13 - O pai de Francisco

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_ Vamos logo, Miguel, ou vai se atrasar pra aula! Temos que passar na casa do seu Claudio, Eu soube que a esposa dele é diabética. Quero conversar com ele e com sua esposa, para ver se as tuas amiguinhas poderiam te ajudar em alguma emergência, chamando a professora...
Arnaldo e Miguel pegaram a estrada de chão, em direção à casa do pai das gêmeas Lenice e Lenir. Miguel, vez ou outra parava, catava uma pedra de saibro e tacava barranco abaixo, só para ouvir os estalos que faziam ao bater nas árvores.
_ Paiê! Eu e o Adi jogamos pedras sempre, só pra ouvir o cleckt cleckt que dá!
Ademir era o melhor amigo de Miguel. Os dois, em dupla, eram a dupla invencível, tanto no futebol quanto no caçador... Porém, Ademir era aquele aluno que fazia as atividades correndo para fazer bagunça em sala de aula. Ambos eram craques em Matemática, mas uma negação em Português.
_ Vamos mais rápido, Miguel... Tem temporal vindo por aí... O calor tá demais!
As nuvens escuras rapidamente se avizinhavam. O vento veio assobiando por entre as árvores, trazendo folhas e pequenos galhos.
_ É o tal vento da fome, pai?
_ Parece, Miguel. Só que o vento da fome é gelado e rasga tudo... Esse vento ainda é quente.
O dia pareceu virar noite de repente. Pesadas nuvens escuras cobriam o céu inteirinho. Galhos se retorciam , quebravam e voavam. Miguel agarrou-se a Arnaldo... O grito de Miguel confundiu-se com os estrondos do temporal:
_ Me segura, paiê!
_ Vem aqui, na minha garupa, Miguel! Estamos pertinho da casa do seu Claudio... Rápido!
Mais alguns metros, uma curva na estrada, um caminhão parado, diante de um enorme eucalipto caído. Alguns metros adiante, um senhor de cabelos negros olhava incrédulo o tamanho da árvore que caíra, atravessando a estrada.
_ Graças a Deus, não caiu no meu caminhão! Ainda não acabei de pagar!
_ Quer ajuda para tirar a árvore, senhor? Podemos ir até a casa do seu Claudio, que é aqui pertinho, pedir para ele cortar em cepos menores com a motosserra, aí podemos abrir para o senhor passar.
_ Eu sou Juvenal, e tenho essa carga de vinho pra levar pra região metropolitana, e me falaram que aqui cortaria caminho uns 50 km... Mas com essa árvore caída tô empenhado!
_ Calma, seu Juvenal! Eu e o Miguel vamos atravessar por entre os galhos da árvore caída e vamos pedir ajuda ao seu Claudio. Ele mora logo ali...
Arnaldo deixou Miguel aos cuidados da esposa e das filhas do Sr Claudio. Com a motosserra, Cláudio e Arnaldo liberariam o acesso para Juvenal seguir seu caminho no destino certo.
_ Vamos ter que fazer um trabalho de equipe! Eu corto em cepos pequenos e vamos rolar os cepos até a beirada.
Claudio, de motosserra em punho, serrava a parte do tronco que obstruia a estrada, enquanto Arnaldo e Juvenal tiravam os cepos da frente do caminhão.
_ Agora pode seguir viagem, seu Juvenal!
_ E nós vamos até lá em casa, até se aquietar esse temporal! Até mais, meu amigo! Boa viagem!
Mal Claudio tinha falado, um estrondo na direção de Juvenal fez os dois voltarem os olhos... Um enorme galho de eucalipto, cujo vento quebrou feito graveto, caiu em frente ao caminhão, atingindo em cheio o motorista do caminhão.
_ Santo Deus! O Seu Juvenal!!!
_ Vamos voltar, Arnaldo! Temos que socorrer o pobre homem!
Arnaldo e Claudio voltaram até onde Juvenal estava caído... Parte do galho atingira sua perna e outra parte sua cabeça. Juvenal se esvaía em sangue.
_ Não podemos perder tempo, Arnaldo! Tu fica aqui e cuida do pobre homem, que vou correndo pegar minha caminhonete!
_ Deixa a motosserra aqui, Claudio, vou abrindo o caminho!
_ Temos que levar ele daqui pro hospital, e rápido!

