105 - A presença do anjo

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Com o olhar perdido, Francisco traçava os últimos riscos de mais um dos seus diversos desenhos. Fixou o olhar tristemente na folha desenhada. De repente, a voz de Miguel pareceu tirá-lo de um transe.
_ O que tu tá escrevendo aí, meu irmão? Tá fazendo encomenda pro Papai Noel? Aaaaa... Eu vi... Já sei! Deve tá escrevendo carta pra essa guria bonita que tu desenhou aí... Acertei?
Ainda com o olhar marejado, Francisco guardou o desenho sobre a pilha de folhas desenhadas dentro da gaveta da cômoda. O olhar do amigo seguiu o movimento de suas mãos, curioso:
_ Mas não vai me apresentar essa beldade, cara? Não consegui ver direito, mas pelo jeito é um primor de guria!
Francisco corou, baixando o olhar e fechando a gaveta.
_ Eu tava só rabiscando... Eu conheci essa guria faz muitos anos, quando eu era criança. Agora, só vejo ela em sonhos... Não sei ao certo como e onde ela tá agora.
Miguel sorriu. Foi até a cômoda, abrindo a gaveta e analisando os diversos desenhos do amigo.. De repente, arregalou os olhos.
_ Mas ... Mas isso não é possível, rapaz! Eu conheço essa guria de algum lugar... Mas não sei de onde...
Francisco sentiu que poderia confiar em Miguel.
_ Bom... Na verdade, eu já não a vejo faz muitos anos... Quase dez anos, eu acho... Mas Deus me mostra em sonhos como ela tá agora. Eu sinto que um dia ela vai voltar... Ela prometeu voltar, e eu prometi esperar... Foi um juramento de sangue que a gente fez...
Miguel olhou embasbacado para o amigo.
_ Juramento de sangue? Isso existe?
Francisco relatou o episódio sobre o vaso quebrado no cemitério, e sobre a promessa de sangue feito entre ele e Mary antes da partida dela para a Itália.
_ Foi a nossa promessa... Lembro como se fosse hoje.
Um estalar de dedos de Miguel interrompeu as lembranças de Francisco.
_ Esses olhos... Esse sorriso... Já sei de onde conheço essa guria! Agora tenho certeza que sei de onde eu conheço ela.
Francisco olhou para o amigo, surpreso.
_ Conhece a Mary?
Os olhos de Miguel brilharam intensamente diante da pergunta do amigo.
_ Então, eu não me enganei! É a Mary mesmo!!! Esse rosto eu não esqueceria nunca! Esses olhos...
Francisco ruborizou. Milhares de perguntas atropelaram sua mente em uma fração de segundo. Passou a mão na cabeça, sentindo um tremor percorrer todo o corpo. Como Miguel poderia conhecer Mary, se ela era cativa da mãe e abusada pelo irmão de criação, em Caxias, antes de fugir pra Itália?
_ A Mary... Ela já voltou da Itália?
Miguel sorriu.
_ Aaaaa, meu irmão... Então, tu sabe onde a Mary tá? Isso é a melhor notícia que eu poderia ouvir hoje!!! A minha Mary tá na Itália!
Ao notar o jeito familiar que o amigo se referiu à Mary, Francisco sentiu-se desmoronar. Passou repetidas vezes a mão na cabeça.
_ "Minha Mary"... A Mary é... Ela é tua namorada?
A gargalhada de Miguel cortou o quarto de Francisco. Depois de andar propositalmente de um lado para o outro, observando o amigo, Miguel ficou sério.
_ Namorada? Tu tá brincando, cara!!! A Mary não é a minha namorada! Eu nunca poderia namorar a Mary!!! Temos um segredo em comum, que nos impede de sermos namorados!
Sentindo o rubor crescendo em seu rosto, com o coração aos saltos, Francisco estava cada vez mais confuso, sentindo seu coração querer saltar pela boca. Passou a mão na cabeça, repetidas vezes...
