34 - A travessura de Francisco

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Vincenzo e Mary chegaram ao Cemitério Público Municipal e se depararam com uma imensidão de folhas de plátano que o vento outonal debulhara naquele final de semana.
_ Santo Dio! Olha como isso tá, bambino! Vou guardar nosso almoço e já começo a recolher essa montoeira de folhas! O Minuano tava brabo ontem, derrubou muita coisa.
_ Vou te ajudar, seu Vincenzo. Vou pegar a vassourinha e limpar em cima dos túmulos e ajeito os vasos que caíram por causa do vento!
_ Vou te confessar uma coisa, Pedrinho... Eu nunca gostei de trabalhar aqui, porque não é exatamente um ambiente agradável de trabalho, mas depois que tu voltou, me mostrou que esse é o melhor trabalho do mundo!
Mary esboçou um largo sorriso:
_ Mas que maravilha! Aqui temos ar puro, flores e... E...
Mary olhou para todos os lados, para as lápides, parecia estar procurando a palavra certa para terminar a frase. Por último, olhou para o céu azul e completou:
_ ... E Deus! Aqui sinto Deus! Aqui temos paz no corpo e no coração! Aqui ninguém nos machuca e ...
Mary parou a frase, ao notar que o velho zelador olhou interrogativamente em sua direção.
_ Alguém te machucou, bambino?
Mary tentou disfarçar o que sentiu ao ouvir as palavras do zelador, pois não era a primeira vez que ele a perguntara. Passou a arrumar os vasos e varrer as lápides. Seu silêncio era uma maneira de manter sua história no passado. Tinha decidido que ninguém mais a machucaria. Limitou-se a responder com uma resposta evasiva:
_ Olha como o vento deixou isso aqui!
Vincenzo jamais imaginou que uma simples criança poderia ensiná-lo a compreender o que é ter paz, no entanto, a pergunta sem resposta deixou-o perturbado.
_ Hoje vamos ir ao correio e mandar um telegrama pra tua mãe, Pedrinho. Eu soube que ela está muito triste, pois perdeu a razão de viver após o acidente... Faz anos que parece esperar por um milagre... E acho que esse milagre tá acontecendo...
Mary encarou Vincenzo:
_E... O senhor vai falar o que??
O zelador olhou sério para Mary:
_A verdade, bambino... Apenas a verdade...E vamos deixar nas mãos de Deus!
Surpresa pela expressão de Vincenzo, Mary iluminou o rosto novamente, e limitou-se a dizer:
_ O meu Deus é muito bom, Vincenzo! Eu confio no que Ele faz!

