18 - O segundo abuso

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_ Como assim? Resolveu cortar os cabelos? De quem foi essa ideia?! Eu não gostei! Como vou levar minha filha pra sair agora?Ficou feia... Como vou te levar pra te mostrar pras minhas amigas ricas agora? Parece um guri, e um guri feio ainda por cima!
Irene não se conformava com o fato de não poder mais ostentar a garotinha das longas tranças que costumava levar aos encontros com as amigas.
_ Vai ficar de castigo por uma semana, Mary! E tá proibida de trazer livros da biblioteca da escola a partir de hoje! São os livros que tu traz pra ler que te fazem desandar! Livros não servem pra nada! Tu tá entrando na fase da rebeldia, guria, e vou manter as tuas rédeas curtas!
Mary até fez menção de contar à mãe que o cabelo foi cortado por Léo, em retaliação pela sua resistência, porém, sabia que isso não mudaria a opinião de Irene.
_ Mas mãe... Os livros são...
_ Livros são uma perda de tempo! Eu nunca precisei de livros e olha onde eu tô! Sou rica! Eles só estragam as crianças, fazem elas ter ideias diferentes das suas mães... Deixam as crianças rebeldes, como te deixaram!!!
Mary não conseguia se imaginar sem poder fugir para o seu mundo da leitura, pois os livros que pegava na biblioteca eram um refúgio nos momentos em que Irene tinha seus acessos de raiva.
Porém, não contestou, pois guardara bem o livrinho que Teresinha lhe dera. Teria muito o que ler e sentia uma força imensurável emanar daquele pequeno livro para si.
_ A partir de hoje, uma semana... Não quero te ver com livro de leitura nas mãos! E se trouxer livro da escola, boto no fogo! Pode brincar com o Léo... Ele vai te ensinar umas coisas novas! Ele é teu irmão agora.
Mary sentiu-se desamparada, mais uma vez. O fato de ter que brincar com Léo deixava-a sem chão e com um sentimento de ter algo de errado com esse "brincar".
_ Ouvi falarem meu nome?
Mary sentiu um sobressalto ao ver Léo apoiado no umbral da porta. Irene aproveitou e emendou:
_ Falei pra Mary pra brincar contigo ao invés de enfiar a cara nesses livrinhos dela... Esses livros da biblioteca estão desviando a cabeça da Mary das coisas que ensinei pra ela!
_ Deixa comigo, madame! Vou ensinar pra essa princesinha onde e como se coloca uma coroa!
Mary estremeceu ao ouvir a malícia na voz de Léo. O nojo lhe subiu à garganta e ela saiu correndo até o banheiro. Virou a chave e se trancou no pequeno espaço, o gosto de bile subindo e fechando-lhe a garganta.
_ Ainda bem que hoje eu tenho aula! Pelo menos, algumas horas de paz e segurança eu vou ter! Mais sorte ainda é que o Léo não tá na minha sala. Assim vou conseguir respirar!
Mary lembrou-se do jeito tranquilo e puro de Francisco. Com ele sabia que não havia malícia nas conversas, bem ao contrário de Léo, que causava-lhe uma sensação de repulsa... Ouviu alguém tentar destravar a porta do banheiro.
_ Quase na hora do almoço, princesinha! Tá se arrumando bonitinha, pra gente brincar um pouquinho? Ainda temos uns vinte minutos antes da hora do rango!
Mary estremeceu ao ouvir a voz irônica de Léo novamente. Parecia que Léo estava em todos os momentos, em todos os lugares... A menina sentia-se sufocada com tanta perseguição.
_ Vai embora, Léo! Não quero brincar de nada!
_ Pois aí que tu te engana, guria! Se eu te digo que eu quero brincar é porque tu também tem que querer! Lembra do nosso combinado?
_ Não combinei nada contigo, Léo! Vai embora!
_ Tá bom... Vou mostrar um lençolzinho colorido pra tua mãe! E vou dizer que tu te ofereceu pra mim... Eu sei que ela vai acreditar em mim! Eu sou um ótimo ator... E, se eu precisar, faço uma cena, choro e me faço de vítima, e tu fica como a culpada e ainda apanha da tua mãezinha querida!
_ T-Tu não faria isso!
_ Quer pagar pra ver? Se eu fosse tu, eu ia sair bem boazinha desse banheiro, e brincar logo!
Mary entreabriu a porta do banheiro, tremendo da cabeça aos pés... Léo virou-se e girou a chave na porta do quarto.