_ E...Eu não te entendi... Posso saber qual é esse segredo de vocês, que parece ser tão grave?
Sério, Miguel respirou fundo. Com uma sombra de tristeza no olhar, colocou as mãos nos ombros do amigo.
_ Meu amigo... Eu nunca poderia namorar a Mary... Porque... A Mary é minha irmã!
Boquiaberto, Francisco ficou chocado. Passou novamente a mão na cabeça, demorando a compreender.
_ Irmã??? Então... A tua mãe... Aquela que te rejeitou quando tu caiu da árvore... É a mesma mulher horrorosa que deixou o irmão de criação da Mary abusar dela? Eu não consigo acreditar...
A cada palavra de Francisco, as feições de Miguel foram-se contraindo, com raiva. Cerrou os punhos, enfurecido.
_ Eu que não consigo acreditar, meu amigo! Ela levou minha irmã daqui, pra fazer isso da vida dela? Eu me recuso a acreditar!!! Minha maninha!!! Ela era tão inocente, tão doce...
Com as mãos trêmulas, Francisco abriu a gaveta da cômoda novamente, guardando os desenhos.
_ Eu só preciso saber se ela tá bem. Mas eu não faço ideia de como descobrir... Deus só me mostra ela em sonhos...
Miguel notou o nervosismo exacerbado do amigo. Sentiu-se culpado de ter provocado aquela situação de verdadeiro desespero em Francisco. A vontade era de falar sobre todo o sofrimento que ele e a irmã passaram antes da mãe levar Mary. Porém, seu bom senso falou mais alto. Fechou os olhos por um momento, cerrou os punhos e respirou fundo.
_ Te acalma agora, meu irmão... Se tu diz que sonha com ela, e vê que ela tá bem, é porque Deus te mostra que é verdade. Vamos confiar em Deus. Ela deve estar bem!
As palavras de Miguel pareciam ter surtido mais do que efeito em Francisco, que, olhando para um ponto fixo no nada, tamborilava o lápis na cômoda, parando de tremer. Miguel pousou suavemente a mão no ombro do amigo, tentando esconder a revolta que sentia.
_ É, meu amigo... Vou tentar não pensar na minha irmã agora. Temos um assunto muito difícil pra encarar amanhã. Conversei com o papai... Apesar de eu não ser filho da Dona Teresinha, sinto um vazio tão grande aqui no peito, como se fosse a minha mãe a partir...
Uma fração de segundo, e Miguel interrompeu o que iria falar. Notara que as lágrimas desciam novamente pelo rosto do amigo.
_ Perdão, Chico... Aliás, é assim que a Valéria e o Claudino te chamam agora, né? Gostei do apelido!
Mais uma vez o silêncio foi a resposta de Francisco. Seu olhar parecia fixo no nada. Apenas duas grossas lágrimas descendo pelo rosto foram testemunhas do seu luto.
_ Já são quase dez horas da noite, meu irmão. As crianças estão dormindo com a mana, na casa da tia Tina. Quer que eu vá ficar de guarda lá hoje?
Francisco permaneceu com o olhar parado, porém, respondeu:
_ Eu prometi que iria cuidar da mana e das crianças e vou cumprir! Pode dormir aqui em casa, com teu pai.
_ Então, amanhã a gente se fala. Aaaaa, e confia em Deus, Chico... Nada acontece sem Deus permitir...
Enxugando os olhos com as costas da mão, Francisco saiu, adentrando na casa de Tina. Observou longamente as crianças e a moça, adormecidos. Instintivamente, um pensamento o fez estender a mão e tocar a longa trança de Lenir.
_ Parece a trança da Mary...
O silêncio daquela noite parecia ácido corroendo o peito de Francisco. Diante de um leve movimento da moça adormecida, com medo, recolheu a mão, tocando o rosto da irmãzinha.
_ Valéria... Minha irmãzinha... O que vai ser de nós, sem a mamãe aqui?
