109 - Mirian

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   Talito e Dulce sentiram a leveza que as brincadeiras de Miguel refletiam em Gilmar. O rapaz não perdeu a oportunidade de continuar a brincadeira:
    _ Olha como o Gilo tá feliz, gente! O cavalo dele é brasino, camuflado, igualzinho a um soldado...
    Gilmar abriu um grande sorriso, erguendo uma das mãos. Do seu jeito, foi atiçando desengonçadamente as pernas na garupa de Miguel.
    _ Ooooooo...
    Miguel sorriu, cochichando:
    _Vamo deixar esses dois pra trás e nos esconder lá na encruzilhada? Tu é o Zorro, e eu, o Tornado!
    O brilho nos olhos do pequeno Gilmar refletia a felicidade que sentia. Agarrando com dificuldade os ombros do primo, o pequeno cadeirante sentia-se o próprio Zorro, abrindo o maior sorriso  naquela brincadeira.
    _ Vamos nos esconder na encruzilhada, Zorro! E dar um susto nos dois quando eles estiverem chegando perto!
    Gilmar soltou uma sonora gargalhada, erguendo o braço, desengonçadamente. O rosto do pequeno cadeirante refletia a felicidade de ser considerado um menino normal.
    _  Tamo chegando, Zorro! Fica bem quietinho, tá? Eu tenho um esconderijo infalível aqui na encruzilhada! Segura firme aí, Zorro, que a tua primeira aventura tá bombando!
    Miguel bateu os coturnos com força no saibro ao entrar no esconderijo, propositalmente , para afundar o rastro. Assim , Talito e Dulce descobririam a direção do esconderijo. Gilmar arregalava com vivacidade os olhos, diante de sua primeira aventura de herói.
    _  Psiu... Agora, campeão, nada de dedurar nosso esconderijo, tá? Quietinho, tá?
    Gilmar apertou as mãos com força, no reflexo da falta de motricidade, ao expressar a expectativa maravilhada de conseguir se esconder dos seus pais, pela primeira vez na vida.
    _ Mmmmmm ...
    Pela primeira vez, o menino sentiu as brincadeiras de infância entrar em seu cotidiano. Miguel sorriu, colocando o indicador de leve nos lábios de Gilmar.
    _ Agora quietinho, Gilo... Ou o pocotó aqui vai virar picadinho na panela. Papai Talito e mamãe Dulce sentiram a nossa falta! Psssssiu... Ou nosso esconderijo vai pro brejo...
    Uma gostosa gargalhada do menino denunciou o esconderijo de Miguel e Gilmar. Não demorou muito para os pais do menino aparecerem na clareira onde os dois estavam escondidos. Talito sorriu.
    _ Ahhhá! Então foi aqui que esses dois moleques se esconderam!
    _ Tá bom, chefia! Achou a gente! Mas nada de mandar o pocotó aqui pro abatedouro, nem o nosso Zorro pro xadrez!  Nós vamos continuar cavalgando, bem comportadinhos!
    _ Mas nada de se esconder de novo, gurizada! Vai que o Gilo passa mal de novo...
    Miguel sorriu.
    _ Esse piá tá melhor que eu, tio Talito! Ele só passou mal porque viu uma assombração, lá atrás! Aquela tia braba vai se encolher na própria ignorância, só porque ela não gostou de brincar com um menino legal que nem tu! Simbora pra casa do Juvenal, Gilo, que o padrinho Arnaldo tá lá!
    Surpreso, Talito estranhou:
    _ Ué... Mas, por que ele tá na casa dele?
    Miguel piscou para Gilmar.
    _ Olha, tio... Pelo que sei, os médicos fizeram uma faxina na vesícula do papai, e tiraram tanta pedra de lá, que deu pra fazer uma taipa! Depois, costuraram a barriga dele de novo. E até ficar curado, ele tá lá na casa do Juvenal.
    Gilmar arregalou os olhos, diante da expressão séria do primo ao descrever a cirurgia de Arnaldo. Talito respirou profundamente, visivelmente cansado da viagem.
    _ Senta e descansa, tio. O senhor tá exausto!
    _ Mas me conta, Miguel. O que tu anda fazendo? Já tem uma namorada?
    Miguel ficou ruborizado com a pergunta direta do tio. Porém, respondeu educadamente:
    _ Olha, tio... Namorada, não tenho. Mas, eu conheci uma guria muito legal no armazém. Ela ajuda o tio, que é dono do armazém daqui...
    _ Mmmmmm... Ela é bonita?
    Os olhos de Miguel brilharam ao responder.
    _ A Mirian? Bonita? Ela é maravilhosa!!!
    _ Aaaaa, rapaz... Então, logo, logo, vamos ter o anúncio de um romance... Ou de um possível casamento...
    Miguel ficou com o olhar preso ao vazio, enquanto descrevia a moça:
    _ Pensa numa moça linda e gentil. Cabelos pretos e longos como o ébano, pele delicada feito uma rosa. Uma verdadeira princesa!
    Lenir e Francisco chegaram, bem a tempo de ouvir as últimas palavras do amigo.
    _ Princesa? Linda? Gentil? Acho que o Mig sonhou com a Branca de Neve e pensa que ela tá por aqui!
    Miguel ficou ruborizado, porém, respondeu à altura do comentário irônico da amiga:
    _ Pois essa guria é muito mais bonita e legal que dez princesas como a Branca de Neve. Aquela princesinha das fábulas que invadiu a casinha dos sete anões não chegaria nunca aos pés da Mirian!
    _ Mirian? Ahhhh, sim! Conheço ela... É a filha da costureira, Dona Ruth. Um exemplo de beleza e simpatia. Quando eu e a mana éramos pequenas, a Mirian sempre protegia a gente dos guris maiores, quando eles queriam brigar com a gente. A bondade dela é incomparável... E realmente é bonita!
