Tina, após o falecimento do marido, teve que reorganizar sua vida.
_ Preciso aprender a lidar com as máquinas que o Claudio manejava, mas não tenho a mínima noção. Não sei nem como se liga elas.
Teresinha sorriu:
_ Pois eu acho que tu deve é fazer os servicinhos leves da padaria, amada. Tem um herdeiro a caminho! Deixa esse serviço pesado pra um homem fazer!
_ É justamente por causa desse herdeiro que eu quero aprender a manejar tudo que eu conseguir. Sei que teremos dias difíceis pela frente, e não quero depender de homem nenhum pra resolver meus problemas.
_ Mas pode te dar problemas na gravidez se fizer uso de força física exagerada...
_ Problema eu vou ter se eu deixar a peteca cair. Sempre trabalhei na lavoura com o Claudio, na gravidez das manas. E olha que tive uma gestação maravilhosa!
_ Mas não dá pra adiar esses problemas? Ou pedir pro Juvenal resolver?
_ O galpão da lenha tá quase vazio, e as encomendas estão a mil. Não vou parar a produção agora. Só no resguardo...
_ E como vai fazer?
_ A motosserra é uma máquina perigosa de manejar, mas não posso ter medo. Tenho que ter cuidado pra não me machucar e não machucar ninguém.
_ Alguma vez usou a roçadeira?
_ Pois nem a roçadeira eu sei lidar. Antes, sempre foi o Claudio quem roçava o pátio e as lavouras. Agora, tá tudo inçado!
_ O Juvenal pode te ajudar.
_ Vou deixar o Juvenal no trator. A primeira plantação meu irmão fará por nós. Depois, teremos que plantar milho e semear a pastagem. Mas vou pagar o Juvenal pelo serviço, exatamente como o Claudio faria. Vamos dar a volta por cima!
_ Admito que tem muita coragem, Tina. Eu acho que eu cairia por terra!
_ Que nada, Teresinha. Tu faria exatamente o que eu tô fazendo! Tenho que honrar a promessa que fiz ao Claudio.
_ Mas como vai fazer pra aprender a lidar com essas máquinas que tu mal consegue erguer?
_ Bom... Primeiro, troco essa motosserra grande por uma de menor peso, que eu consiga manejar com facilidade... Meu irmão me ofereceu uma troca... Ele tem uma serra levinha, levinha... Fácil de ligar! A roçadeira, eu peço pro Alceu me mostrar como manejar. Tenho que seguir em frente, pois se eu olhar pra trás eu não páro de chorar.
Teresinha olhou para Tina com carinho.
_ Aqui na padaria, pode deixar que eu vou dar conta quando tu não estiver aqui. Vou ensinar uns pré adolescentes a fazer bolachas e doces!
_ Boa ideia, Teresinha! Assim as crianças aprenderão um ofício, nos horários vagos da escola.
_Falando nas crianças... Acha que vai dar certo a estratégia da caixa com as crianças?
_ Olha, Teresinha... Vamos usar as perguntas pra começo da história que vamos contar sábado. A história será inventada de acordo com o que escreverem, não importa quais sejam suas dúvidas! Importa é que tenham a coragem de admitir dúvidas. Aquele que diz não ter dúvidas, mente...
_ Admito que tem razão. E admiro tua coragem de colocar isso numa sessão de contação de histórias...
_ Pois é esse o lado leve da coisa, amada. Vamos chegar aos coraçõezinhos desses jovenzinhos de fininho, sem eles notarem... Aí, o resto é com Deus.*
Após um dia exaustivo, Maria, Ângelo e Irene voltaram até a moradia improvisada sob o viaduto.
_ Como tu e o teu filho tomam banho, Maria? Eu tô acostumada a tomar banho quente, de banheira...
_ Pois aqui cada um se vira como pode... Eu e o Ângelo nos lavamos no banheiro público aqui perto. Levo um balde que achei no lixão, sabão e uma toalha velha...
Irene olhou para Maria e o filho, franzindo o cenho.
_ Eu? Banho frio, de canequinha? Nunquinha!
_ Ou é isso ou logo os urubus vão pensar que tu tá podre...
_ Não... Não precisa terminar de falar... Isso traz mau agouro. Já chega que tenho uma ferida nas costas que me incomoda faz cinco anos.
_ Cinco anos? E nunca foi ao médico?
Irene acendeu um cigarro e soltou longas baforadas de fumaça.
_ Eu fui ao médico sim, mas não mostrei. Uma feridinha boba e nojenta, que sempre gruda na roupa. Um dia desses eu vou comprar de novo aquele remedinho que eu comprava e mandava as minhas crianças colocar...
Irene interrompeu a frase, ao lembrar de Miguel e Mary. Maria estranhou:
_ Mas... Se Deus te confiou filhos, por que não estão aqui contigo?
_ Não... São só dois "enganos"... Um deixei pra trás com o pai quando eu soube que ele ficaria aleijado... A outra, nem sei onde anda...
Irene parou ao notar a expressão de reprovação no rosto de Maria, que não conseguiu evitar a pergunta:
_ Não tem medo da justiça de Deus?
_Haha... Eu dou gargalhadas desse Deus no qual tu acredita!
_ Pois eu acredito que tá na hora de acertar contas com esse Deus que tu renega!
_ Contas... Que contas? O que tu sabe sobre isso? Eu não devo nada pra ti... Muito menos ao teu Deus!
_Cada um escolhe... Eu e o meu filho vamos tomar banho.
Sob a frieza do olhar e das palavras de Irene, Maria e Ângelo saíram em direção ao banheiro público. Irene olhou para as próprias mãos, e resolveu segui-los.
_ Não vou conseguir comer nada assim!
Ao retornarem, Maria preparou a refeição da noite.
_ Temos que nos apressar, porque, se escurecer, fica difícil dar comida pro Ângelo.
Irene permaneceu calada, comendo as últimas migalhas do pão. Maria sorriu:
_Ainda bem que achamos umas caixas de papelão novas. Hoje vamos dormir em cama limpa!
Maria e Ângelo deitaram sobre a cama improvisada de papelão. Maria orou em silêncio:
_ Senhor! Milhões de graças pela comida de hoje, por esse lugar seco e quentinho e pela saúde do Ângelo. Abençoada seja nossa noite.
Após ouvir a oração de Maria, Irene não pôde deixar o sarcasmo de lado:
_ Isso aqui é tu chama de filho com saúde? Me poupe de ouvir asneiras! O guri não tem pernas e tu agradece ao teu Deus por isso!
Maria ouviu as palavras de Irene. Porém, fechou os olhos e continuou orando:
_ Deus... Ela não faz ideia da missão de cada um de nós. Que ela também cumpra sua missão, conforme tua vontade, Senhor. Faça-se cumprir ao que cada um de nós esteja destinado! Gratidão a ti, meu Deus. Amém.
Maria beijou e abraçou o filho carinhosamente e adormeceu. Ângelo ficou ali, desperto, olhando para Irene. Parecia que tinha algo para dizer.
_ Por que tu tá me olhando assim? Vai dormir, guri!
A criança ficou olhando para Irene longamente.
_ Maria! O que tem com teu filho?
Em uma fração de segundos, Irene viu Maria desaparecer da sua visão, como que por encanto. Arregalou os olhos e procurou-a por todos os lados.
_ Como tu pode desaparecer assim, Maria? Tu é assombração?
As palavras de Irene ecoaram entre as pilastras do viaduto. Pensou estar sonhando, porém, o pequeno Ângelo olhando para ela mostrava que estava bem desperta.
_Acho que tô ficando maluca! Tô vendo gente que aparece e desaparece do nada.
Irene acreditou ter tido uma ilusão de ótica. Esfregou os olhos.
_ Mas que Dianho! Onde essa daí se meteu? Esses dois aparecem do nada... Depois, a Maria some no nada, e deixa comigo esse guri aleijado...
Ao pronunciar a palavra "aleijado", Irene sentiu uma dor aguda nas costas, na região da lesão provocada pela pinta. Acendeu um cigarro, usando a bituca do cigarro anterior.
_ Bom... Não vou me preocupar com ela, e muito menos com esse guri. Eu tô morta de cansaço. Vou arrumar meu lugar pra dormir.