Silenciosamente, Francisco escovou os dentes, tirou a camiseta e subiu até a parte superior do beliche. Fechou os olhos e tentou dormir. Porém, um turbilhão de pensamentos atropelava sua mente. De repente, sentiu algo diferente naquele quarto. Uma luz branca intensa que emanava de um vulto próximo à janela o fez reabrir os olhos.
Os olhos marejados de Francisco encontraram o brilho dos olhos da mãe.
_ Mãe!!!
_ Francisco... Tu sempre me ajudou a cuidar da Valéria.
_ Claro... Eu amo a minha irmã!
_ Não chora, filho. A tua irmã vai precisar muito de ti, daqui por diante.
Diante das palavras do vulto, Francisco caiu em prantos.
_ Prometa com teu coração que jamais fará criança nenhuma chorar, pois as crianças são o reino de Deus.
Com a voz embargada pela emoção, o jovem gaguejou:
_ E... Eu... Prometo...
_ E agora, que Deus te fez um homem honrado, levanta e vai até a cocheira, pois lá alguém precisa muito da tua ajuda.
Após a última palavra, a luz e o vulto desapareceram, com a mesma rapidez que surgiram.
_ Mãe! Fica aqui!
Francisco, ainda meio desorientado, sentou-se, desceu do beliche, vestiu a camiseta e saiu porta afora, em direção à cocheira. O vento forte batia a porta, repetidamente.
_ Ué... A porta tá aberta... Será que a vaca fugiu? Cadê a Katrina?
O olhar aflito de Francisco procurou através da escuridão da noite, a vaca que costumava ficar alí.
_ Katrina...
Silêncio... Com o coração apertado, procurava-a com o olhar, através da escuridão.
_ Katrina!
De repente, um raio cortou a escuridão da noite, iluminando o fundo do estábulo. O vulto negro e encurvado de Katrina surgiu aos olhos de Francisco.
_ Katrina! Tu tá aí! Deus seja louvado! Eu pensei que tu tinha fugido... Tá tudo bem, garota?
Mais perto e com os olhos já acostumados ao escuro, conseguiu ver que estava acontecendo alguma coisa estranha com ela. Aproximou-se lentamente. Quando tocou o lombo do animal, sentiu que Katrina se contraía de dor.
_ Calma, Katrina... Tá tudo bem. Eu tô aqui...
Katrina parecia contorcer-se de dor mais uma vez, até que um mugido diferente cortou a noite.
_ Béééé...
Entre o susto e a surpresa, Francisco reagiu se ajoelhando diante do recém-nascido. Ergueu os olhos e as palavras saíram do fundo do coração:
_ Obrigado, meu Deus! Obrigado, meu Pai, por me conduzir até a cocheira! A Katrina tá bem agora... Vai precisar de uma cama de folhas secas limpas pra passar o resto da noite.
Enquanto Katrina lambia toda orgulhosa a cria recém-parida, Francisco observava a cena, lembrando do vulto de luz e de suas palavras.
_ A mamãe tá cuidando de todos nós lá de cima. Foi ela quem me avisou que tinha alguém precisando de ajuda... Agora, a mamãe é nosso anjo protetor...
E novamente o jovem olhou para o alto.
_ Obrigado, meu Deus. Obrigado, meu Pai. Eu nunca vou poder agradecer o suficiente, por fazer tudo acontecer certinho, e me trazer pra cá.
O animalzinho ergueu-se em meio à escuridão, meio cambaleante. A vaca, toda orgulhosa, foi-se ajeitando, enquanto o bezerro cutucava a região do úbere. O leite escorrendo pelos tetos, logo foi saboreado pelo pequeno recém nascido.
_ Aí, garota! Vou pegar um saco de folhas secas lá no depósito e fazer uma cama bem fofinha pra ti e pro teu nenê...
Após ajeitar cuidadosamente as folhas secas, Francisco fechou a porta da cocheira.
_ Prontinho! Cama seca, quentinha e porta trancada. Até amanhã, Katrina! E cuida bem do teu nenê aí!
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INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora