106 - Um frango muito estranho

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Uma semana depois, a sexta-feira amanheceu com Edelvina abrindo a porta, dando de cara com Irene, toda disposta:
_ Tô aqui de novo, Vina! Vim fazer tua faxina! Ainda te devo dinheiro...
A dona da casa e a filha entreolharam-se.
_ Mas... Tu não tava doente? A minha casa não tá tão suja assim... A gente limpa tudo todos os dias, e faz só duas semanas que tu fez uma faxina geral...
_ Eu tava doente, sim. Mas por causa do teu ritual eu tô muito melhor. Eu ainda tô devendo dinheiro pra ti, daquele trabalho que me ajudou tanto.
Eliane hesitou antes de anunciar a saída das duas da casa. Porém, julgou que Irene teria o bom senso de não trabalhar sem a presença delas ali.
_ Pois então, senhora. Nós estamos saindo agora pra fazer algumas compras. Quem sabe, a senhora poderia vir amanhã, quando vamo tá em casa.
Irene tentou manter em vão uma postura ereta e elegante diante das duas mulheres. Porém, a força da gravidade parecia empurrar os ombros para baixo e ressaltar mais ainda sua corcunda acentuada. Eliane fungou e franziu a testa, diante do cheiro exalado pelo ferimento das costas de Irene.
_ Poxa, mãe... Acho que tem um bicho morto embaixo do porão da casa. Tem um baita cheiro de carniça aqui...
Irene disfarçou, tentando argumentar o motivo de sua presença.
_ Vai, Vina! É até melhor limpar quando a gente tá sozinha! O serviço rende mais, e não dá marca de rastros no chão enquanto seca!
As duas mulheres entreolharam-se mais uma vez. Notando que Irene estava determinada a não sair dali, Edelvina falou decidida:
_ Olha, hoje é sexta-feira e é o único dia que tem ônibus pra gente ir pra cidade. Tenho umas contas pra pagar que vencem hoje. Ou tu vem só amanhã, ou não precisa vir mais! A gente até perdoa o resto da tua dívida com a gente.
_ Mas capaz, Vina! Se eu ficar devendo, vou ficar doente de novo! Venho aqui amanhã de manhã, bem cedinho!
Lembrando da última vez que Irene as tirara da cama de madrugada, Edelvina desviou o olhar. Após um breve silêncio, a rispidez que fez Irene sair:
_ Não quero que venha de manhã, Irene! Venha só de tarde, porque de manhã a gente quer dormir. Temos um bingo pra ir hoje, e vamos deitar tarde.
Após a retirada de Irene, Eliane olhou para a mãe, interrogativamente.
_ Bingo? Que bingo? É hoje de noite que eu tenho que fazer a última parte do meu ritual, porque é lua cheia! Se eu não fizer o trabalho completinho, a entidade não me ajuda a trazer o homem pra mim! Agora tu inventa de ir no bingo?
Edelvina sorriu.
_ Não tem bingo nenhum... Eu inventei a história do bingo. Tu acha que eu iria deixar ela tirar a gente da cama de madrugada, e deixar ela virar nossa casa de pernas pro ar de novo? Me poupe!
Ao cair da tarde, na residência ocupada por Irene e Macega.
_ Vou jogar uma canastra lá no buteco do Arlindo. Hoje é sexta e o pessoal que planta batata vai fazer torneio de canastra e não posso faltar.
Irene olhou para o homem, desconfiada.
_ Canastra ? Vai voltar tarde de novo? E todo perfumado?
Macega virou-se e desferiu furiosamente uma série de bofetadas em Irene, que, consternada, encolheu-se ao chão, diante da dor.
_ Quando tu sai sem avisar onde vai, eu tenho que ficar quieto, né? Muié miserável! Eu não posso sair nem pra uma canastrinha com meus amigos que tu já vem me atazanar!!
Ainda encolhida ao chão, a mulher, aos prantos, tentou segurar a perna de Macega.
_ Não vai não, Macega! Tu vai voltar bêbado de novo, e todo perfumado... Já aconteceu duas vezes... Sexta e segunda...
Colerizado, o homem revidou:
_ Então é isso? Tu tá achando que eu tô indo no putedo? Bela confiança tu tem em mim!
E desferiu uma série de chutes em Irene, fazendo-a encolher-se mais ainda de dor.
