54 - Irene na rua

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Após os funerais de Claudio, a sensação de que, para Tina, tudo estava faltando, era eminente. Parecia que o mundo tinha ruído aos seus pés... Seus pensamentos estavam entorpecidos.
_ Dona Tina... As bolachas... Estão queimando!
Com olhar perdido no nada, Tina andava pela padaria com gestos mecânicos. As palavras de Teresinha pareciam vir de um longínquo vazio...
_ Sinto um vazio em tudo, Teresinha... Não tenho ânimo pra mais nada... Parece que me fecha e dói tudo, quando quero respirar.
_ Tu tem as meninas, amada. Não pode se deixar arriar assim! Imagina como elas se sentiriam se não tivessem a ti também...
_Minhas filhas são a única coisa que ainda me mantém viva, Teresinha. Parece que me arrancaram o sentido de viver...
_ E tu é " o pau da barraca" delas... Não pode deixar cair... O Claudio tem uma missão maior com Deus... Lembra do meu anjinho?
_ Sim... E a vontade de Deus não se contesta...
_ Precisa ficar bem e forte, que daqui a uns meses vou tirar uma licença... Aí vai ter que arrumar uma outra ajudante por um tempo.
_ É mesmo... Tu vai ter o nenê... Tava pensando na Débora. Ela faz bolachas deliciosas também.....
Teresinha passou a mão na barriga.
_ Deus me deu uma terceira chance... E dessa vez não quero errar... Quebrei uma promessa feita a Deus... E eu mereci o castigo...
Tina ficou pensando nos motivos que Deus teria para levar Claudio...
_ Nessa hora, a gente não sabe o que pensar... Só sei que é como se eu tivesse perdido uma parte de mim mesma... Tudo que olho me lembra o Claudio...
_ Pensa nas meninas... Elas também devem estar sentindo muito a falta dele. Ele era um pai tão presente.
_ Ele faz falta em todos os lugares... Parece que tem um buraco aqui...
Tristemente, Tina apertou o peito com a mão. Teresinha comentou:
_ Muita gente vai sentir a falta dele... Vi que até o pastor que fez o enterro dele chorou...
_ O pior é que eu tenho que seguir sem ele... As meninas precisam de mim firme e forte... Mas me faltam forças...
_ Sei exatamente como é, amada... Mas pensa... Eu, o Juvenal, o Arnaldo e todos os amigos que estão por perto vão te ajudar.
_ Não sei onde começar... Na lavoura, até consigo fazer alguma coisa, mas, e o resto? Não sei lidar com as máquinas e com a motosserra... Até lenha pra nossa padaria vai faltar.
_Olha... O Juvenal consegue ajudar em algumas coisas, o Arnaldo também não vai se negar a ajudar... Hoje de manhã o Alceu perguntou se tu precisa de ajuda...
_ O Alceu... A esposa dele tava no hospital quando o Claudio faleceu... Desconfiaram que era da apendicite da Débora. Será que ela melhorou?
_ Bom... Notícias boas voam com o vento, Dona Tina!
_ Primeiro, Teresinha... Tire o"Dona" da frente do meu nome... Depois... Notícias boas? Que notícias?
_ Não soube, amada?
_ Depois do falecimento do Claudio, eu não conversei com quase ninguém... Algum problema com a Débora?
_ Não sei se eu chamaria isso de "problema"...
_ Agora tá me deixando curiosa...
_ Calma, Tina! Vou contar...As dores que a Débora teve não tinham nada a ver com a apendicite dela.
_ Então? É alguma outra doença? Coitada... Até tava pensando nela pra te substituir na licença maternidade.
_ Ela tá grávida... De gêmeos!
Tina ficou boquiaberta diante da revelação de Teresinha.
_ Grávida? De gêmeos? Mas...
A mulher foi interrompida pela chegada das crianças.
_ Quem vai ter gêmeos, mãe?
_ A Dinda Débora.
_ A Dinda Débi? Gêmeos? Como assim? Ainda semana passada nós estivemos lá, e ela falou que talvez nunca iria ser mamãe!
_ Mas o bondoso Deus abençoou ela. E duplamente...
Tina lembrou-se do que Alceu falara no dia do falecimento de Claudio..."Ele apertou a minha mão por duas vezes, essa madrugada".
_ Estranho... Ele apertou minha mão também... Acho que não tem nada a ver com os nenês da Débora... Se bem que ele vivia dizendo que, se se tornasse anjo, encheria a casa do Alceu de filhos.
Lenir colocou a mão na cabeça:
_Falando em filhos, tenho que dar banho no meu filho Alfredo!
Tina olhou para a menina, desconfiada:
_ Que negócio de "filho Alfredo" é esse?
_ É o porquinho que comprei com o dinheiro que o Dindo Tonho deu!
As duas mulheres entreolharam-se:
_ Filha... Quantas vezes eu tenho que dizer que não pode dar nome de gente pra bicho?
Lenice cobriu a boca com a mão. A mãe desconfiou:
_ Então... Posso saber que nome a senhorita colocou no coelho?
_ Rodolfo!
As duas mulheres entreolharam-se, tapando a boca para não rir.
Lenir reclamou:
_Mas o meu porquinho tem cara de Alfredo... Por que não posso dar o nome dele assim?
Teresinha emendou, sorrindo:
_ Falta saber que nomes os meninos deram pros bichinhos deles!
As meninas entreolharam-se:
_ Booom .. Só podemos dizer que são nomes de gente também...
_Mmmmm... Pode-se saber que nomes são esses? Ou é segredo?
_A galinha do Chico é a Clotilde... O galo é o Tenório...
_ Onde arrumam criatividade pra tudo isso?
_ São crianças, Tina... Crianças não tem travas...
_ Ahhhh... O ganso do Mig é Edgar.
_ Mas onde vocês acharam esses nomes diferentes?
_ Ô, mãe... Quando o Dindo Tonho levou a gente pra casa da feira, a gente ficou lendo o nome das ruas de Igrejinha. Tem cada nome esquisito... Aí o Mig teve a ideia de usar esses nomes esquisitos pros nossos "filhos"...

*

A dona da pensão onde Irene estava hospedada foi irredutível:
_ A senhora Lili pagou só dois meses, e tu já tá aqui a cinco meses. Tu tá devendo três meses, já... Prometeu que me pagaria esta semana.
_ Vou pagar. Tive meus gastos pessoais.Tenho que ir até a casa da Lili, pra ver se ela consegue me dar mais um dinheiro. Afinal, eu sou mulher do filho dela!
_ Gastos pessoais... Cigarro e roupas chiques... Coisas que nem eu faço uso...
_ Pois a senhora não usa roupa chique porque não tem finesse... É uma caipirona! Se contenta com uns trapinhos.
Dona Gorete, a dona da pensão, perdeu a paciência:
_ Pois então, senhora das chiquezas! Ponha-se daqui pra fora! Vai procurar outra pessoa que banque seus luxos! Essa é uma pensão simples, mas honrada!
_ E vou mesmo! Vou voltar pra casa do meu marido... Dona Lili não devia tá falando sério quando me trouxe pra cá... Valderez deve tá sentindo minha falta...
Irene arrumou a mala e tomo o rumo da casa de Valderez e Lili. Estranhou que, ao tocar a campainha, o mordomo que atendeu-a não fora Fernando.
_ Onde tá o Fernando? A Lili despediu ele? E cadê o Valderez?
_ Fernando? Lili? Valderez?Quem são as pessoas que a senhora citou?
Irene, em sua pose de patroa, aumentou o tom de voz:
_ Lili é a dona dessa casa, Fernando é o mordomo e Valderez é meu marido... Também dono dessa casa... Pois se tu é um serviçal novo, vou pedir pro Valderez te demitir... Não gostei da tua cara!
_ Não sei quem são essas pessoas, senhora. Meus patrões vieram da Itália a um mês e compraram essa mansão...
Diante da revelação da mudança de dono da casa, Irene não teve outro jeito, a não ser ir embora. Andou sem destino durante horas, pensando no que poderia ter ocasionado a venda da mansão.
_ Bom... Vou achar um lugar pra ficar... O ruim é que eu não tenho mais dinheiro...
Irene bateu em várias portas, à procura de uma pensão. Porém, nenhuma aceitou o aluguel fiado...
_ Que fome! Nunca pensei que caminhar dava tanta fome!
_ Irene sentou-se sob a marquise de uma loja e abriu a última carteira de cigarros que tinha na bolsa. Acendeu o cigarro com gestos nervosos.
_ Assim eu não sinto tanta fome...
Ao sair daquele local, a escuridão da rua passou a assustar Irene. Olhares frios passavam como se ela não estivesse ali. Mesmo sem destino, resolveu apressar o passo.
_ Esses sapatos de salto tão me matando... Tenho que chegar a algum lugar seguro onde eu possa comer alguma coisa, e descansar.
Por mais que procurasse, ninguém aceitou hospedá-la, pois Irene não tinha como pagar a estadia.
_ Mas não é possível! Como não aceitam hospedar uma pessoa chique que nem eu?
_ Minha senhora... Pagando, hospedamos até quem usa roupas de mendigo...
Ao ouvir a expressão de mais uma dona de pensão, Irene teve uma ideia... Abrigar-se sob o viaduto à sua frente, ao menos por uma noite.
_ Aqui... Aqui deve servir...
Irene aproximou-se temerosa.
_ Será que não tem bichos aqui?
Irene observou o lugar, pouco iluminado. Ao seu lado, algumas caixas de papelão e uma mesinha improvisada, com restos de um sanduíche. Aproximou-se lentamente, pegou o pedaço do lanche e comeu-o.
_ Eu tava com uma fome!
Mal tinha acabado a refeição, e um barulho a fez alertar-se.
_ Quem tá aí?
Irene viu com surpresa uma figura feminina, com uma criança nos braços.
_ A senhora vive aqui? E com uma criança?
A mulher, cuja criança tinha uma má formação congênita, sem as duas pernas, respondeu tristemente:
_ Sim... Desde que o meu filho nasceu... Meu marido não aceitou a deficiência dele... Ele mandou-me abandonar o Ângelo num lar pra crianças órfãs... Aí, peguei meu filho e vim pra cá.
As palavras daquela mãe atingiram em cheio Irene. Pela primeira vez na vida, ela refletiu sobre a condição física de uma criança deficiente.

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