*

Mary olha a boneca que Irene comprara... Era bonitinha, tinha longos cabelos loiros e vestia uma minissaia e uma regatinha, exatamente igualzinha àquela que a mãe lhe comprara. Não compreendia porque essa boneca tinha que ser assim.
_ Nem todo mundo tem cabelo assim, nem usa roupas assim... Não gostei... Eu gosto mesmo é de avião!
Lembrou-se das brincadeiras de aviões de ossos de porco no porão da casa velha, das bonecas de espigas de milho, dos carrinhos feitos de tocos com raízes de árvores menores, arrancadas pelo trator do pai, do irmão...
_ Miguel...
O olhar de Mary se prendeu a um ponto qualquer da parede, ao lembrar do irmão. Certamente, se ele estivesse ali, ela se sentiria mais protegida. Ali, naquela casa enorme, quase não via a mãe, que quase não parava em casa.
_ Meu dever de casa!
Mary lembrou-se que deveria escrever sobre sua família... E agora? Descreveria a casa onde morava com um desconhecido, seu filho mimado e prepotente, e a mãe que nunca parava em casa? Ou será que deveria descrever a família de antes: o pai que tanto amava, o irmão que era seu anjo da guarda, sua mãe, raivosa, naquela casa?
Mary estremeceu quando lembrou do mato ao qual Irene os levara... Lembrou do frio, da fome, da barraca de lençóis na noite fria e chuvosa. Cobriu o rosto com as mãos e chorou. Os soluços arquearam a menina... Para tentar se acalmar, deitou em posição fetal.
_ Quero e-e-esquecer...
Mary não sabe quanto tempo chorou... A voz irônica de Léo a fez voltar à realidade:
_ E aí, princesinha? Pronta pra almoçar? Hoje tua mãe internou pra fazer as plásticas dela... Hoje, quem cuida de ti sou eu!
Mary ergueu o rosto, lembrou o episódio da brincadeira de médico, criou coragem para perguntar:
_ E tua mãe? Onde tá tua mãe? Nunca vi ela por aqui!
Léo olhou o chão ao responder.
_ Meu pai disse que ela morreu quando eu era bem pequeno...
_ Que triste... Deve ser triste perder alguém querido assim.
_ Triste nada! Nem lembro dela! E eu vou ser igualzinho meu pai! Vou ser vendedor, e ganhar muita grana, como ele!
Léo puxou uma das tranças de Mary.
_ E eu ainda vou ganhar uma grana com essas tranças!
Mary olhou curiosa para Léo.
_ Vai deixar crescer os cabelos também? Eu te ensino a fazer tranças!
_ Não, princesinha! Vou cortar e vender teu cabelo lá naquele salão do final da rua... Vai me dar a maior grana!
Mary olhou incrédula para Léo. Não conseguia se imaginar sem suas tranças. Pasma, foi andando até a sala de refeições da casa, para o almoço. Valderez levaria Léo e Mary para a escola.
_ Ainda bem que temos aula! Hoje é dia de visitar a biblioteca e fazer retirada de livros de leitura. Gosto demais da biblioteca!
_ Eu odeio ler! Se eu pudesse, colocaria fogo na biblioteca... Assim não existiriam mais livros pra precisar ler, nem pra estudar!
Mary não compreendia como uma pessoa poderia não gostar de ler. Mesmo pequena, ela sempre achou livros muito bonitos e estava aos poucos aprendendo o alfabeto para poder lê-los no futuro.
Almoçou calada, pois Valderez e Léo tinham seus próprios assuntos, os quais não entendia. Falavam de entregas, mercadorias e de nomes de pessoas que estavam devendo para eles, seja lá o que fosse... Tentou não pensar no significado daquelas palavras. Só queria ir para a escola, que no momento, era seu refúgio.
_ Pego vocês às cinco!
Mary e Léo adentraram o portão da escola... No pátio, crianças e pré-adolescentes formavam grupinhos isolados. Mary, timidamente, dirigiu-se até o corredor. No degrau da sala de aula de Mary estava Francisco, cabisbaixo, com o olhar parado, empurrando e puxando o caminhãozinho em movimentos repetitivos.
_ Francisco! Porque tá triste?
Francisco permaneceu em silêncio... Parecia não ouvir Mary, nem mesmo notar que ela estar ali. Puxava e empurrava o caminhãozinho, sem notar nada nem ninguém ao seu redor.
