83 - O retorno de Irene

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Ao voltar da UPA, com os exames e o encaminhamento para extirpar a vesícula biliar em mãos, Arnaldo foi até a rádio Esmeralda, onde Juvenal se encontrava no momento.
_ Acho que não vou fazer a cirurgia, meu irmão... Quem vai cuidar dos bichos lá de casa? O médico falou que preciso fazer um resguardo de dois meses. Sem contar o tempo que eu vou ficar no hospital...
Juvenal olhou sério para o amigo.
_ Meu irmão... É pra isso que servem os amigos! Eu tô quase sempre na rádio, mas eu e o Chico podemos nos revezar e ir na tua casa pra tratar os bichos enquanto tu estiver de resguardo.
_Fariam isso por mim?
_ Mas ainda pergunta, meu irmão? Quando eu estava lá no hospital em Canoas vocês deram toda a guarida pra mim e também pra minha família em Caxias. Pro Claudio eu não tenho mais como pagar essa dívida, mas tu agora precisa de uma mão e chegou a hora de retribuir...
_ Então... Posso confirmar a cirurgia? Marcaram pra segunda-feira. Sexta-feira vou fazer os exames pré operatórios e segunda me livro dessa dor desgraçada.
_ Mas claro que confirma! E se precisar de acompanhante no hospital, no dia da cirurgia, vou eu... Depois acredito que uma das manas ou o Chico pode ajudar.
_ Preciso, sim. Mas tem certeza que conseguem tratar meus bichos?
_ Fica tranquilo, Arnaldo. Eu e o Chico damos conta! As manas podem me ajudar na rádio e na ONG, a Teresinha ajuda a Tina e todos saímos ganhando.
Na segunda-feira seguinte, na sala de espera do hospital, Arnaldo sentiu um calafrio. Algo parecia dizer-lhe que aquela cirurgia seria um divisor de águas para ele.
_ O que houve, meu amigo?
_ Nada, Juvenal... Só tive um estranho pressentimento. Mas deve ser coisa da minha cabeça...
Juvenal brincou:
_ Deve tá sentindo a anestesia antes da hora, meu irmão! Dizem que em alguns casos, durante a cirurgia, o espírito da pessoa sai do corpo e vai dar uma voltinha...
_ Pois eu vou ficar de olho no meu espírito durante a cirurgia e vou segurar ele com unhas e dentes, Juvenal... Vai que ele sai do meu corpo e esquece de voltar...
_ Vai nada... Nós não vamos deixar! Se precisar, vamos te buscar lá no além!
Arnaldo sorriu.
_ Não precisa, meu irmão! Basta cuidar bem da minha casa e dos meus bichinhos, que em um ou dois dias eu tô de volta!
_ Hoje o Chico e a Teresinha vão até lá, dar uma arejada na casa e tratar a bicharada. A Tina tem pouca encomenda na padaria e vai ficar de olho nos dois pequenos foguetinhos. Assim, nem tua casa nem teus bichos vão ficar desguarnecidos!
Arnaldo apoiou a mão no queixo.
_ É... O Claudino e a Valéria já estão com quase seis anos. O Claudio ia gostar de ver a duplinha em ação.
_ Pois é... O Miguel e as manas tão com dezoito. O Chico também já tá quase lá... O tempo parece que voa...
A voz impessoal da enfermeira chamou:
_ Arnaldo Engelmann... Por favor, me acompanhe.
_ Vai lá, meu guri! Te encontro na sala de recuperação, depois da cirurgia.
Já anestesiado, Arnaldo sentiu-se como se fosse sair flutuando hospital afora... Para ele, o tempo não existia... Uma nuvem branca e leve o envolveu, levando-o até a sua própria casa. Sobrevoou o enorme potreiro, os galpões e por fim, a casa... Sentia-se tão leve que parecia entrar com o ar, pela janela aberta... Sentiu uma estranha presença...
_ Tem alguém na minha casa... Eu sinto uma presença estranha... Sinto algo ruim...
