85 - O rapto de Catarina

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Lenir entrou no quarto da mãe.
_ Mãe Um carro parou lá fora...
_ Deve ser alguém tirando fotos da República dos bonecos. Não te preocupa e vai dormir, filha.
Gritos de jovens, possivelmente alcoolizados, cortaram a noite.
_"Abraça ela, Xará! Isso vai dar uma foto da hora!"
_ Pelo jeito e pela direção dos gritos, eles estão lá na boneca Catarina. Aquela da beira da rua.
_Deixa eles tirar fotos, filha. Talvez os coitados não tenham outra diversão.
_ Tô com receio, mãe... É tarde da noite, já...
Tina sorriu.
_ Esses jovens devem ser inofensivos... Com a cabeça cheia do trago.
_ Mãe... Será que eles não vão levar a máscara? Na outra vez levaram a máscara do Tenório!
_ Calma, filha... Talvez um deles pode ter se apaixonado pela boneca Catarina. Pena que ela tá cheia de formigas. Ontem vi que um formigueiro se instalou dentro dela...
Lenir esboçou um sorrisinho irônico.
_ Vai encher os tubos de cerveja e depois abraça uma boneca cheia de formigas... Isso é que é gostar de aventuras!
_ O melhor que temos a fazer agora é ir dormir, filha. Amanhã cedo tenho bastante serviço. Entrou uma encomenda de doces e salgados de aniversário para o final de semana, e quero adiantar alguma coisa.
_ Como sempre, né, mãe? Quando é que a senhora vai tirar umas férias?
Tina sorriu.
_ Férias? No dia em que eu ficar doente de novo... Aí vou tirar férias. Não imagina como é bom estar saudável e saber que aquele maldito câncer não me abateu...
_ Mas a senhora nunca sai pra se divertir. Desde que o pai morreu, nunca mais saiu.
_ E quem disse que eu preciso sair pra me divertir, filha? Eu tenho um trabalho que eu amo, uma família linda pra cuidar, meus bichinhos... Tenho aqui tudo que eu preciso!
_ Ô, mãe... Eu tô falando de "sair", de se divertir com outras pessoas...
_ E o que me faz acreditar que outras pessoas poderiam me divertir mais do que esse paraíso aqui? Esse lugar tem uma energia positiva ímpar. Vocês, a natureza, os bonecos... Sem contar que eu sinto a presença do pai de vocês em cada cantinho desse sítio!
_ Eu também, mãe. Quando dá temporal, parece que eu ainda preciso invadir a cama de vocês pra me encaixar nos braços do pai...
Tina olhou para o céu, sorrindo.
_ É... O Claudio deve ter a sensação de dever cumprido com vocês. Viviam "grudadas" nele.
_ Corrigindo: " penduradas"...
Tina pousou a mão suavemente no ombro da filha.
_ Volta pra cama, amada. Ou vai amanhecer e ainda vamos tá conversando...
_ Tô sem sono, mãe... Esses gritos do pessoal lá fora me deixaram inquieta.
_ Confia em Deus, filha. O pessoal que grita muito é incapaz de fazer o mal. E acredito que já foram embora. Tá tudo quieto agora.
_ Vai ver que o Chico ou o Juvenal foram lá falar com eles.
_ Amanhã vamos ver o que houve. Volta pra cama... Se não conseguir dormir, conta carneirinhos!
A manhã seguinte, após tirar pasto e alimentar os animais do sítio, ao passar no local onde ficava a boneca Catarina, Tina ficou surpresa:
_ Ué... A Catarina sumiu...
Entrou na cozinha, ficou um longo tempo em silêncio, observando as gêmeas tentando fazer Valéria e Claudino comer pedaços de frutas.
_ Olha o aviãozinho... Olha a maçã... Ióóóó!!!
_ Aqui, Valéria... Olha a manga... Deliciosa...
Quando chegou a vez de Claudino comer a manga, o menino apertou os lábios, em recusa.
_ Vai, Claudino... Experimenta! Manga é gostosa!