_ Aaaaaai... Isso dói!
_ Dói é saber que eu não posso sair pro meu joguinho de canastra sem antes tu me azucrinar com essas lamúrias de crocodilo! E o fato de eu tomar umas pingas é pra esquecer que a mulher que me espera em casa é tu!
_ Mas, por que tu volta todo perfumado?
Macega virou-se e soltou uma sonora gargalhada.
_ Eu achei perfume lá na encruzilhada da saibreira, muié. E bem nos dois dias que eu fui no buteco. Acho que é alguém que sabe que eu passo ali e me deixa de presente!
Macega virou-se de frente para o espelho, ajeitando os cabelos.
_ Tem alguém que tá de olho em mim... Olha pra mim, muié... Eu não tô bonito? Eu não sou "o cara"?
Às lágrimas, Irene ainda tentou segurar Macega pela perna, porém, o homem desvencilhou-se dela e saiu desferindo novos xingamentos:
_ Pois eu não vou dar satisfação pra muié nenhuma, sobre nada da minha vida! Eu tenho mais é que sair e me divertir! Porque se eu ficar em casa, acabo me enforcando de tédio!
Irene tentou argumentar, para tentar convencer Macega. Porém, o estrondo da porta batendo com força mostrou que ele já não estava ali. Foi até a porta, abriu-a e viu apenas um vulto se distanciando estrada afora.
_ O médico disse que tu não pode me deixar sozinha, Macega! Maceeeeeega!!!
Meio cambaleante, Irene saiu em direção à estrada. A dor fazia-a arquear ainda mais seu corpo. Andou alguns metros e seus olhos encontraram três aves negras pousadas sobre a estrutura de concreto em forma de "T"que sustentava o varal de roupas. Uma pontada de dor a fez encolher-se novamente ao chão . Duas grossas lágrimas brotaram dos olhos de Irene.
_ Eu tô sozinha de novo... Quem vai me ajudar agora?
Sentiu que algo pesava em suas costas. Tentou em vão ver o que era, mas sentiu o pescoço travado...
_ Tem alguém aí?
Uma fração de segundo, e um estampido cortou o ar, fazendo dezenas de penas negras flutuarem sobre Irene...
_ O sonho...
A imagem nítida daquele sonho que tivera quando estivera vivendo no lixão de Caxias... Tudo voltou como um relâmpago...Com muito esforço conseguiu erguer a cabeça e ver o jovem sorridente, vestindo roupas camufladas e coturnos que segurava uma espingarda e um urubu morto.
_ Aquele sonho... Eu não acredito!!! É o mesmo!!!
O choro copioso sacudiu o corpo de Irene. Miguel aproximou-se da mulher, ironizando:
_ A senhora deveria alimentar melhor os seus bichinhos de estimação, madame! Esse aí já era! Tentou comer a sua carne!
Irene olhou para o rapaz, sem reconhecer o filho que, a muitos anos atrás, deixara naquele mesmo pátio para morrer, ou ficar paraplégico.
_Quem é?
Miguel cruzou os braços, ergueu o rosto contra os últimos raios de sol para evitar que Irene o reconhecesse.
_ Não importa quem eu sou! Só importa que eu vim cumprir minha missão! A senhora, levante-se e vai, porque eu matei só um urubu. Vai saber quantos ainda têm por aí...
Irene tentou erguer-se, porém, cambaleou novamente. Miguel estendeu-lhe a mão, notando que nos braços da mulher tinha hematomas de possível agressão. Manteve a voz com altivez, imitando o General Brackemeyer:
_ O que aconteceu com seu braço, senhora? Andou brigando com um batalhão de soldados?
Diante da ironia do rapaz, Irene tentou esconder os hematomas nos braços, procurando justificar:
_ Eu me machuquei no cabo da enxada. Tava capinando e não vi uma touceira de espinhos...
Fingindo acreditar nas alegações da mulher, Miguel cruzou os braços novamente, permanecendo em tom altivo:
_ Pois muito bem, senhora! A senhora vai pra dentro de sua residência agora mesmo e feche bem as portas e as janelas! Ou eu mando aquele bando de urubus que estão esperando o jantar deles vir aqui e terminar o que o primeiro deles começou, quando tava nas tuas costas e eu matei!