    Miguel olhou para Lenir, suspirando de alívio, por ela ter descrito Mirian realmente como  era.  A amiga continuou, apoiando a mão no ombro de Miguel:
    _ E pode ter certeza que a Mirian, se tu namorar ela, vai te fazer muito feliz... E eu e o Chico vamos apoiar esse namoro!
    _ A gente conversa muito toda vez que vou lá no armazém. Temos muito em comum... Ela tá muito interessada em aprender a voar de asa delta, e eu também. Eu estou no quartel, e ela falou que, se ela fosse rapaz, ela também estaria prestando serviço militar.
    O entusiasmo de Miguel foi interrompido pela chegada de Arnaldo.
    _ Talito! Dulce... Gilmar... Que surpresa! Vanham comigo, que eu vou ajudar a levar a cadeira de rodas. Eu tô instalado na casa do Juvenal!
    Após a retirada do pai, dos tios e do primo, Miguel olhou de relance para Lenir e Francisco.
    _ Vocês não estão achando que tá tudo muito quieto? Isso não é normal...
    Repentinamente, Lenir arregalou os olhos.
    _ Claudino... Valéria...
    Realmente, o silêncio imperava no local. Normalmente, os dois estariam correndo pelo pátio, brincando ou fazendo alguma travessura.
    _Onde está aquela dupla terrorista?
    Francisco não compreendeu.
    _ Dupla terrorista?
    _ Claudino e Valéria. Eles normalmente estão por aqui, virando tudo de pernas pro ar! Isso não é normal...
    Miguel manteve a calma, falando com voz branda:
    _ Olha. Vamos ficar bem quietinhos, que talvez assim a gente escute a voz deles. Eles normalmente parecem duas matracas, de tanto que conversam!
    Após um breve silêncio, ouviram a voz de Valéria:
    _ Aqui! Tá sujo aqui! Deixa eu  lavar!
    _ Aqui sou eu que lavo, Valéria! Tira essa mão daqui!
    O som era longínquo, vindo da sanga próxima ao potreiro. Francisco e Lenir entreolharam-se, assustados.
    _ Será que aqueles dois foram tomar banho na sanga? É muito fundo lá pra eles entrar lá sozinhos! Eles podem...
    Miguel olhou desconfiado.
    _ Será que... Estão... Tá frio demais pra tomar banho na sanga E lá costuma ter sapos, rãs...!
    Francisco ficou estático. Miguel pôs a mão no ombro do amigo, e lembrou-se dos treinamentos de campo do quartel.
    _ Não é o momento de ter medo de sapos, recruta! A missão é resgatar as crianças, e vamos cumprir com êxito!
    Francisco respirou fundo, sentindo aos poucos o tremor diminuir. Brincando, mais calmo, prestou continência a Miguel.
    _  Sim, Senhor Miguel!
    Miguel olhou com reprovação para o amigo, e o tom imperativo da voz fez Francisco corrigir-se:
    _ No quartel não temos nome, recruta. Só sobrenome!
    Francisco repetiu a continência, agora com a resposta certa:
    _ Sim, Senhor Engelmann!
    Miguel sorriu.
    _ Agora sim, recruta! Bora lá, procurar as crianças!
    Os jovens correram na direção da sanga, deparando-se com mais uma cena inusitada. Claudino estava dentro da sanga, com um sabonete, tentando dar banho no bezerro Tadeu.
    _ O Tatá não queria tomá banho, mana! Mas ele tava todo sujo, e nós tamo lavando ele, prá ele ficá bonito e cheiroso!
    Valéria completou, olhando temerosa para Francisco, segurando um frasco de shampoo:
    _  Não xinga nós não, Chico... O Tatá não queria entrá na água, mas o Claudino empurrou ele e caíram os dois na água! Tamo quase acabando o banho dele!
    A vontade era de colocar as duas crianças no castigo imediatamente, porém, os jovens desataram a rir, diante da cena. Passados alguns minutos, o bom senso prevaleceu, e a voz de Miguel, imitando o tom imperativo do general Brackemeyer fez as duas crianças ficar sérias.
    _ Acabou o tempo do banho, recrutas! O cavalo Tatá tá limpo e vcs dois estão dispensados!
    Claudino fez beijinho.
    _ Mas Mig... Tá tão bom na água... E o Tatá não é cavalo... E ainda tá sujo...
    Miguel subiu o tom de voz, apontando para a casa.
    _ Não questione minhas ordens, recruta. Já pro alojamento! Bater em retirada, imediatamente!
   A voz forte de Miguel, ainda imitando o general, fez Claudino baixar os olhos e sair da sanga, porém, rebatendo:
    _ Tá bom, Mig... Mas... O Tatá não é cavalo...
    A postura e o olhar imperativos de Miguel, apontando para a casa, fizeram as duas crianças baixar os olhos e voltar na direção da residência de Tina. Miguel, mais relaxado, dirigiu-se à Lenir, pousando a mão suavemente em seu braço:
    _ Esse guri corre o risco de pegar uma baita gripe. Tá todo molhado, e tá friozinho... Vai lá e ajuda teu mano a tomar um banho quente, ou ele vai acabar no hospital como a tia Tina!
    Uma sombra de tristeza fez Lenir baixar os olhos. Miguel sentiu o efeito das palavras que acabara de proferir, e tentou amenizar, falando com suavidade:
    _ Desculpa , mana... No quartel a gente aprende a ser duro nas situações difíceis, pra conseguir aguentar... Vai, lá... Eu e o Chico vamos tirar o Tadeu da sanga, ou o coitadinho vai ficar na água o dia inteirinho, e também vai ficar doente.

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⏰ Última atualização: Dec 11 ⏰

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