99 - O nascimento de Cisco

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A casa de Edelvina estava em polvorosa. A filha, andando de um lado para o outro, segurando uma lixa de unhas e um frasco com esmalte, não se conformava:
_ Isso aqui é o tempo das cavernas... Não tem nenhuma manicure a quilômetros daqui! Que tédio!
Edelvina sorriu.
_ Veja pelo lado bom da coisa, Eliane. Temos paz e silêncio...
_ A paz que vá pro inferno, que eu quero é "movimento"! Esse silêncio tá me deixando é doida mesmo... Ô, mãe...
O olhar ríspido de reprovação de Edelvina fez Eliane calar-se imediatamente. A moça estranhou:
_ O que foi, mãe? Por que me olhou assim? Viu algum fantasma?
Edelvina estava quase bufando.
_ Quantas vezes já te disse que aqui em casa eu não sou tua mãe? Aqui somos só amigas...
_ Aaaah, era só isso... Eu achei que tu tinha visto o próprio "Demo"...
_ Não brinca com isso, guria! O Armando não sabe que tenho uma filha fora do casamento, e não pode saber...
Eliane deu de ombros.
_ Gosto não desse teu jeito de falar comigo, mãe! Tenho direito a uma mãe... Eu sou é uma vítima do teu erro! Ou fui eu que fui "dar o rabo"pra outro homem e engravidei?
O olhar enfurecido de Edelvina fez a filha calar-se, saindo e batendo a porta.
_ Isso!!! Quebra a porta, imprestável!
Eliane resmungou:
_ "Imprestável "é a... Vou arrumar o que fazer... Faz dois dias que aquela rádio top tá fora do ar! Dizem que é aqui perto. Vou ver se consigo achar!
_ Ela fica numa das casas daquele sítio dos bonecos.
Eliane apertou os olhos, sorrindo:
_ Mmmmm... Vou fazer uma visitinha pra aqueles bonecos... Deve ter alguma coisa interessante lá...
E na casa de Tina...
_ A Valéria vai ficá aqui di noite, mana?
_ Acho que não, Claudino. O Chico e a Valéria vão dormir na casa deles. É no nosso pátio, mas...
Claudino fez beicinho, ensaiando choro.
_ A mãe não tá aqui, mana. Eu quero ficá com a Valéria e com o Chico! Tô com medo...
Francisco tentou amenizar a situação. Pegou Claudino ao colo.
_ Olha, Claudino... Eu até levaria vocês pra dormir lá em casa, mas tem pouco lugar. O Arnaldo vai dormir lá também, assim que ele terminar de tratar os bichos.
O menino não se deu por vencido. Olhou para Francisco e a irmã, abrindo os braços.
_ Aqui tem muuuuuito lugar pra vocêis durmi... Vem durmi aqui...
Encabulado, Francisco olhou para Lenir.
_ Não queremos incomodar.
O menino rebateu:
_ Tu não incomoda, Chico. Tu é nosso mano!
Diante dos argumentos de Claudino, e do sinal afirmativo de Lenir, meio embaraçado, Francisco decidiu, batendo de leve no ombro do menino:
_ Tá feito, campeão! Eu e a Valéria só temos que tomar banho, depois viemos pra cá!
Lenir, diante da situação, ofereceu ajuda:
_ Olha, Chico... Se tu quiser, eu dou banho na Valéria aqui... Ela é menina...
Francisco corou, concordando:
_ O que eu faria sem as manas? Vou lá tomar meu banho, depois venho aqui pra dormir...
Enquanto Lenir preparava o banho de Valéria, as duas crianças comemoraram, pulando abraçados:
_ Aeeeeeeee!
_ Menos barulho, crianças! Ou a galinha que tá chocando na entrada do porão da padaria vai se assustar e sair do ninho!
Após tomar seu banho, Francisco vestiu um calção, e de camiseta no ombro, encostou a porta de casa e atravessou o pátio, em direção à casa de Tina. Assobiando alegremente, não notou ser observado pelo par de olhos curiosos, escondidos atrás de um arbusto. Eliane seguiu o rapaz com os olhos, falando com seus botões:
_ Mmmmm... Mas o que nós temos aqui? Que lindeza de homem! Eu quero ele pra mim, custe o que custar...
Parecia até que Francisco escutara a voz da moça. Seu olhar cruzou com Eliane por um momento. Encabulado, sumiu no interior da casa de Tina. Lenir, que acabara de dar banho em Valéria, estranhou:
_ Que cara é essa, Chico? Parece que tu viu um fantasma!
Ainda gaguejando, Francisco pegou a irmã ao colo.
_ A a acho que vi um fantasma mesmo... E bem feio... Ainda bem que eu e a Valéria vamos dormir aqui.