Porém, seus sentidos procuraram, sem encontrar a pessoa que abrira a janela... De repente, uma voz forte cortou o ar e pareceu trazê-lo de volta:
_ Parada cardíaca... Nós estamos perdendo ele... Desfibrilador... Rápido!
Sentiu de repente um peso enorme no peito... Um choque... Uma voz ao longe...
_ Mais uma vez... Agora! Ele vai voltar! Vamos... Agora!!!
Mais uma vez aquele peso repentino no peito... E outro choque... De repente, parecia que a branca nuvem em que estava pareceu-lhe sumir... A pulsação voltou às veias... A equipe cirúrgica respirou aliviada.
_ Esse foi por um fio! Quase que o perdemos! Não fizeram os exames pré operatórios nele?
_ Foram feitos sim, Dr. Estava tudo certo...
_Bom... Cirurgia concluída... Paciente que inspira cuidados nas primeiras horas... Fiquem de olho, pois pode dar uma nova parada cardíaca.
_ Sim, Dr.
_ E avisem o acompanhante sobre o estado do paciente.
_Agora mesmo, Dr.
Após quase três horas aguardando na sala de espera, Juvenal ouviu um chamado:
_ Acompanhante de Arnaldo Engelmann...
_ Aqui... Sou eu.
_ Me acompanhe, por favor. O Dr quer conversar com o senhor sobre o paciente que o senhor acompanha.
Juvenal seguiu a enfermeira até uma pequena sala onde o médico-chefe da equipe cirúrgica aguardava.
_ Acompanhante do senhor Arnaldo? Por favor, sente-se... É familiar dele?
_ Não. Sou amigo. O único famíliar dele tá no quartel de Santa Maria... Como ele tá, Dr? Deu tudo certo?
_ Bom... A cirurgia, em si, foi um sucesso... Mas, o senhor sabia que o seu amigo é cardíaco? Ele nos deu um susto... Quase que o perdemos.
Juvenal ficou pasmo diante da revelação do médico.
_ Ele... Passou mal?
_ Sim. Deu uma parada cardíaca no seu amigo durante a cirurgia. Ainda bem que o hospital está bem equipado pra esse tipo de emergência.
_ Mas... Como ele tá agora?
_ Agora acredito que esteja fora de perigo, mas o estado dele inspira muito cuidado. Deverá ter uma série de cuidados durante a recuperação.
_ Sem problemas... Ele agora mora sozinho, mas vou pedir pro meu filho ficar com ele enquanto se recupera... Ou peço pra ele ficar um tempo lá em casa.
_ Está previsto pra ele ficar uns dois dias em observação aqui no hospital mesmo. Assim que o estado dele melhorar, ele terá alta. A princípio, para todos os efeitos, manteremos ele sob nosso cuidado.
_ Tá tudo certo, Dr. Ele tem vários amigos que não vão medir esforços pra cuidar dele até que esteja bem de novo!

*
Na rodoviária de Caxias...
_ Eu quero uma passagem pra Gramado, por favor. Ainda hoje quero chegar em Igrejinha!
_ Pois não, senhora. Janela ou corredor?
_ Janela.
Pela janela do ônibus, Irene foi observando a paisagem. As mãos, trêmulas pela abstinência ao cigarro, apertavam a única sacola de pertences. Olhou para a mulher ao seu lado.
_ Eu vou voltar pra minha casa e tomar posse daquilo que é meu! Consegui o dinheiro da passagem só agora. Faz tempo que eu tava tentando, mas só agora que eu consegui.
A passageira nem sequer olhou-a. Estava absorta na leitura de um livro de Ágatha Christie.
_ Nunca gostei de ler... Ainda mais esse tipo de livro aí... O assassino sempre é descoberto no fim do livro. Vilão que é bom, não é descoberto nunca!
A mulher, sentindo-se incomodada com o comentário de Irene, fechou o livro e simulou sono. Irene olhou-a com o canto do olho e exalou mais uma dose de prepotência:
_ Eu não consigo dormir em ônibus, não... Prefiro um colchão d'água e lençol de seda...