*

Mara saiu da sala e esbarrou em Lauro:
_ Atrasado outra vez? Agora, que eu conheci tua família, sei o motivo do teus atrasos.
_ Desculpa, professora!
_ Que isso não se torne um hábito, meu guri! Os outros já estão quase todos presentes, só falta encontrar Mary e Francisco. Não os vi no pátio quando entrei.
_ A Mary eu não vi não, professora! Mas o Francisco veio com a mãe dele.
_ Então, ele deve estar no cantinho da cozinha, onde costuma ficar.
Mara dirigiu-se até a cozinha, onde encontrou apenas a cozinheira.
_ Dona Teresinha... O Francisco não está na sala. Ele está aqui?
_ Não, professora. Eu tô preocupada... Tenho que limpar a cozinha, fazer a merenda, e não temos uma gota de água nas torneiras!
_ Isso é mau. Já comunicou ao diretor?
_ Já. Ele foi ver se não há algum cano quebrado no pátio da escola.
_ Mas o que vamos fazer se não encontrarmos o problema?
_ Não sei, mas as crianças não podem ficar sem merenda! Enquanto não resolver, vou buscar água na vizinha da escola, já conversei com ela.
Teresinha pegou dois baldes e saiu em direção à torneira do pátio ao lado da escola. Mara, por sua vez, foi até a sala da direção da escola:
_ Seu Julio! Temos um probleminha...
_ Estamos sem água, já me comunicaram!
Mas eu averiguei todos os pontos do pátio onde os canos de água podem ter-se rompido, não achei nada de errado!
_ Não, seu Julio! O problema é o Francisco... Ele veio com dona Teresinha, e não está em lugar nenhum da escola ou do pátio... E dona Teresinha está pegando água na torneira da vizinha, vai que...
Mara não terminou a sua frase. A simples ideia de um menino com autismo nas ruas a assustava, pois sozinho estaria desorientado e perdido.
_ Isso é ruim, professora! Volte pra sala de aula, para o caso dele voltar pra lá. Vou entrar em contato com a polícia, pro caso do Francisco estar perdido nas ruas.
Não demorou muito e todo o bairro estava sendo percorrido pelos agentes da polícia e da brigada militar. Dona Teresinha, já meio chorosa, buscava mais água no pátio da vizinha.
_ Não acredito que o Francisco saiu assim... Só pode ter sido na hora que saí para pedir pra vizinha se poderia pegar água lá! Ele comentou que tava com tanta saudade da Mary...
Julio ergueu as sobrancelhas:
_ Será que foi procurar ela?! Quase impossível! A Mary mora longe daqui...
_ Eu não sei mais o que pensar, diretor!
Teresinha estava aos prantos.
_ Isso é castigo, porque eu falei ontem que o Francisco não poderia dançar no CTG...
_ Mas por que ele não poderia dançar em um CTG?
_ Porque a dança gaúcha veio originária de Portugal, do povo que no passado escravizou nosso povo...
_ Não tem nada a ver uma coisa com a outra! São épocas diferentes, dona Teresinha! Hoje não pode mais existir a escravidão.
_ Mas, senhor Júlio! O senhor acha que ele pode ter ido até a casa de Mary?
_ Possivelmente tentou! Vou comunicar essa possibilidade à polícia, e dar o endereço aos policiais. Caso esteja lá, já já seremos informados.
Teresinha estava desolada... Baixou os olhos chorosos em oração:
_ Deus! Traga meu filho de volta, são e salvo... E prometo a ti, Meu Pai, que deixo Caxias, e vou deixar Francisco entrar no grupo de dança do CTG!
Julio interrompeu Teresinha:
_ Espere! Você disse que nos vizinhos tem água. Vou chamar alguém da empresa de tratamento e distribuição de água da cidade.
_ Será que vão achar o defeito?
_ O pessoal do SAMAE vai encontrar o motivo da falha no abastecimento de água da escola, não se preocupe! E quanto ao Francisco, dona Teresinha... Confie em Deus e na polícia!
Julio entrou em contato com a equipe do abastecimento de água, e em pouco tempo já chegavam ao pátio da escola. Os canos e conexões foram examinados minuciosamente. Dona Teresinha, chorosa, continuava orando ao seu Deus:
_ Deus... Ajude o Francisco a voltar pra cá, eu imploro! Eu prometo que vou deixar ele dançar com uma das manas.
Alguns momentos passados, dois militares adentraram o pátio da escola até a sala da diretoria.
_ Senhor Julio... Fizemos um pente fino no bairro todo, e não encontramos o aluno dessa instituição que está desaparecido.
Dona Teresinha não se conformava:
_ Foi culpa minha! É o meu castigo, por pensar que...
Nesse mesmo instante, a equipe da SEMAE entrou na sala:
_ Licença, diretor... Acho que resolvemos dois problemas de uma só vez!
Julio ergueu-se da cadeira em um salto.
_ Como? Dois problemas?
_ Examinamos toda tubulação da vizinhança, e estava tudo certo. Não era falta de água na rede de distribuição.
_ E...???
_ Venha ver, diretor!
Julio acompanhou-os até o alçapão, onde encontrava-se o registro geral do abastecimento de água da escola. Apontou para o alçapão:
_ Olhe, seu Julio... O que causou a falta d'água!
Francisco dormia dentro do alçapão, abraçado ao seu caminhãozinho. Julio estava indeciso, entre a vontade de rir da situação e de repreender o menino.
_ Francisco!!! Isso é lugar pra te esconder? Da próxima vez que tiver vontade de brincar de esconde-esconde, não precisa fechar o registro de água da escola!
_ Creio que esse jovenzinho girou o registro de abastecimento e acabou adormecendo...
Julio inclinou-se diante do alçapão e ajudou Francisco, ainda sonolento, a sair do alçapão.
_ Vem cá, meu guri! Tua mãe tá morrendo de preocupação contigo!
Teresinha, ao ver Francisco abraçado ao diretor, precisou se segurar para não cair. Apoiou-se em um dos galhos da pitangueira do pátio da escola. Sentiu que algo subira sua mão, mas a emoção de ver Francisco são e salvo fez com que não se preocupasse com o fato.
_ Francisco!
Teresinha abraçou o filho, em um misto de lágrimas da preocupação que passara e de alegria pelo fato de ver o menino ali,a salvo.
_ Mãe! Desculpa... Eu tava procurando a Mary!
Nesse mesmo momento, uma picada no pulso, na região das veias, fez Teresinha fazer uma careta de dor.
_ Calma, dona Teresinha! Seu filho está aqui! Está tudo bem agora...
Teresinha colocou Francisco no chão, e investigou qual inseto poderia ter causado uma picada que doesse tanto. Sentiu o sangue gelar nas veias quando descobriu, dentro da dobra do punho do casaco, o corpo de uma aranha marrom...
_ Uma aranha!... Me picou!...
Teresinha viu-a ao lado de um pequeno ponto rosado que o aracnídeo causara, ao ser pressionado.
Julio logo interveio, preocupado:
_Vou levar o Francisco para a sala de aula e chamarei um socorro para levar a senhora a algum atendimento médico. A aranha marrom é uma das mais venenosas! E a toxina delas se espalha rapidamente, até pelo fato dela ter-lhe picado na veia!