Eliane, que escutara ppr trás da parede o que o rapaz falara, não perdeu a pose.
_ Esse daí me paga! Dizer que eu pareço um fantasma! E ainda, bem feio...
A moça sentiu-se perder o equilíbrio. E, para não cair, afirmou o pé na base da entrada do porão da padaria de Tina. Sentiu algo se movendo sob seu pé, e saltou para trás, assustada:
_ E ainda dizem que dia de sorte não existe! Esse bicho preto emplumado é perfeito pra mim fazer um "trabalho" de primeira...
Agachando-se cuidadosamente para não ser notada, segurou com firmeza a pobre galinha, que, para defender seus ovos, passou a cacarejar e desferir bicadas.
_ Não adianta tu gritar, sua galinha de macumba! Hoje tu vai servir pra fazer um trabalhinho perfeito pra mim!
Lenir, que estava vestindo o irmãozinho, escutou o cacarejar defensivo da pobre ave.
_ Escutou isso, Chico? Eu acho que a Pretinha foi atacada por algum bicho. Ouvi um gritedo dela... Vou terminar de vestir o mano e vou dar uma olhada lá no ninho dela...
Francisco empalideceu. Colocou a mão no braço da amiga:
_ Não vai sozinha... Eu vou junto...
_ Não precisa ter medo, Chico. É só uma galinha, chocando sete ovos. Quando achamos o ninho dela, já tava chocando. Não recolhemos os ovos dela porque acho que já estão quase nascendo os pintinhos...
_ Mas, mesmo assim, vou junto. Vai que tem alguém lá... Vi alguém lá fora antes...
_ Capaz, Chico... Quem poderia tá lá fora agora? O Arnaldo ainda tá lá no galpão das vacas, tirando leite... Vamos acalmar essas ferinhas aqui primeiro. Depois, vamos ver o que deu na Pretinha.
Após certificarem-se de que as duas crianças estivessem absortas em um livro de fábulas, Francisco e Lenir saíram da casa, em direção ao ninho da Pretinha. Estranharam sua ausência.
_ Ué... Ela nunca abandona o ninho... Até pra comer, ela não sai...
Francisco preocupou-se:
_ Os ovos dela estão esfriando... Não vai nascer nenhum pintinho. Coitada da Pretinha... Pena...
Lenir pensou rápido, diante da situação:
_ Operação "Chocadeira", Chico! Agora mesmo!
_ Chocadeira? Que diacho é isso?
_ Tô dizendo que nós vamos salvar os pintinhos da Pretinha! Vamos colocar os ovos dela na chocadeira lá do galpão!
_ Aaaahh bom!
_ Me ajuda?
_ Bora lá... Operação "chocadeira" em ação!
Os ovos foram cuidadosamente acomodados no interior da chocadeira. Francisco olhou para a máquina, curioso. Lenir explicou:
_ Precisamos sempre manter água na bandeja da parte inferior da chocadeira, pra equilibrar a umidade... E não tirar nunca da tomada, pra equilibrar a temperatura dos ovos.
Diante de todas as explicações, Francisco acalmou-se. Porém, Lenir não escondeu a curiosidade:
_ Chico... Me diz uma coisa... Tu falou que viu alguém no pátio da nossa casa... Deve ter sido essa pessoa que levou a Pretinha.
_ Vi... Vi uma mulher... Não conheço ela.
Lenir estranhou:
_ Tá... O que uma mulher estranha ia tá fazendo, a essa hora, aqui ?
_ Não sei. Só sei que vi ela. Tava perto da porta da rádio...
_ Bom, vamos deixar a chocadeira certinha, e voltar pra dentro de casa, ou aquelas duas ferinhas vão tá correndo por aí no pátio de casa no escuro. Aí que não dormem mesmo!
Aliviados por encontrar Valéria e Claudino brincando com os livrinhos infantis, Lenir anunciou:
_ Quem vai contar a história de dormir de hoje? Eu faço a oração depois da história!
Francisco emendou, mostrando os dentes:
_ Mas primeiro vamos todos dar cabo das sujeirinhas que tão nos dentes? Olha aqui, que tem um elefante morando aqui, bem no meio dos meus dentes! Imagina se ele ficar com fome... Ele vai comer todos os meus dentes...
Claudino arregalou os olhos, ao responder:
_ Vai ficá igualzinho à vovó... Ela não tem mais dente nenhum...
Lenir adiantou-se:
_ Então, pra não ficarmos todos iguaizinhos à vovó, vamos escovar bem esses dentes!
Francisco apontou o banheiro:
_ O último a escovar os dentes vai ser o boi da cara preta!
Lenir olhou curiosamente para Francisco:
_ Boi da cara preta?