_ Aaaa, tu tá tremendo, minha irmãzinha! Assim vai ser até mais emocionante! Mostra que tu gosta de brincar comigo!
Mary olhou para Léo e explodiu em choro... A repulsa que sentia enquanto Léo a tocava a fazia querer fugir do mundo. Os minutos de tortura pareciam horas...
_ Mary! O almoço tá na mesa. Depois tem aula! Não achei o Léo ainda! Se tu achar ele , fala pra ele!
Mary fez menção de falar pra mãe que Léo estava em seu quarto, abusando dela... A mão de Léo cobriu a boca de Mary, com um gesto de advertência. A voz de Irene ainda soava:
_ Tá ouvindo, Mary?
Léo soltou a boca de Mary, pedindo com um gesto para responder para a mãe.
_ Sim, mãe...
As lágrimas ainda caíam pelo rosto de Mary, enquanto Léo se vestia minutos depois.
_ Agora, princesinha... Seja boazinha , bota o uniforme e vai almoçar. Não quero que tua mãe e meu pai façam perguntas, ou vou ter que contar umas histórias pra eles!
_ N-Não pode fazer isso!
_ Posso e vou fazer, se não for boazinha... Afinal, sou mais velho e futuro dono dessa casa! Em quem acha que vão acreditar? Vamos?
Léo saiu e Mary voltou ao banheiro. Abriu o chuveiro no máximo e escorregou pela parede até o chão. As lágrimas se misturavam à água que descia sobre ela, e os soluços sacudiam o corpinho da menina. Olhou para o alto, mais uma vez...
_ Deus! Me ajuda! Deus!Me ajuda!
Por entre as gotas grossas de água que desciam sobre Mary, pareceu descer uma luz diferente.
_ Deus! Tu me ouviu!
Uma voz serena, que parecia um sopro de paz, chegou aos ouvidos de Mary:
_ Um dia teu tormento vai cessar, minha filha... Confia!
A voz pareceu não só envolver os ouvidos de Mary, mas também seu coração.
_ Confio, sim...
Mary fechou o chuveiro, Enxugou-se e pôs o uniforme escolar.
_ Atrasada, princesinha! Tava se embonecando?
Valderez interveio:
_ Meninas sempre demoram pra se arrumar, Léo. Vai te acostumando!
_ Quando tu crescer e namorar, vai ver como é!
_ Já tô grande, pai! Olha... Já tô até tirando a barba! E tô dando"uns pegas numas gurias por aí"!
Valderez soltou uma gargalhada.
_ Puxou o pai! Eu comecei cedo também! Na tua idade, não me escapava nenhuma!
Mary baixou o olhar para o prato, porém não sentiu vontade de comer... O assunto entre Valderez e Léo lhe dava nojo...
_ Não tá com fome, princesinha? Talvez abra teu apetite, se eu contar uma historinha pra todo mundo aqui!
Mary engoliu seco... Beliscou um pouco da comida do prato... Porém, tinha dificuldades de engolir. Decidiu mastigar devagarinho, assim, ganharia tempo.
_ Vou buscar meu material de aula.
Léo pula da cadeira...
_ Também vou buscar o meu, princesinha!
_ No fim da tarde, antes de passar na escola, vou passar no hospital pra fazer os meus curativos. Tá me dando uma coceira nos pontos da pinta que tirei...
Léo e Mary saem para apanhar as mochilas. Valderez ergueu as sombrancelhas...
_ Mas... Não fizeram biopsia do material retirado da cirurgia da pinta?
_ Fizeram sim... Deu negativo pra câncer... Logo, logo vou tá"novinha em folha"...
_ E linda... Temos que comemorar a isso! Vou comprar umas felicias pra nós comemorarmos hoje à noite...
_ Mas já? Mal posso me mexer...
_Mas claro, meu amor! Ou tu operou a região íntima também? Tuas cirurgias foram feitas da cintura pra cima, que eu saiba... Da cintura pra baixo, cuido eu!
_ Mas o médico falou-me de um resguardo de três meses...
Valderez saltou da cadeira, franzindo o cenho:
_Mas tu acha que esse doutorzinho tá certo em me proibir de fazer amor com minha linda esposa por três longos e penosos meses?
_ Eu só pensei...
_ Afinal de contas, quem pagou essas cirurgias todas? O SUS? O panaca, aqui, que paga tuas contas, espera duas semanas pra tu voltar do hospital, ficando"na seca"! Se tu não quiser, lá na esquina tem umas dez pra me satisfazer... Só dar uns trocos pra elas... Vão tudo de uma vez... Vou me sentir num harém!
