinou!
Irene limitou-se a dar um sorrisinho, pois não tinha coragem de dizer que quase não parava naquela casa, e que pouco via o enteado. Ajudou Lili a organizar as roupas no closed.
_Hoje de tarde vamos às compras. Vou renovar todo meu guarda-roupa... Ahhhh... Vamos comprar as primeiras roupas do enxoval do bebê...
_ Mas é cedo ainda, dona Angelita. Estou entrando no terceiro mês de gestação.
Lili ergueu as sobrancelhas.
_Vou te ajudar em tudo. Até já tenho nome pro bebê... Se for menino vai se chamar André... E seu apelido vai ser Dedé...
Irene fez menção de interromper Lili, mas um gesto de mão autoritário da sogra a fez calar-se.
_E se for menina vai se chamar Angela, porque eu sou Angelita!
Irene sentiu um forte ar de comando no tom de voz de Lili. Pela primeira vez se deparava com uma mulher que a fizesse sentir uma ponta de inferioridade. Porém, arriscou uma defesa...
_ A senhora não acha que o nome de um bebê deveria ser escolhido pelos seus pais?
Irene mal falou as últimas palavras, mas o cenho franzido de Lili a fez calar-se.
_Como se chama mesmo? Ahhhh, sim... Irene... Esta mansão é minha... Vavá mora aqui porque o ramo que ele trabalha exige que ele tenha uma"vida reservada"... Portanto, tudo que for decidido aqui, tem que passar por mim primeiro!



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