Claudino meneou a cabeça.
_ Não quelo... Não gosto...
_ Como assim? Como pode dizer que não gosta, se não experimenta?
Claudino, em seu macacãozinho de linho, olhou de lado para a mãe, aproximou-se de Lenice e foi abrindo a boca, lentamente.
_ Viu só, mano... Mastiga e sente como manga é gostosa.
O menino foi mastigando a fruta e apertando os olhos.
_ O que foi? Não gostou?
Claudino foi rolando o pedaço de manga de um lado para o outro da boca, e engoliu fazendo uma careta.
_ Não gostei... É ruim!
Tina sorriu.
_ Não te preocupa, filha! Vocês também não comiam manga, e eu não sei qual foi a mágica que o Claudio fez, mas depois que ele convenceu vocês de que manga é boa, não pararam mais de comer.
_ A Valéria comeu direitinho, mãe. Ela não é cheia das manias que nem o Claudino.
_Cada criança tem seu tempo. Aliás... Tudo a seu tempo...
Naquele momento, Juvenal entrou, desolado.
_ Mas bahhh! Passei a noite toda na cadeia, por causa daquela mulher que invadiu a casa do seu Arnaldo... E pensar que o pobre homem tá pra ganhar alta amanhã... Como ela vai tratar um recém operado, se me tratou assim?
Tina arregalou os olhos.
_ Na cadeia? Ela chamou a polícia?
_ Sim. Alegou que eu bati nela e chamou a polícia... Coitado do Arnaldo...
_Quem vai ficar com ele no hospital hoje? Se não tiver ninguém...
_ O Chico não tem dezoito anos ainda. Vão barrar ele na entrada. Eu até teria ficado lá, mas eu tava sujo quando a polícia me levou lá pra cadeia. E passei uma noite de cão!
_ Vou ver se uma das manas não pode ir. Elas já têm dezoito... Ou...
Tina hesitou antes de continuar:
_ Ou vou eu mesma! Chegou a hora de retribuir ao Arnaldo o que ele fez pelo Claudio!
Lenice completou, sorrindo:
_ E a senhora já tá acostumada com os machucados de todos nós. É a nossa enfermeira de plantão! Pode deixar, que nós cuidamos do Claudino.
_ Então, vou agora mesmo tomar um banho e pedir pro Alceu me levar até o hospital. Não podemos deixar o Arnaldo desamparado num momento tão delicado pra ele!
Chegando ao hospital, Arnaldo ficou surpreso ao ver Tina.
_ Oppppa!!! Hoje é tu que tá disposta a perder um dia com um velho capenga, com o abdômen cortado?
Tina não sabia se sorria diante da brincadeira de Arnaldo, ou se contava a realidade pelo qual Juvenal passara no dia anterior. Baixou a cabeça e falou em voz branda.
_ Não é perda de tempo cuidar de quem perdeu horas cuidando do meu marido em seu leito de morte.
_ Mas é só mais hoje... Amanhã eu volto pra casa e deixo os problemas pra trás! Vou começar vida nova, sem dor e sem sofrimento!
Tina baixou os olhos. Naquele momento, um arrepio subiu-lhe pelo corpo inteiro. Nos olhos, duas grossas lágrimas, que não passaram despercebidas por Arnaldo, que segurou sua mão.
_ O que foi, amiga? Falei alguma coisa errada? Desculpa... Te fiz lembrar do Claudio...
_ Não... Não foi isso...
_ O que aconteceu, então? Pode falar... Sou forte feito madeira de anjico!
_ Tenho más notícias... Mas eu não sei se tenho o direito de falar... Tô preocupada contigo...
_ Preocupada comigo? Porquê? Eu não tô tão mal assim!
_ É que... Acho que não é uma boa ideia tu ir pra tua casa amanhã... Lá...
Tina parou a frase, temendo uma reação negativa de Arnaldo, pois sabia que ele sofrera muito com a fuga de Irene com o vendedor de adubos.