Irene estava pasma com o destino que a conversa estava tomando. Notou a proximidade de Léo e Mary...
_Tá bom. A gente comemora...
_ Assim que se fala, meu tesouro! Vou comprar umas garrafas de vinho de primeira! A noite será toda nossa! Inteirinha!
_ Mas... Eu tô tomando anti-inflamatório, por causa das cirurgias! Não posso beber nada que tem álcool!
_ Agora, que tu tá embaixo do meu teto, quem decide o que tu pode ou não tomar sou eu... Eu sei que tu, com um cálice de vinho, já fica doidinha, imagine se te faço tomar uma garrafa!
_ Tu não seria capaz de me fazer tomar uma garrafa de vinho, com duas semanas de cirurgia...
_ Até duas, meu tesouro... Tu ainda não sabe do que eu seria capaz!
O silêncio imperou no caminho para a escola onde Léo e Mary estudavam. Léo, como de costume, ficou em frente à escola, entre um grupo de amigos. Mary, de cabeça baixa, passou por todos e entrou diretamente para sua sala. Lá encontrou Francisco, organizando seu material escolar na carteira em silêncio. Mary sentou-se silenciosamente, olhando o quadro negro.
_ Não tem nada escrito aí, Mary!
O olhar sombrio, fixo no vácuo do quadro negro, chamou a atenção de Francisco. O amigo sentiu que algo estava errado com Mary. Ficou de frente, segurou as trêmulas mãos de Mary.
_ Mary! Se alguém te deixou triste, me diz, que vou lá e...
_ Não! Não foi nada...
Mary jamais poderia revelar o drama pelo qual estava passando. Francisco já era alvo de chacotas e bullying, por ser pobre e de cor... Se ele soubesse da verdade, certamente mudaria as atitudes em relação à Léo. Até porque a mãe dele ainda estava de licença maternidade e só voltaria em um mês ao trabalho de auxiliar de cozinha.
_ Tu tá triste! Alguém te machucou?
A inocente pergunta de Francisco, e seu sincero gesto de segurar nos ombros e olhar no fundo do olhar triste de Mary, faz ela sentir uma pontinha de paz... Lembrou-se de Miguel, quando o irmão a protegia e salvava dos perigos...
_Todos pra sala! Francisco! Mary! Vocês já arrumaram o material na carteira! Serão os primeiros a retirar livros na biblioteca!
Francisco sai em direção à biblioteca. Mary permanece imóvel, sentada na carteira.
_ Não ouviu, Mary? Hoje é dia de retirada de livros da biblioteca! O Francisco já foi!
Mary saiu lentamente da carteira, andando com o olhar pregado ao chão.
_ O que tem contigo, Mary? Sempre é como uma lebre pra correr até a biblioteca... E estou notando que estás triste. Algum problema com tua mãe?
_ Não. Ela tá bem. Ela já voltou do hospital.
Mary saiu em direção à biblioteca. Teria que esconder de todos o drama que se passava... Dirigiu-se até a estante de livros sobre aviões... Pegou um... Folheou... Devolveu- o em seguida.
_ Não vai retirar hoje? Se não retirar hoje, só semana que vem!
Mary lembrou-se do livro que dona Teresinha lhe dera... Teria o que ler, na semana...
_ Eu ganhei um livro de presente e preciso ler ele primeiro! Semana que vem levo um!
_ Tudo certo, Mary... Deixa só registrar a retirada de livro do Francisco e poderão retornar à sua sala de aula.
Francisco e Mary deixam a biblioteca. Francisco ficou curioso:
_ Ganhou mais livros?
_ Não. Só aquele que tua mãe me deu, mas eu tenho que esconder ele da minha mãe. Ela quer botar no fogo qualquer livro que achar na minha mochila...
_ É por isso que tu tá triste?
Mary evitou falar mais, pois estavam chegando à sala de aula. Sentou-se em silêncio, focando os olhos na carteira.
_ Não retirou livro, Mary? Estranho... Sempre costuma querer levar a biblioteca inteira...
_ Ganhei um pra ler primeiro, professora. Semana que vem eu retiro um.
_ Tudo bem, mas estou achando que tem alguma coisa errada contigo... Quer conversar?
_ Não tem nada, já disse!
_ Se mudar de ideia, sabes que estou sempre aqui!
_ Obrigada, professora.



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