Com um gesto, pedindo desculpas, Francisco baixou a voz, desconcertado:
_ Desculpa, mana... Eu queria fazer uma brincadeira, e acho que foi mal...
Lenir sorriu.
_ Mas funcionou... Olha os dois, escovando os dentes, com todo capricho!
Francisco fixou os olhos de Lenir por uma fração de segundo. Desviou o olhar, desconcertado.
_ Acho que não foi uma boa ideia a gente dormir aqui...
_ Ora, por que não? Assim eu e o Claudino não vamos tá sozinhos. Vai que aquela mulher volta...
_ Ela parece um fantasma... Vamo fazer assim... Tu dorme com a Valéria e o Claudino, na cama grande, e eu durmo aqui no cantinho, no chão. Faço um ninho aqui mesmo e me ajeito. Assim, fico de guarda, se o fantasma voltar, o forte e bravo cavalheiro aqui vai cortar-lhe a cabeça...
Lenir estalou um beijo na face do amigo, que corou.
_ Valeu, mannnnnnno! Agora , vamos "tirar os elefantes dos nossos dentes", ou amanhã vamos tá tudinho que nem a vovó!
Enquanto escovava os dentes, Francisco não escondeu a curiosidade:
_ Posso te fazer uma pergunta?
_ Faça...
_ Como sabe tanto sobre os ovos da chocadeira? Quantos dias será que leva até os pintinhos nascerem?
Lenir sorriu.
_ Uma pergunta de cada vez, criança...
O rapaz tornou a ficar desconcertado. Lenir, ao notar o embaraço dele, sorriu.
_ Não tô te chamando de criança, Chico... Só tô dizendo que não é legal fazer um monte de perguntas ao mesmo tempo. Tenho que escolher o que responder primeiro... Ou a minha cachola entra em parafuso...
Francisco arregalou os olhos:
_Parafuso??? Como assim?
_ É só um modo de dizer, Chico... Que não consigo pensar em um monte de coisas ao mesmo tempo.
_ Ahh bom...
_ Mas vamos pras respostas, Chico... Eu sei que ovos levam três semanas pra chocar e descascar os pintinhos... Mas não sabemos ao certo quando a Pretinha começou a chocar os ovos dela.
_ Então, eles podem nascer qualquer dia?
_ Qualquer dia, e qualquer hora, Chico. Por isso, temos que ficar de olho na chocadeira, direitinho.
O assunto foi interrompido por Valéria:
_ Posso contá a história de durmi de hoje?
Lenir sorriu.
_ Claro, amada. E eu vou fazer a oração, pra agradecer pro Papai do Céu, pelo dia de hoje.
Após o término da história de Valéria, Lenir, segurando as mãozinhas de Valéria e Claudino, baixou a cabeça em oração:
_ Querido Papai do Céu. Obrigada pelo dia de hoje ter sido tão bom. Cuida bem das nossas mamães e de nós. Obrigada, Papai do Céu. Amém.
Um coro fez-se ouvir:
_ Amém.
Claudino fez beicinho.
_ Mana ... Onde é que o Chico vai durmi?
Francisco apareceu na porta do quarto, carregando uma pilha de cabertores e um travesseiro.
_ O grande cavalheiro solitário vai fazer seu ninho agora, bem na frente da cama grande. A mana vai dormir com vocês, pra ficarem bem quentinhos.
A manhã despertou os jovens e as crianças entre bocejos de sono. Lenir olhou para o relógio.
_ Eu vou fazer o café e tu arruma as crianças, Chico. Depois do café temos que ver se tá tudo certo com a chocadeira. Não podemos deixar tudo pro Arnaldo fazer. Ele ainda tá se recuperando da cirurgia.
Após devorarem metade de um pão e algumas frutas, uma surpresa aguardava todos no interior do galpão.
_ Tá ouvindo isso? Parece um pipilo...
_ Será que já nasceram os pintinhos? Já???
_Devagar, crianças. Se nasceram, não vamos assustar eles...
Cuidadosamente, Lenir abriu a chocadeira. O pipilo tornou-se mais alto. Claudino comemorou:
_ Nasceu um pintinho! Tô vendo ele... Ieeeeebbbaaaa!
_ Pssssiu, mano... Ele é só um nenê de galinha. Vai dar susto nele.
Claudino olhou para aquele pequeno ser emplumado.
_ É um Cisco!
_ Não, mano... É um pintinho., e não um cisco.. E nasceu só um... Coitadinho, sem mãe, nem irmão...
_ Eu sei que é um pintinho, mana! Eu vou chamar ele de Cisco!
Francisco e Lenir entreolharam-se. A moça anunciou:
_ Pequeno "Cisco"... Seja bem-vindo ao nosso lar!

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