Trêmula, sem reconhecer Miguel, Irene adentrou na casa. Em gestos trêmulos, fechou a porta e as janelas. Miguel, ainda sob o esforço descomunal para não chorar, largou o urubu morto na soleira da porta e seguiu estrada afora, em direção à casa de Tina. Ao chegar, Francisco e Lenir entreolharam-se. Estranharam a expressão triste e as lágrimas que desciam pelo rosto do jovem, ainda segurando a espingarda.
_ Mig, meu irmão! O que houve? Matou um fantasma?
O jovem guardou a espingarda, suspirando profundamente. Os olhos inexpressivos e sua palidez denunciavam que algo não estava bem.
_ Eu... Eu acho que eu vi um fantasma sim. Mas não matei ele... Matei só o urubu que tava em cima dele...
Lenir olhou preocupada para o amigo.
_ Fantasma? Urubu? Acredito que precisamos conversar...
_ Olha... No quartel, a gente passa todo tipo de situações... Mas eu nunca passei lá, o que aconteceu comigo hoje.
Francisco pôs a mão no ombro do amigo.
_ Mig... Podemos ajudar? Tamo aí pra isso!
Enxugando as lágrimas com as costas das mãos, Miguel sentiu que poderia confiar nos amigos.
_ Bom... Vou tentar explicar desde o começo, aí vão entender.
Enquanto Miguel contava com detalhes o ocorrido, nenhum dos três notou que, no paiol, inocentemente , Valéria e Claudino traçavam um plano:
_ Vamo até o sótão do paiol, que eu achei um brinquedo legal guardado lá, escondido no meio da palha de milho... Acho que o Papai Noel escondeu ele lá, pra trazer pra gente no Natal.
Cuidadosamente, as duas crianças subiram uma a uma a velha escada de paus que levava ao sótão do paiol. Valéria, ao ver o brinquedo, comemorou ruidosamente:
_ Aeeeeeeee!!! A gente descobriu o esconderijo do Papai Noel! E ele vai trazer uma bicicleta!
Claudino, cauteloso, escondeu novamente a bicicleta, cobrindo-a novamente com palhas. Ergueu as sobrancelhas, colocando o dedo indicador sobre os lábios, em sinal de "silêncio".
_ Esse vai ser o nosso segredo, Valéria. Ninguém mais, além de nós dois sabe o esconderijo do Papai Noel!
Com os olhos brilhando diante da espectativa de ganharem uma bicicleta, Valéria apoiou-se na velha parede do sótão, cuja tábua já podre, cedeu. A menina desequilibrou-se, caindo em queda livre, rente ao lado externo do paiol.
_ Valéria!!!
Claudino, apavorado diante da situação, desatou no choro. Desceu rapidamente a escada de paus, correndo em direção à casa de Tina, onde os três jovens conversavam. Aos prantos, puxou a irmã e Francisco pelas mãos, porta afora.
_ Mana! Mana! Chico! Chico! Aconteceu um acidente no paiol! A Valéria...
Miguel, treinado em emergências durante os treinamentos de campo do quartel, puxou os coturnos e saiu em disparada em direção ao paiol.
_ Valéria! Responde aqui pro Mig! Onde tu tá?
Seus olhos procuraram a menina nas imediações do paiol, encontrando apenas algo se debatendo no chorume de esterco, rente a uma enorme pedra.
_ Valéria! Calma... Calma... Respira... Se segura na pedra do teu lado que eu pego uma corda pra te tirar daí!
Sem perder um segundo, Miguel saiu e voltou num Zás-trás. Fez um laço e jogou-o sobre a menina.
_ Passa os dois braços e coloca no peito. Depois, segura firme na corda! Nós vamos te puxar rapidinho!
Chorando, Valéria seguiu as orientações, tremendo. Francisco e Lenir chegaram bem a tempo de ajudar a puxar a menina do atoleiro de chorume.
_ Da próxima vez que quiser aprender a voar, pede pra gente fazer uma asa delta pra ti, guria!
Miguel ergueu-a nos braços, levando-a diretamente ao banheiro. Passou a mão carinhosamente sobre a cabeça coberta de chorume da menina.
_ Agora, a mana vai te ajudar a tirar essa nhaca. Eu e o Chico vamos lá trocar aquela tábua podre, antes que o Claudino também resolva "voar lá de cima".