_ Lá é o meu cantinho, Tina. Tudo que eu tenho tá lá! São anos de luta e suor encaixados naquele lugar. É lá que eu quero morrer!
As últimas palavras de Arnaldo fizeram Tina arregalar os olhos. Tremendo diante daquela frase repentina, Tina não segurou as palavras:
_ Arnaldo... Não pode falar em morrer naquele lugar... Principalmente porque...
E mais uma vez as palavras de Tina morreram no meio da frase... Arnaldo ficou inquieto.
_ "Principalmente porque", o quê? O que tu sabe sobre minha casa que eu não sei?
_ Olha, Arnaldo... No dia da tua cirurgia aconteceu uma desgraça lá... O Juvenal não teve coragem de te falar...
_ Desgraça? Morreu alguém lá? O que aconteceu na minha casa?
_ A Irene... Voltou...
Diante do olhar pasmo de Arnaldo, Tina narrou toda a deplorável situação pela qual Teresinha e Chico passaram no momento que Irene voltou. Em seguida, narrou a prisão de Juvenal.
_ Então, foi por isso que ele não veio... Coitado do homem!
_ Pois é... Ele falou que ela tá o Dianho em pessoa... E eu acho que não é uma boa ideia tu voltar pra tua casa amanhã.
_ Mas... Tudo que eu tenho tá lá... Aqui, só as roupas do corpo... Pra onde eu vou, recém operado?
_ Olha... Vamos fazer assim... Tu vai ter alta, mas vai ficar na casa do Juvenal ou lá em casa, até se recuperar por completo... E quanto às roupas, tenho algumas guardadas do Claudio... Acredito que vão te servir, se não se importar, claro...
Arnaldo sorriu, brincando:
_ Só porque o Claudio já faleceu? Se eu voltar pra minha casa, com a Irene lá, daquele jeito que tu falou que ela tratou o Juvenal, aí eu vou vestir é um paletó de madeira e morar no cemitério!
Nesse momento, uma enfermeira entrou no quarto, sorrindo e comentando:
_ Aparece cada coisa! Li uma reportagem no jornal NH que fala de uma boneca que enforcaram numa estrada do interior de Igrejinha!
Tina olhou surpresa para a enfermeira.
_ Boneca? Enforcada? Como assim?
_ É... Uma reportagem curiosa que saiu no jornal... Parece até que chamaram os bombeiros, dizendo que tinha uma pessoa enforcada...Deu um auê quando os bombeiros descobriram que não era um ser humano, e sim uma boneca do tamanho de uma pessoa...
Tina cobriu a boca, incrédula. Não tinha coragem de falar para a enfermeira que a boneca em questão fora raptada em sua propriedade. Reuniu toda sua coragem e perguntou:
_ Onde posso conseguir um exemplar do jornal NH?
_ Aqui ao lado do hospital tem uma banca.
Arnaldo notou o embaraço da amiga. Esperou a enfermeira sair e indagou:
_ É um dos teus bonecos? Notei que tu ficou sem jeito diante da notícia...
_ Olha... Acho que é... Um grupo de vândalos raptou a Catarina essa noite. Até comentei com as manas que ela tava cheia de formigas...
_ Mas... Será que é a Catarina?
_ Não sei... Vou até na banca que a enfermeira falou e comprar um exemplar do jornal NH. Aí eu descubro se é a Catarina ou não.
Tina saiu do quarto, voltando em alguns minutos.
_ Realmente, é a Catarina... Agora, não sei se vou ficar triste pelo enforcamento da Catarina ou se dou umas boas risadas, pensando em como os vândalos se livraram das formigas que moravam dentro dela.
_Mas como publicaram no jornal? Aqui nunca acontece nada que sai no NH...
_Eu não sei... Os bombeiros devem ter feito contato com o jornalista que editou a reportagem. Um tal de Juliano Piasentin...
Arnaldo sorriu.
_ Bom... Vamos levar a história do rapto da Catarina pra um lado positivo. Pelo menos não foi um suicídio, nem um homicídio...



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