*

A segunda-feira recebeu Juvenal triste, meio cabisbaixo.
_ O que há contigo, homem? Parece que tu tá doente!
_ Não é nada não, Claudio!
_ Tem algo a ver com a gente?
_ Não... Só tô com mau pressentimento. Não sei o que é...
_ Calma, Juvenal! É só um teste pra Rádio Esmeralda!
_ Não é o teste que me preocupa, Claudio! É a Teresinha... E os meninos. Tô sentindo uma coisa esquisita aqui no peito.
_Tem alguma coisa a ver com o que Teresinha falou sobre não vir para cá?
_ Talvez. Eu a amo muito, e gostaria de estar sempre perto dela, já que não posso mais dirigir caminhão. E já que ela não quer vir pra cá, vou eu, voltar pra Caxias. Já decidi!
_ Vai largar o tratamento de adaptação das próteses? Como vai se virar, sem uma das pernas?
_ Vou largar sim. Me preocupa o Francisco e o Alessandro, muito mais que minha perna! E eu preciso ficar mais perto da Teresinha, que tá se virando sozinha com os guris e o trabalho na escola. Não posso pensar só em mim!
_ E os testes pras rádios? Vai largar também?
_ Meu amigo... Um homem sem família não é homem... É um ser pela metade. Vou fazer o teste que tá marcado pra hoje, mas minha decisão tá tomada.
Claudio ficou surpreso. As mudanças de rumo que a decisão de Juvenal poderia acarretar comprometeriam o bom andamento da adaptação da prótese na perna de Juvenal, mas sabia que o amigo é quem deveria decidir.
_ Posso te perguntar uma coisa, Juvenal?
_ Pergunte!
_ Tua decisão tem alguma coisa a ver com o que Teresinha falou ontem, sobre o motivo da decisão dela?
_ Sobre a dança dos brancos? Em parte. Não pelo CTG. Só que eu, no final de semana, convivi com meus filhos e senti que meu lugar é junto com eles. De nada me adianta eu ser famoso nas rádios, ganhar um bom dinheiro, e meus filhos precisando de um pai presente.
_ Tá bom, meu amigo. Mas por hora vamos à consulta com o fisiatra. Depois, vou fazer uma entrega de erva em Canoas e vou te deixar na rádio Esmeralda, pra tu fazer o teste de locução.
_ Já nem sei se quero fazer esse teste... Tô triste pelos meninos e pela Teresinha! Não tenho sido um pai presente. Só pensei na minha saúde, e não pensei na saúde deles!
_ Pois eu vou te levar até a rádio e tu vai fazer o teste, sim... O resultado vai depender do pessoal da rádio!
Após muita insistência, juvenal concordou em realizar o teste para compor o corpo de radialistas da rádio. Após realizado o simulado de um programa vespertino da rádio, a resposta do diretor da rádio:
_ Olha, seu Juvenal... Estivemos avaliando seu desempenho na programação da rádio...
Juvenal, apesar de tudo que havia decidido horas antes, ficou na expectativa:
_ E...???
_ Tenho que ser sincero com o Sr. Nossa equipe de profissionais no microfone é formada por excelentes vozes... Nesse âmbito o Sr se encaixa perfeitamente.
_ Então?
O coração de Juvenal estava entre a apreensão da resposta do homem à sua frente e a preocupação com a família.
_ Sua voz e sua dicção são fenomenais, mas, infelizmente, nossa equipe precisa de pessoas que transmitam alegria e descontração. Coisas que senti não estarem com você nesse momento. Por isso sugiro que, se tiver algum problema pessoal que te faça travar nesse quesito, resolva ele. Jamais pode-se misturar vida pessoal com vida profissional.
Claudio, ao encontrar o amigo, notou à distância que o teste da rádio tinha sido desastroso para Juvenal.
_ Não fique assim, meu amigo! Anime-se! No fim de semana que vem vamos buscar a Teresinha e os meninos pra conhecer nossa região aqui. Lembra que o Miguel tá fazendo 12 anos, e quero fazer uma festinha lá em casa pra ele.
_ É mesmo! Eu tinha esquecido!
_ O Arnaldo não queria fazer nada pra comemorar. Mas o filho dele já não tem mãe... E quero botar um sorriso no rosto daquele guri! Não posso resolver o problema dele, mas posso aliviar sua dor, e fazer ele esquecer da mãe que abandonou ele.
_ Por ver o sentimento do Miguel sem mãe que quero ficar junto com meus filhos. Se Teresinha não quiser realmente vir morar pra cá, vou pra Caxias! Não posso ficar longe dos meus piás!
_ No final de semana que vem vou buscar ela e as crianças pro aniversário do Miguel, aí ela vai conhecer a Tina também. Vamos pensar positivo, homem!

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