_ Louvado seja Deus, que ela não caiu em cima da pedra... Poderia ter morrido!

*

No buteco do armazém do Sr Arlindo, Alfredo já o esperava.
_ Tu demorou hoje, homem! O que foi? A véia doida te segurou lá?
Macega empurrou o palheiro para o canto da boca, mastigando-o.
_ Tá pra nascer a muié que vai segurar o Macega quando ele quer ir pro buteco! Dei uma corsa nela, que deve tá gemendo até agora!
_ Mas vamo aproveitar o tempo, homem! Pega o baralho com o Arlindo e traz uma caipira das boas, pra abrir o caminho pra sorte no jogo!
Os companheiros de canastra foram chegando um a um. Alfredo, de vez em quando, ia até o balcão.
_ Mais uma rodada de caipira, seu Arlindo! Tá todo mundo com a goela seca hoje!
_ Terminem essa partida e chega pra hoje, gente. São quase dez horas da noite! Eu fecho às dez!
Macega, mastigando o palheiro, gritou:
_ Tá bom, chefe! Mas traz uma última rodada de pinga pra nós aqui! Assim que termina esse jogo, vamo tudo pegá estrada!
Após a última rodada de caipira e a finalização do jogo de canastra, os homens que participavam do torneio foram-se retirando um a um. Macega e Alfredo permaneciam sentados.
_ Tá na hora de fechar, e ir dormir. Amanhã cedo queremos limpar o armazém antes de abrir para os clientes.
_ Traz uma pinga pra gente levar junto, seu Arlindo. Eu pago!
Os dois homens saíram abraçados, segurando a garrafa de pinga que compraram.
_ Quero passar na minha encruzilhada da sorte, Alfredo! Deve ter até um dinheiro lá hoje!
Ao chegar próximo ao local onde Eliane acabara de fazer a última etapa do ritual, a luz das velas vermelhas foram atraindo o olhar de Macega.
_ Olha, Alfredo! A fada da sorte me deixou mais um presente! E é igualzinho aos outros! Vô ficá bonito e cheiroso por muito tempo!
Alfredo, cruzando a estrada para não aproximar-se do local, mostrou-se receoso, apertando o passo.
_ Pois eu acho que é a maior furada, tu levar pra casa o que não é teu! Eu não quero saber... Tô indo pra casa!
Aparentemente hipnotizado pela expectativa de se apoderar mais um perfume, Macega enrolou as palavras:
_ Ô Alfredo... Pode ir, cumpadi... Tu não precisa me ajudar a pegar isso aqui! É só uma água de cheiro, que vai me deixar bonito e cheiroso!
Macega sentou-se sobre o saibro, abrindo o frasco de perfume. Pingou algumas gotas do perfume na mão e aspirou, colocando uma boa quantidade do conteúdo na roupa, no rosto e nos cabelos..
_ Mmmm... Booooom demais da conta! Tô chique demais agora!
Trocando as pernas, Macega conseguiu, a muito custo, chegar até a porta da casa invadida por Irene e ele. Sentiu algo macio sob os pés. Apontou a brasa do palheiro para os pés e recolheu o urubu morto, deixado ali na véspera por Miguel. Enrolando a língua devido à embriaguez, abriu a porta, contando vantagem:
_ O Papai Noel existe! Eu aqui, com fome, e me aparece um frango prontinho pra depenar e cozinhar! Eu hoje vou me dar bem...
E seguiu porta adentro, largando o animal morto sobre a mesa, colocando água para aquecer. Espiou pela porta do quarto...
_ Ainda bem que a muié tá dormindo... Assim, ela não me enche o saco por causa do perfume que achei!
Depenou e esquartejou a ave, ajeitando os pedaços da carne na banha pré aquecida na caçarola.
_ E agora, só esperar fritar... Vou tomar mais uma pinga, pra abrir o apetite! Depois desse rango, vô ficá forte que nem um touro!
Revirando os olhos, arriou na cadeira próxima ao fogão. Abriu a garrafa de pinga e foi bebendo, gole a gole, até acabar. Cambaleando, desligou o fogo, empunhando uma coxa da caçarola.
_ Mmmmmm... Booooom... Depois dizem que homem não sabe cozinhar!!!

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