_ Francisco!Não quero te ver triste... Fala comigo!
A professora Mara aproximou-se de Mary, inclinou-se diante dela e explicou:
_ O Francisco veio sozinho hoje para a escola, Mary... A mãe dele foi ao médico, ela passou mal pela manhã porque vai ter um bebê... Francisco terá um irmãozinho, ou uma irmãzinha!
Mary lembrou-se da alegria que ela e Miguel sentiram quando souberam que teriam um irmãozinho.
_ A mamãe também já ia ter um bebê...
Mary calou-se ao lembrar da reação de Irene ao receber a carta do Dr Carlito. Lembrou dos olhos arregalados de raiva da mãe, do cinto que Irene apertava mais e mais sob a roupa, dos murros que dava na própria barriga, e das ervas que tomara. Explodiu em prantos. Sua cabecinha doía ao pensar naquilo.
Mara abraçou-a com o carinho que uma mãe, uma boa mãe, a abraçaria... Em seguida, segurou Mary e Francisco pelas mãos e conduziu-os até a carteira que dividiam.
_ Pronto! Deixem o material de aula aqui e vamos até a biblioteca... Ainda temos uns quinze minutos para nos divertirmos lá. Vamos?
Mary olhou para o rosto de Francisco, ainda inexpressivo.
_ Vou só se ele não ficar mais triste!
Francisco pareceu acordar de um transe.
_ Tá bom, prenda minha!
Francisco puxou as mãos de Mary, e saiu rodopiando biblioteca adentro.
_ Aaaaa, eu sou gaúcho! E essa será a prenda que vai dançar comigo nesse galpão!
_ Francisco! Isso não é um CTG! Isso é uma biblioteca!
Francisco tinha um fascínio especial pela tradição gaúcha, e fazia questão de mostrar isso para todos. Mara já pesquisara sobre as mudanças repentinas de atitude de pessoas com autismo, e observou sorrindo Francisco e Mary rodopiando e dançando. Sentiu que a leveza da dança lhes fizera bem.
_ Vamos para a sala de aula, crianças? As outras crianças já estão todas lá.
Francisco segurou a mão de Mary, puxando-a até a sala. Lauro, um garoto ruivo, não perdeu o momento:
_ O Cafezinho vem aí! E de mãos dadas com o Leite!
Algumas crianças ao fundo da sala de aula soltaram uma gargalhada... Mary já não se importava, pois Francisco voltara a sorrir, e logo Dona Teresinha teria um bebê!
_ Todos sentados! Daqui a pouco, de dois em dois, farão a retirada de livros de leitura da biblioteca.
_ O Cafezinho com Leite vai primeiro! A fila vai atrás deles!!!
Lauro não perdia a ocasião para zoar com Francisco e Mary. Mas Francisco já não escutava as asneiras de Lauro... Ele mal escutou a professora Mara sugerir a ida à biblioteca, puxou Mary pela mão e saíram em disparada em direção à biblioteca.
_Devagar, crianças... Vão para uma biblioteca, não para uma maratona!
A bibliotecária observou o interesse especial que Mary e Francisco tinham pelos livros. Os olhinhos faiscavam diante deles, e as crianças corriam de uma estante para outra, à procura do livro certo.
_ Posso ajudar a escolher?
_ Eu quero um de caminhão! Meu pai dirige um caminhão amarelo, bem grandão!
Os olhos negros de Francisco brilhavam ao falar do caminhão do pai.
_ Eu, de avião!
_ Tenho de caminhão e avião aqui, na estante dos livros sobre meios de transporte.
A bibliotecária observou, admirada com o fascínio de Francisco e Mary, ao escolher os livros.
_ Eu gostaria de comprar um livro desses, mas meu pai é caminhoneiro, e não pode gastar com livros.
Valéria, a bibliotecária, ouviu o que Francisco dissera a Mary... Ao registrar a retirada dos livros dos dois, Valéria abriu a carteira e tirou de lá uma nota de$ 5,00... Estendeu-a para Francisco.
_ Aqui, pra você comprar um livrinho de caminhão lá na livraria da esquina. Peça ajuda para sua mãe, assim que ela voltar do hospital... Assim, você e Mary podem ler juntos!
Francisco não sabia se aceitava ou não. Olhou para Mary, que o esperava na porta da biblioteca.
_ Sei que não é muito, mas deve dar para comprar um. Sei que você vai comprar um bom livro...
_ Obrigado, dona Valéria!
Francisco dobrou cuidadosamente a nota de $ 5,00 e guardou-a no bolso.
_Olha, Francisco! Uma nuvem bem preta!
Mary lembrou-se do pai... Quando o tempo fechava, e surgia algum temporal, os braços de Arnaldo eram seu refúgio.
_ Vai dar ventania e chuva, crianças. Voltem para a sala de aula e peçam para outra dupla vir.
_ Claro, Dona Valéria!
Voltaram à sala, já folheando o livro.
_ Próxima dupla, pode ir até a biblioteca... O restante, façam as atividades do quadro negro! Qualquer dúvida, podem perguntar...
Francisco olhou temeroso pela janela e sentiu um arrepio... Tentou fazer as atividades propostas no quadro negro, mas sentiu-se travado. Passou a tremer da cabeça aos pés...
_ O que foi, Francisco? O que tu tá sentindo?
Francisco parecia estar em transe... Olhava para o nada, inerte.
_Professora Mara! O Francisco não tá bem...
_ Pior que a mãe dele ainda não voltou do médico... Vou levá-lo até a cozinha, ali ele se sentirá mais tranquilo.
Mara já pesquisara sobre o TEA... E Francisco, graças a Deus, era um caso leve. Tinha mudanças repentinas de humor... Era extremamente organizado com seus brinquedos e material escolar.
_ Vai gostar de ficar aqui, Francisco... A secretária , Dona Angela, está substituindo tua mamãe para fazer o lanche hoje.
_ Posso ficar também, professora?
_ Concluiu suas tarefas do quadro negro, Mary?
_ Sim, professora.
_ Então pode...
Mary e Francisco sentaram-se em um cantinho da cozinha.
_ Eu vou comprar um livro sobre caminhão, assim que a minha mãe sair do hospital... Ela disse no outro dia que, quando ela fosse no hospital, ela iria trazer junto...
_ Eu gostaria de comprar um de avião, quando minha mãe voltar. Mas minha mãe nunca comprou livros pra mim, e não vai comprar agora!
O sino da intervalo de recreio bate e as crianças saem correndo das salas de aula. Francisco e Mary permanecem sentados no cantinho da cozinha... Francisco tira a nota de$5,00 que ganhou da bibliotecária do bolso, rasga-a ao meio e entrega a metade à Mary.
_ Pra ti... Tu compra um livrinho de avião, já que tua mãe não vai comprar...
Mara grita da porta da sala:
_ Façam fila para o lanche, crianças. A Dona Teresinha não está aqui hoje para fazer o lanche, mas a secretária Angela fez uma merenda deliciosa... Ela tem mãos de fada pra cozinhar, como Dona Teresinha.
Francisco olhou pela janela da cozinha, temeroso... Ficou paralisado. Mary puxou a mão do amigo.
_ O que tu tem, Francisco?
_ Um s-s-sapo...
Francisco pareceu estar engasgado. Sua fisionomia era de alguém que viu algo assombroso...
_ Onde? Mostra onde tá o sapo!
Francisco apontou para um cantinho, perto de um vaso de samambaias. Ele tremia da cabeça aos pés.
_ Deixa que eu levo ele pra bem longe daqui!
Mary lembrou-se das muitas vezes que ela e Miguel perseguiam os sapos no banhado perto da casa velha... Pegavam os pobres batráquios, colocavam em um jacá e levavam até o porão da casa nova, para que eles acabassem com os insetos que ali se aglomeravam.
_ Não pega esse monstro, Mary! Não pega!!!
Mary inclinou-se no cantinho onde um sapo verde e enorme se escondia.
_ Vou pegar ele e dar o nome de Freddy!!! Vou levar o Freddy lá para os fundos...
Mary pegou-o com cuidado e levou-o até os fundos da escola, onde eram cultivados alguns temperos e algumas mudas de couve.
_ Pronto, Freddy... Não precisa ter medo de mim... Aqui tu vai ter mariposas e outros bichinhos pra comer!
Mary lavou as mãos e voltou... Francisco ainda estava paralisado. Ela não compreendia porque Francisco tinha verdadeira fobia por batráquios.

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