Irene arrumou o papelão para dormir. Porém, ficou observando Ângelo , que se remexia vez ou outra, sozinho na cama improvisada de papelão. Parecia que o menino procurava o calor da mãe. Sentiu um arrepio de frio percorrer seu corpo.
_ Que friiiio!!! Será que esse guri não tá com frio também? A mãe dele não tá aqui pra esquentar ele... E essa cama de papelão não esquenta nada!
Irene tentou ignorar a criança por um longo tempo. Ficou ali, deitada, olhando para aqueles olhos inocentes que a fitavam.
_ Poxa! Assim eu também não consigo dormir!
Após ver Ângelo se remexer, e escutar o seu gemido frio, Irene sentiu o despertar de algo profundo.
_ Não chora, guri. Daqui a pouquinho tua mãe volta!
O silêncio que imperava sob as pilastras do viaduto a fez ouvir nitidamente os gemidos de Ângelo. Decidiu pegar seu papelão e juntar-se ao menino, abraçando-o.
_ Tu não vai passar frio, guri! Eu vou te esquentar, até que tua mãe volta.
Pela primeira vez na vida Irene sentiu uma sensação diferente. Na penumbra de um viaduto, aquele pequeno ser indefeso, agora adormecido profundamente, agarrado a ela, fez brotar um sentimento antes jamais experimentado.
_ Logo, logo tua mãe vai voltar, e vai ficar tudo bem.
Fechou os olhos para tentar dormir. Porém, uma estranha luz a fez arrepiar-se.
_ Quem tá aí?
_ Não importa quem sou... Importa o que vim falar. Você nunca protegeu teus filhos, como o fez com essa criança. Agora, tua missão é proteger e cuidar do pequeno Ângelo, que não tem mais mãe.
_ Mas como? Eu conversei com ela agora a pouco... Passamos o dia juntos. Ela me mostrou como separar o lixo pra comprar comida... Até me mostrou onde é o banheiro público...A Maria tá aqui, em algum cantinho... Sei que ela sumiu ma frente dos meus olhos, mas...
Ireme estava estupefata. Seus olhos procuraram a luz encontraram um vulto de vestes longas de cor dourada.
_Mas quem é tu? E como eu vou cuidar desse guri, que não tem pernas?
_ Tu renegastes teu próprio filho, ao saber que ele poderia ficar sem o movimento das pernas. Agora, se quiseres ter a clemência do grande Pai, terás que cumprir essa missão! E saberás exatamente o que fazer, porque o Ângelo é um ser enviado por Deus. Ele te ansinará o que é amor incondicional, para que você possa ter a última chance de redimir-se!
As palavras "última chance" a fizeram lembrar de Mary e Miguel. Duas grossas lágrimas brotaram dos olhos de Irene.
_ Sei que a batalha de purificação do teu espírito será longa e árdua, mas é o único caminho a ser percorrido.
Irene olhou chorosa na direção da luz.
_ Mas... Eu não tô preparada pra cuidar de um aleijado! Ninguém me mostrou o que preciso fazer!
O vulto estendeu-lhe uma pequena caixa dourada.
_ Mulher... Ninguém está "preparado"... Deus é quem dá a missão que cada um deve cumprir! Cada um, ao nascer, recebe do Pai Maior uma caixinha vazia como esta, que é o seu espírito... Cada ato e fato que a pessoa faz durante a vida, será o conteúdo da sua caixa... Aproveite os dias que te restam para encher tua caixinha de atos bons. Ou Deus não se agradará do conteúdo do teu espírito quando você for devolver.
Irene olhou para o vulto, apertou os olhos para ver melhor, mas ele desapareceu num lampejo. Esfregou os olhos.
_ Isso foi um sonho! Isso não existiu!
Irene sentiu o pequeno Ângelo despertar em seus braços e arregalou os olhos. O menino brincava com uma pequena caixa dourada, que Ângelo entregou- lhe, beijando-lhe a face.
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INFÂNCIA ROUBADA
RandomHistória baseada em fatos reais. ALERTA DE GATILHOS: contém violência, abusos, suicídio e morte. Não indicado para menores de 18 (dezoito) anos e/ou pessoas sensíveis aos assuntos abordados. Miguel e Mary são duas crianças, irmãos... Após a tenta...