Com o comentário de Irene, a passageira ergueu-se e sentou-se em outro banco mais à frente, desocupado. E mais uma dose de asneiras saiu da boca de Irene, em alto tom, para que a mulher escutasse:
_ Eu também não gostei da sua companhia, meu bem... Se tu não tivesse saído daqui do lado, era eu que iria sair!
Na rodoviária de Gramado, Irene saltou do ônibus, a fim de percorrer o último percurso da viagem de volta a Igrejinha.
_ Uma passagem pra Igrejinha, por favor.
O táxi percorreu rapidamente o trajeto até a casa de Arnaldo. Chegando lá, encontrou Teresinha e Francisco.
_ Mmmm... Que chiqueza! Bem melhor que aquele lixo onde eu morei nos últimos seis anos!
Teresinha olhou para Irene, espantada.
_ Quem é a senhora?
_ Eu que pergunto: Quem são vocês dois? Espera... Eu conheço esse rosto... É a serviçal da escola onde a Mary estudou antes de sumir! Então, foi pra cá que trouxeram ela?
Teresinha deu uma segunda olhada no rosto de Irene.
_ Ahh... A senhora é a mãe dela... Mudou bastante, mas... É a senhora mesmo.
Francisco, que até então ouvira a conversa das duas mulheres calado, não aguentou.
_ Então... A senhora é a mãe malvada que mandou o Léo tomar conta da Mary? Ele machucou ela... E ela teve que fugir...
Irene sentiu-se acuada diante das palavras de Francisco.
_ O que tu, um crioulo pobre de maré, pode dizer que eu tenho que fazer ou dizer?
Teresinha, ao ouvir as ofensas da mulher saiu em defesa do filho:
_ Somos "crioulos",sim! Mas somos honestos! Um vizinho do seu Arnaldo nos trouxe pra cá, a muitos anos. E foi a melhor coisa que nos aconteceu! Assim, agora podemos ajudar o senhor Arnaldo...
_ Aaaaaa!!! Então é tu a kenga que tomou o meu lugar nessa casa! Essa casa é minha, sabia?
Francisco estava prestes a erguer a mão para defender a mãe. Teresinha interveio à altura.
_ Calma, filho... Não vale a pena estragar tuas mãos com esse lixo!
_ Lixo são vocês dois, crioulada suja!
Teresinha olhou séria para Irene.
_ Minha senhora... Eu e o meu filho só viemos aqui pra arejar a casa e tratar os bichinhos do seu Arnaldo.
Francisco completou:
_Acredito que o senhor Arnaldo não gostaria de ver essa senhora aqui, na casa dele. O que a gente faz, mãe?
Irene sentou-se na poltrona favorita de Arnaldo, majestosamente.
_ Agora aqui é o meu trono. E eu sou a rainha desse lar. Podem até ir na justiça, mas daqui ninguém me tira... Eu ainda sou a esposa legal do Arnaldo! Posso até chamar a polícia e botar vocês dois na cadeia por invasão!
Francisco não se conformava.
_Isso não tá certo, mãe... O seu Arnaldo tá no hospital e essazinha aí tomando conta de tudo, como se realmente fosse dela... E sabemos que não...
Irene olhou para Francisco e ergueu-se da poltrona, ironizando.
_ Mmmmm...Então, ele tá no hospital... Deve tá nas últimas... Mais uma razão pra eu tomar posse daquilo que é meu, antes que essa crioulada se aloje aqui!
Francisco estava prestes a erguer a mão novamente, quando Teresinha interrompeu:
_ Não, filho... Não suja a mão com esse lixo! Vamos embora. Não temos mais nada pra fazer aqui. Vamos conversar com o Juvenal pra ver o que faremos...
Ao ver Teresinha e Francisco sair, Irene ficou ali, aos berros:
_ Vai, crioulada invasora! Podem chamar quem quiser, que o direito de morar aqui é meu... Só meu!

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora